E se fosse um português o único judeu do mundo condecorado pela Alemanha nazi? A VISÃO que chega esta quinta-feira às bancas revela, em exclusivo, este segredo do Terceiro Reich, divulgado no livro O Segredo da Rua d’O Século. A obra, editada pela Fim de Século, será divulgada publicamente na próxima semana. Aqui, pode ler, em primeira-mão, a “Introdução” do livro. E está aberto o debate. Dê opinião no espaço de comentário, no final desta página. O Segredo da Rua d’O Século – Introdução A investigação histórica tem isto de comum com as revoluções, que uma e outras derrubam monumentos. A investigação não questiona apenas a nossa imagem do passado, a visão que temos de civilizações perdidas, de épocas próximas ou longínquas, de processos económicos, sociais e políticos: acontece-lhe também pôr em causa a imagem deixada à posteridade por pessoas de carne e osso, dissipar mitos que rodeiam os nossos próceres e, por vezes, apeá-los de pedestais que ocupavam indevidamente. A imagem deixada à posteridade por Moses Bensabat Amzalak (1892-1978) é a de uma eminente figura da vida académica portuguesa e da vida política e espiritual do judaísmo, uma sumidade que marcou não só a história da comunidade judaica de Portugal, mas também a do próprio país ao longo do século passado. Amzalak foi presidente da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) durante mais de cinquenta anos, ou seja, de 1927 até à sua morte, em 1978 . Ele detém, portanto, um record de longevidade: foi ele quem passou mais anos à frente daquela comunidade, fundada em 4 de Março de 1897, em Lisboa . Nos vários escritos que lhe são consagrados, não parecem existir palavras bastante fortes quando se trata de prestar-lhe homenagem. Assim, Abraham Elmaleh, contemporâneo de Amzalak, adverte-nos, em jeito de introdução a uma biografia hagiográfica publicada em 1962, que “é mesmo necessário ter uma grande audácia para tentar expor, no quadro de um estudo, as doutrinas científicas de uma glória da ciência moderna com o calibre deste sábio, e para falar da vida de um homem que, como a do nosso grande erudito de Lisboa, está cheia de trabalho, de dedicação e sacrifício” . Ainda recentemente, por ocasião do 25.º aniversário da morte de Amzalak, o antigo presidente da CIL, Samuel Levy, e a actual vice-presidente, Esther Mucznik, prestavam uma homenagem vibrante àquele que, além de ter consagrado a sua vida à Comunidade, foi também um eminente cientista, professor, escritor e investigador . Com efeito, as actividades do dirigente judeu estão longe de se limitar à CIL. O homem toca diversos instrumentos, que fazem dele uma personalidade de peso em vários domínios da sociedade portuguesa do século XX. Em primeiro lugar, ele faz uma impressionante carreira académica, exercendo, desde 1931, funções directivas e docentes no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF) da Universidade Técnica de Lisboa, na qual será reitor entre 1956 e 1962. O economista Amzalak receberá doutoramentos honoris causa de uma dúzia de universidades e publicará mais de 300 títulos. Ele é também membro de várias sociedades académicas de renome como, em Portugal, a Academia de Ciências de Lisboa, à qual várias vezes presidirá, e, no estrangeiro, a Académie Diplomatique Internationale de Paris e outras. Vários autores referem-se também às numerosas condecorações que Amzalak recebeu, entre as quais a comenda da Legião de Honra francesa e a Ordem do Império Britânico. Além disso, ele exerce na sociedade portuguesa uma considerável influência política, desde logo como um dos responsáveis, durante boa parte dos anos 20 e 30, de O Século, um dos grandes diários portugueses, quase até ao final do século XX. Mais precisamente, Amzalak terá chegado a deter nesse período metade do seu capital social. Assim, segundo Elmaleh, “enquanto co-proprietário e administrador deste importante jornal, ele teve uma influência muito grande, publicando por vezes artigos anónimos”. Por outro lado, Amzalak é amigo de Salazar, desde os tempos em que estudaram juntos na universidade. Próximo do ditador, ele assumirá vários cargos públicos, nomeadamente o de membro, durante 25 anos, do júri dos concursos para a carreira