No balcão Amoreiras II do Montepio Geral, a conta principal do Banco Insular, IFI, SARL, de Cabo Verde, é um registo cronológico da história do caso BPN. Em quatro anos, entre 1999 e 2002, quando aquele banco cabo-verdiano pertencia à sociedade de corretagem Fincor, os contos de réis passavam a conta-gotas. Dois milhões de euros, na moeda actual, foi a movimentação total desse período. Mas a compra, em 2002, da Fincor pela Sociedade Lusa de Negócios (SLN) alterou este ramerrame. O Banco Insular, oficialmente, foi vendido a um
offshore inglês, que, por sua vez, pertencia a um
offshore americano, que, por sua vez… também era da
holding de Oliveira e Costa.
Foi o Banco de Portugal (BdP), através de António Marta, responsável pela supervisão, que impediu a entrada do Insular no grupo do BPN. Mas a liberdade dos “paraísos fiscais” fintou o supervisor. Durante cinco anos, o Banco Insular, terra de ninguém com duas contas no Montepio, serviu, segundo António Franco, ex-director de operações do BPN, “grosso modo, para ocultar prejuízos e lucros, financiar empresas do grupo e esconder operações”. Em apenas quatro anos, entre 2003 e 2007, o Insular movimentou verbas superiores às do Orçamento de Estado de Cabo Verde para 2009: 510 milhões de euros.
Tudo era feito às claras, em Portugal, num banco respeitável e vetusto (o último que resta da tradição mutualista). Por ali entravam ordens de pagamento, como a dos 11 milhões da Volipart SGPS, subsidiária da Planfin (detida em 19% pela SLN e em 24% pelo seu administrador Luís Caprichoso). Ou a dos 250 mil euros entregues pela Fincor (antiga proprietária do banco, agora detida em 80% pela SLN). Ocultar, financiar, esconder. Tudo nas barbas do regulador. Esta é a história de uma “megafraude”, como lhe chamou o ex-presidente da SLN, responsável por grande parte das denúncias, Miguel Cadilhe. O Bloco de Esquerda quer, agora, ouvir o ex–presidente do Montepio, Silva Lopes, para saber que tipo de comunicação existiu com o Banco de Portugal. A VISÃO falou com António Tomás Correia, actual presidente, que garante terem sido “seguidos escrupulosamente todos os procedimentos” neste caso. Tomás Correia diz não dispor de nenhuma informação sobre pedidos feitos pelo BdP, nem sobre alguma comunicação de irregularidades do Montepio ao supervisor.
Depois de António Marta ter chamado os administradores do BPN à sede do BdP, em Maio de 2006, e os ameaçar com a proibição da actividade comercial, a conta principal do Insular só registou mais quatro movimentos. O último saldo disponível é de 12 de Novembro de 2007: 229 572 euros e 27 cêntimos. Na segunda conta, o mesmo: cinco movimentos finais, saldo a zero, em Janeiro de 2007. Estava a começar a tempestade.
Em 10 de Dezembro de 2004, no auge da actividade do Insular, o procurador Jorge do Rosário Teixeira enviou uma carta ao BdP, com uma pergunta: o Banco Insular está autorizado ou pediu para operar em Portugal? A consulta refere que a investigação se centra numa infracção económica de dimensão internacional, cometida de modo organizado. A chefe do Serviço do Departamento de Supervisão, Maria São José Imaginário, respondeu, no dia 27 de Dezembro, que não. O Insular não consta dos registos do BdP. Durante dois anos e meio, com a Operação Furacão pelo meio, o Departamento Central de Investigação e Acção Penal não voltou a perguntar nada.
E o supervisor não entrou em alerta amarelo com a pergunta do magistrado. Os milhões do Insular continuaram a fluir.
