(Nota: todos os factos relatados no presente remontam a maio de 2005)
Aos 53 anos, Maria José Nogueira Pinto foi reconduzida à frente da Santa Casa, um império com 500 anos, que factura, anualmente, 24% das receitas dos jogos sociais e possui mais de 1 300 prédios urbanos e mais de 1 200 hectares de prédios rústicos.
Figura de relevo da Direita, é militante do CDS-PP, dirigiu a Maternidade Alfredo da Costa e foi subsecretária de Estado da Cultura mas também viveu num campo de refugiados, na África do Sul, de onde fugiu com o marido, depois de se ter feito passar por doente…
VISÃO: “A Thatcher, ao lado dela, é de chocolate”, disse, num depoimento à VISÃO, há sete anos, a sua irmã Maria João Avillez. Assenta-lhe bem, esta definição?
MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO: Sou uma pessoa determinada e gosto de autoridade.
Já era assim “mandona”, em pequenina, em família e com as suas irmãs?
Nasci numa família com muitas mulheres. Além das minhas duas irmãs e da minha mãe, havia a minha tia, a minha avó (uma mulher com uma fé muito grande em Deus, que vivia o Evangelho até às últimas consequências) e o meu pai. Era um microcosmos onde a mulher nunca esteve num plano de desigualdade. O clima sempre foi, todo ele, no sentido de estimular estas personalidades fortes.
São as mulheres que mandam no casarão do Campo Grande, onde reside, com a sua família?
Exactamente, embora a figura masculina seja muito respeitada nisso somos muito conservadoras. Hoje, ainda assistimos a essa discussão caricata sobre se as mulheres têm importância intelectual…
Ainda se assiste?
Sim, veja o debate sobre as quotas, o acesso das mulheres aos centros de decisão, as mulheres nos partidos políticos. Nada disso fez parte da minha formação as mulheres eram preponderantes, no sentido de preservarem a sua personalidade, as suas escolhas profissionais. Por exemplo, lembro-me de a minha tia ir vender cortiça para a Uniao Soviética e sapatos para os Estados Unidos. A minha bisavó, que já não conheci, teve o primeiro side-car que existiu em Lisboa! Sendo eu uma mulher de Direita e de uma família conservadora, tive essa parte toda que normalmente, por cliché, não se associa à Direita: muita fantasia, muita imaginação, um sentido muito lúdico da vida, muita discussão.
Quando foi construída, aquela casa?
É anterior ao terramoto. Foi uma casa que nos deu muito sentido estético e ético. As coisas não estão lá por acaso, estão lá porque cada geração lutou para as manter. Esta ideia de que somos elos de uma cadeia, talvez seja a coisa mais interessante de uma família antiga.
Esse espírito mantém-se?
Sim, e a ideia de que passamos um testemunho de alguma coisa, um testemunho ético, estético e social.
Como era aquela casa, quando era garota?
Tudo o que estava à volta era completamente diferente. Telheiras era campo, tudo à volta era campo…
Foi mais uma menina do campo do que da cidade?
Sim. Brincávamos na rua e no jardim da nossa casa, que, na altura, era enorme. Passava um eléctrico e algum trânsito, muito pouco. Era um bairro com palace-tes mas também com alguma habitação social, que começava a aparecer na Avenida da Igreja. Na altura, havia convívio interclassista. A casa era labiríntica, muito grande, tinha tudo, sótãos, alçapões, subterrâneos e ainda bocados de túneis que a ligavam ao Convento da Luz.
Então não foi uma menina-da-mamã?
Não, não! Como o meu pai não teve filhos, deu-nos uma educação muito mas culina. Só nos cansamos quando nos podemos cansar, só temos sono quando podemos dormir, só comemos quando podemos comer, só temos frio quando nos podemos aquecer… E havia também o espírito do desporto: eu fiz equitação e vela e ia à caça com o meu pai.
Saía muito à noite, na adolescência?
Comecei a sair muito cedo, para ir a festas. Tivemos uma educação muito liberal.
Que idade tinha?
Uns 14 anos. Só tinha de dizer à minha mãe com quem ia não era preciso men-tir, porque éramos muito livres.Tinha horas para chegar a casa?
Não? Então a família não é rica?
Fui educada a dizer que era feio falar de dinheiro…Não é preciso discutir quando se tem.Não se podia falar de dinheiro nem em ter, nem em não ter, nem em quem tinha mais do que nós… E, depois, não se tinha tudo quanto se podia ter. O facto de poder comprar 20 coisas não quer dizer que as deva comprar. A gestão do dinheiro sempre teve uma componente ética muito forte. Aí, foi muito importante a figura da minha avó, porque nós tínhamos uma “sopa dos pobres” dentro de casa.Como é que funcionava?
A minha avó mandava fazer um almoço para vinte ou trinta. Eles chegavam cerca do meio-dia, na altura em que eu também vinha da escola. Os pratos e os talheres daqueles que tinham tuberculose eram mantidos à parte. Quando vi aparecer a sida e toda a gente com muito medo, achei extraordinário, porque nós fomos educados a lidar com essas situações. Era como se a minha avó quisesse que nós tivéssemos um permanente complexo de culpa por não termos fome.
Ainda sente hoje culpa por ser socialmente privilegiada?
Culpa não, mas necessidade de justificar. Acho que todas sentimos que não trabalhar é horrível, que não ser útil é horrível, que gastar dinheiro a mais é horrível…
Porque foi estudar Direito?
Fascinava-me a ideia do advogado de barra. Devorava, ainda hoje o faço, os filmes todos com advogados. A coisa mais extraordinária foi a greve, durante a crise académica de 1969…
Já tinha preocupações políticas na altura?
Nós fomos muito politizadas. O meu pai era salazarista, aliás trabalhou com o doutor Salazar. Mas naquela casa cruzavam-se muitas tendências diferentes. A minha mãe, por exemplo, não se pode dizer que seja uma pessoa de Direita. Estávamos habituados a discutir à mesa, às refeições…
Mas não “mandavam vir” com o seu pai?
Lembro-me bem de a minha irmã discutir com ele a guerra colonial, aos gritos. O meu pai, a coisa de que mais gostava, era do princípio do contraditório, inteligentemente conduzido. Uma pessoa que não é nada como nós, é, em princípio, uma pessoa que nos interessa. Mesmo as nossas escolhas de amizades e de cumplicidades foram feitas fora do círculo político, contando muito mais a sedução intelectual. Mas a chegada à faculdade foi um grande choque, porque ali reinava claramente a esquerda, em todas as suas facções: maoístas, leninistas, trotskistas.
Esse perfume de rebelião esquerdista nunca a intoxicou?
Intoxicou-me, no sentido em que percebi que não era de Esquerda. Mas percebi, não por ter vindo daquela família… Percebi, quando ficou claro que ia furar aquela greve por causa de um “camarada”, de cujo nome já não me lembro, ter comido os óculos…
Ter comido os óculos?
Foi preso e comeu os óculos.Era vosso colega?
Eu não o conhecia, era de um ano mais avançado. Quem quiser, come os óculos, quem não quiser, não come. Para mim, o raciocínio era tão simples como isso.
A falta de liberdade, a polícia política, a guerra colonial não era sensível a isso?
Com 12 anos, fui dar a volta às colónias. Já sabia que era falsa a ideia que as pessoas davam da guerra d’África. Toda aquela linguagem e toda aquela construção marxista eu já a conhecia. Por isso, não podia ser facilmente seduzida. Era uma activista das coisas em que acreditava mas não estava fechada.
Conheceu, na Faculdade de Direito, Jaime Nogueira Pinto, o seu marido. Como foi esse encontro?
Ele era do último ano. Conheci-o no seguimento do abaixo-assinado para reabrir a universidade. Ele foi a minha casa para que eu assinasse…
Foi tiro e queda?
Eu percebi que foi tiro e queda, ele não, graça a Deus, porque teria sido humilhante para mim. Eu tinha um namoro muito pegado mas ele apareceu e desarrumou tudo… Lá está, o fascínio intelectual é uma coisa muito importante. Casámo-nos em Lisboa, tinha eu 19 anos.
E como é que foram para Angola?
O meu marido ofereceu-se como voluntário. A guerra estava perdida precisa-mente porque os melhores estavam cá. Iam as pessoas que não tinham qualquer entendimento do que se estava a passar ali. Partimos logo a seguir ao 25 de Abril.
Já tinha nascido o seu primeiro filho?
Porque não ficou cá?
Primeiro, está-se com o marido, acho eu. Quando o Jaime foi para África, percebi que era muito importante estar com ele, que iam acontecer coisas…
Foram para o Uíge?
Primeiro, estivemos em Luanda. Quando o Rosa Coutinho foi colocado em Luanda, o meu marido passou para o Uíge.
De onde fugiram, num Mercedes, até à Namíbia.