Era tanta a confiança na permeabilidade do sistema que o banco ordenou, via Montepio, 130 movimentos ao abrigo do Sistema de Pagamento para Grandes Transacções, um registo próprio para transferências entre bancos, de notificação obrigatória ao Banco de Portugal, no valor de 180 milhões de euros. E nem isto levantou qualquer suspeita. Oliveira e Costa era um banqueiro experiente. E tinha uma vantagem: fora, no final da década de 70, ele próprio responsável pela supervisão bancária, no banco central. Sabia, decerto, que dos 1 700 funcionário do BdP, apenas 203 se ocupam de uma das principais funções do regulador: a fiscalização da actividade bancária. Desses, apenas uma pequena parte (não mais que 100) estão “no terreno”, fazendo inspecções “prudenciais” a 320 instituições financeiras, das quais 39 bancos. Governador ‘sonolento’?
Olhar para as contas do Insular, hoje, é quase como um exercício de história contrafactual. Se alguém, no Banco de Portugal, tivesse associado o nome do Banco Insular, que constava da carta enviada pelo DCIAP, ao do banco que o vice-governador António Marta impediu de entrar no grupo SLN, talvez o actual buraco de 1 800 milhões de euros, que impende sobre os contribuintes portugueses fosse menor. Se alguém, no banco central tivesse accionado, ainda em 2004, algum mecanismo preventivo sobre aquele nome que intrigava a Justiça, talvez as “irregularidades graves na actividade do Banco Insular, com riscos criminais” de que fala, hoje, João Carvalho das Neves, administrador da SLN, fossem parte de um processo menos complexo.
Fonte próxima de Vítor Constâncio garante que seria impossível fazer diferente. Desde logo porque publicitar um pedido de cooperação do DCIAP poderia pôr em risco a própria investigação. No fundo, como afirmou o governador numa audição parlamentar, “num sistema de organização capitalista de mercado de livre iniciativa, há fraudes, há corrupção, há tudo isso, em todos os países e em todos os sectores, e não há regulação e supervisores que descubram todas essas fraudes quando elas estão a ser cometidas. É impossível!”
Será. Mas o BdP fez cinco inspecções ao BPN e nada descobriu. E assim continuou quando, em 15 de Junho de 2007, Rosário Teixeira, do DCIAP, reformulou a pergunta: Há registos de operações do Banco
Insular de Cabo Verde?
“Não temos conhecimento”, responderam Luís Carvalho e Silva Ferreira, do departamento de supervisão bancária, em 11 de Julho. E pediram que o magistrado esclarecesse se estava em causa o exercício irregular de actividade por parte do Insular.
Até que… “pela primeira vez” surgiu nas inspecções ao banco, “numa análise de um dossiê de crédito, uma relação financeira com o Banco Insular, ou seja, uma transferência fazendo um pagamento para uma conta do Banco Insular num outro banco português, em Lisboa”, explicou Constâncio, no Parlamento.A descoberta foi transmitida à investigação judicial no dia 2 de Janeiro de 2008. O Banco de Portugal admite ter detectado duas transferências de fundos que envolvem o Insular, ambas relativas ao ano de 2004.
Em 5 de Março último, Rosário Teixeira associa, pela primeira vez, o Insular ao BPN. Fala em branqueamento de capitais e financiamento de actividades que envolvem accionistas do BPN. Mas o regulador ainda esperou por Junho para se declarar surpreendido com as ligações que o magistrado registara, meses antes. E, oficialmente, garante Constâncio, só com a confirmação da administração da SLN (então presidida por Abdool Vakil, após a saída de Oliveira e Costa) é que o governador admite ter relacionado o Insular com o BPN.
A isto, Miguel Cadilhe chamou “uma falha grave e demorada de supervisão”, Paulo Portas falou de “uma leitura sonolenta dos poderes” do governador e Francisco Louçã juntou, a propósito, os adjectivos “paradoxal, surpreendente e inaceitável”. Vítor Constâncio, no centro da polémica, lá vai repetindo que “supervisão não é espionagem”. E deixa no ar um paradoxo: “Não se pode pretender, nuns momentos, que a regulação não pode matar a inovação financeira, não pode ser demasiado intrusiva, porque é preciso deixar funcionar o mercado e a iniciativa, e, noutras vezes, pretender-se que a supervisão seja uma espécie de ramo administrativo do Ministério Público, com os poderes do FBI ou do KGB…!”
Resolver este dilema podia ter valido quase 2 mil milhões de euros. E, já agora, dar alguma confiança num sistema bancário abalado por escândalos sucessivos.