Não, não… Nós não sabemos guiar, nem ele, nem eu.
Mas por que é que tiveram de sair?
Porque cercaram a nossa casa do Campo Grande, para nos prender, com mandados de captura. Julgavam que estávamos em Portugal. Foi a seguir ao 28 de Setembro. Nesse dia, a rádio, em Angola, já estava tomada pelo Rosa Coutinho, e as notícias só falavam de pessoas presas em Lisboa praticamente todas as que conhecíamos. Fui ao posto dos Correios para falar com a minha família, em Lisboa. Só consegui apanhar a minha tia de madrugada e ela disse-me: “Era bom que o pai do Eduardo fosse de férias.” Era o sinal para sairmos. Então fui a Luanda para me encontrar com um amigo do meu marido. Disse-lhe que tínhamos de sair de Angola e que não sabíamos guiar. Ele ficou a olhar para mim, durante uns segundos, e pensei: “Vais dizer que não, estás com medo!”. Então, pegou em mim, levou-me para o carro e fez-me perguntas. Depois, foi buscar outra pessoa, porque não podia guiar durante todo o trajecto até à fronteira. E deu-nos uma boleia de mil e tal quilómetros…
Mas ainda foram buscar o seu marido?
Ele saiu na camioneta dos sacos do café do senhor Esteves… Está a ver, eu não sou de lado nenhum, sou de todos estes lados. É a minha rede. Não vejo o senhor Esteves com muita regularidade, está em Carrazeda de Ansiães, mas o senhor Esteves é que é importante na minha vida.
Numa das regiões que tínhamos de atravessar, era comandante um grande amigo nosso, que foi à frente para o caso de haver barreiras na estrada. E assim chegámos ao Cátequero, onde estava uma prima do Esteves, por sua vez prima do senhor Banana, que tinha uma plantação e gado e as portas abertas para o Sudeste, por onde podíamos passar a salto. E assim atravessámos a pé a fronteira. Quando lá chegámos, o meu marido disse-me para eu avançar, porque era mulher e seria mais fácil. A polícia sul-africana disse-me: “Sigam. Sigam”. Mas nós não tínhamos carro.
E depois, o que aconteceu?
Passados quatro dias, disseram que nos iam colocar num campo. Eu, como sou uma romântica, julgava que nos iam mesmo colocar no campo, talvez a apanhar laranjas ou morangos. Percebi mais tarde que era um campo de refugiados. Só nos davam pão, manteiga de amendoim e uma sopa. No primeiro dia, deram-me uma lata de fiambre vazia para a comida. Ao fundo, estavam três senhoras da Cruz Vermelha, loiras, com as batas muito engomadas e eu tinha ao pescoço… Eu levei as minhas jóias, para as vender parte delas já tinham ido para Angola a pensar nessa possibilidade. Mas, na altura, a única coisa que levava ao pescoço era um fiozinho de prata que tinha a Fé, Esperança e Caridade, portanto, a Cruz, a Âncora e o Coração. Quando lá cheguei, com a minha lata, elas puxaram-me o fio do pescoço, para verem melhor, como se eu fosse um bezerro. Foi aí, claramente, que percebi a nossa situação.
Quanto tempo ficou no campo?
Uma semana, porque eu, depois, organizei a saída. Percebi que a enfermaria era fora do campo e que se simulasse sentir-me mal seria levada. Fingi ter dores de estômago e uma enfermeira levou-me. Quando estava quase a chegar ao posto de enfermagem, comecei a correr, com a mulher atrás de mim. Entrei de supetão, no pré-fabricado onde estava um funcionário, e comecei a falar com ele. Foi aí que aprendi que era muito importante ter os olhos azuis e ser louro e naquela terra, então… Expliquei-lhe que tínhamos capacidade para sair dali e arranjarmos trabalho. Puseram-nos fora.
E o que fizeram?
O meu marido ficou como tradutor de contratos.
E você?
Candidatei-me para o coffee shop do Carlton, mas nunca lá cheguei a trabalhar.
Quanto tempo ficou no África do Sul?
Cerca de um ano.
Entretanto, veio à Europa buscar o seu filho, que tinha ficado com a sua família.
Ah, essa é que foi a grande aventura. Fui vender as minhas jóias. A entrada no Cartier foi qualquer coisa! Pensavam que as tinha roubado, porque nada provava que fossem minhas. Mas, ao mesmo tempo, o olho azul… Era o dinheiro de que nós precisávamos, para vivermos, até o meu marido ganhar o primeiro ordenado, e para vir buscar o menino.
E o seu filho?
Para a criança sair, era preciso autorização do pai, a lei ainda não tinha mudado. A mãe não mandava nada. O cônsul tinha sido saneado e era um empregado do Partido Comunista quem tomava conta do consulado. Portanto, não aceitou as assinaturas do meu marido. Então, eu precisava de ir a Madrid, para falar com a minha mãe. Encontrei-me com a minha mãe e depois foi necessário organizar a saída do meu filho, que teve de deixar Portugal como se fosse meu sobrinho. De seguida, fomos para o Brasil, para o Rio de Janeiro.
Onde vendeu enciclopédias?
Sim. E fui tão bem sucedida que me puseram a fazer um curso de vendas.
Porque não podiam regressar a Portugal?
O meu marido era desertor e queria ser julgado por isso. Portanto, só regressámos quando lhe foi marcado o julgamento.
Em Portugal, trabalhou com António Barreto, com quem fez investigação, e terminou o seu curso de Direito. Mas tornou-se conhecida quando, como subsecretária de Estado da Cultura, interditou o antigo Estádio de Alvalade. O que aconteceu?
Um dia, tive uma reunião de trabalho com um director-geral, que me disse que tinha um “assunto na gaveta”. Era a pala, com um relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil. Eu falei com o Pedro Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, e disse-lhe que se o assunto ficasse comigo interditaria a pala. Ele disse que ficava eu interditei-a.
E depois?
Cumprimentos do professor Cavaco Silva, e tal… Parto para férias e vejo na televisão, três dias depois, o doutor Santana Lopes e o Sousa Cintra a passearem… Santana Lopes desinterditara o estádio!
Ficou zangada?
Não mas percebi, antes de todos, quem era Pedro Santana Lopes. E também quem era o professor Cavaco Silva.
O que se passou com Cavaco Silva?
Chamou-me para falar com ele, no Algarve, onde estava de férias. Eu disse-lhe que tinha de sair, porque fora desautorizada. Ele disse-me que não, que ia confirmar o meu despacho. E pediu-me 48 horas. Passado esse período, sem nenhuma alteração da situação, chamei as rádios e anunciei a minha saída.
Ficou magoada com o poder político?
Não. Durante quatro dias, recebi telegramas das pessoas que me apoiaram muito nesta história.
Durante o Governo de Durão Barroso, acabou por ser apontada várias vezes como ministeriável…
A vontade de me ministeriar era do PSD, não era do meu partido.
Porque é o que o povo português, maioritariarmente conservador, não vota mais no CDS-PP?
Porque o discurso da Direita partidária não é consistente. Quer Manuel Monteiro quer Paulo Portas partiram muito do eleitorado para as ideias. Os descamisados da integração europeia, os pensionistas, os ex-combatentes, os pobrezinhos… Isso não tem consistência nenhuma.
Concorda que se resolva por via legislativa os julgamentos de mulheres por causa do aborto, enquanto não existe novo referendo sobre o assunto?
Isso é a ponta do iceberg. As prisões não estão cheias de mulheres que abortaram. Os juízes levam em conta as chamadas circunstâncias atenuantes não é preciso uma lei que atenue. Eu trabalhei numa maternidade [Alfredo da Costa], que foi, aliás, pioneira da fertilização in vitro, e a minha familiaridade com a vida embrionária foi muito grande. Acredito que a vida humana embrionária é importantíssima e, portanto, aqui não posso ceder absolutamente nada.
Uma ligação entre homossexuais é para si uma família?
Não. É uma união de facto.
E podem criar filhos, por exemplo de uma ligação anterior?
Nos casos em que mãe que tenha um filho e viva com uma companheira que seja uma boa presença para a criança, não fazendo de conta que é pai, sim. Um homem tem todo o direito de viver em união de facto com outro, ou uma mulher com uma mulher, e se já forem pais naturais, isso não tem mal nenhum. Mas ir buscar uma criança e ficar com ela como uma experiência… Isso não uma criança não é uma coisa, é um ser humano.
Se o seu partido precisar de um candidato para a Câmara Municipal de Lisboa, avançará?
Enquanto for provedora, não serei candidata.
O “caso dos sobreiros” vai manchar o CDS?
Mais uma vez houve aqui uma violação do segredo de Justiça. Temos de presumir a inocência dos visados, mas era bom que isto se esclarecesse depressa seria o melhor para o partido