diplomática no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Testemunho adicional da confiança que nele deposita o ditador, Amzalak é, em 1959, delegado do governo português ao Congresso do Atlântico Norte, organizado pela NATO. Paralelamente ao seu prestígio académico e à sua influência política, ele saberá ainda construir, “uma bem-sucedida carreira nos negócios”, como observa a Encyclopaedia Judaica, numa nota biográfica que lhe dedica. Com efeito, Amzalak é membro do conselho de administração de várias empresas privadas, em particular, das principais empresas petrolíferas do país – administrador da Sociedade Nacional Anónima Concessionária da Refinação de Petróleos de Portugal (SACOR) e presidente do conselho de administração da Companhia Portuguesa de Petróleo, SARL. Enfim, tanto na historiografia como nas homenagens que lhe foram dedicadas, releva-se frequentemente o papel importante ou mesmo decisivo que ele desempenha, como presidente da CIL, durante a Segunda Guerra Mundial, no apoio aos refugiados judeus em Lisboa. No seu elogio de Amzalak, Luís da Câmara Pina recorda-nos, por exemplo, que “ainda na última Guerra Mundial dirigiu uma organização para o acolhimento de fugitivos israelitas, provenientes sobretudo da Europa Central, e, graças à sua influência, à sua dedicação, ao seu exaustivo esforço, milhares de pessoas puderam esperançadamente recomeçar a vida, muitos talvez não a perder”. Resumindo, para a vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, Esther Mucznik, a “vida de Moses Amzalak é um exemplo de dedicação à causa do judaísmo e da Comunidade. Saibamos não apenas lembrá-lo, mas também seguir o seu exemplo”. Opinião partilhada pelo antigo presidente, Samuel Levy, segundo o qual Amzalak deixou à Comunidade o exemplo a seguir na defesa dos interesses dela própria e da vida judaica. Para estes dois dirigentes, Amzalak não é uma grande figura do passado, e sim um modelo a seguir no presente e no futuro. A esta altura, quem nos lê já terá, sem dúvida, adivinhado: a autora e o autor do presente livro tiveram o atrevimento de pôr em causa esta estátua erigida a Moses Bensabat Amzalak. Mas, antes de entrar no tema, temos de colocar este livro no contexto próprio. Ele leva duas assinaturas: uma é do autor de Conspiradores e Traficantes. Nesse livro, publicado em 2005, revelavam-se aspectos da actividade de Moses Bensabat Amzalak destoantes do retrato oficial que acabámos de esboçar. Para começar, remontava-se ao começo dos anos 20 e evocavam-se alguns factos bem conhecidos, para explicar as origens da confiança que Salazar mais tarde, já no poder, iria depositar em Amzalak. Durante este período, a influente Associação Comercial de Lisboa (ACL), presidida pela nossa personagem, é, simplesmente, a pedra angular, a nível civil, do golpe de Estado que se prepara em Portugal. Neste contexto, Amzalak toma, com dois outros dirigentes da ACL, João Pereira da Rosa e Carlos Oliveira, o controlo de O Século, um dos diários mais importantes do país, como atrás se referiu. Nas mãos dos três novos proprietários, O Século torna-se um poderoso órgão de agitação contra o regime republicano. Após o golpe de Estado de Maio de 1926, O Século mantém-se sempre como um dos dois mais importantes diários portugueses. Ora, nos anos 30, o jornal adopta uma orientação cada vez mais fascista e, a certa altura, marcadamente germanófila. Em 18 de Fevereiro de 1935, constatava-se em Conspiradores e Traficantes, o importante diário irá mesmo ao ponto de publicar um número especial de propaganda nazi. Entre outras, Amzalak cultiva relações com o representante nazi em Lisboa, o chefe da Legação alemã, barão Oswald von Hoyningen-Huene. Enfim, em Conspiradores e Traficantes mencionava-se também as acusações contra Amzalak por parte de um certo Isaac Weissman, delegado em Lisboa do Congresso Mundial Judaico (WJC) durante parte da Segunda Guerra Mundial. Weissman acusara, em especial, o presidente da CIL de ter sido condecorado pelos nazis nos anos 30 e de nunca ter achado oportuno devolver essa condecoração. Vários dirigentes da Comunidade Israelita de Lisboa reagiram com veemência às sombras lançadas sobre “o chefe venerado da sua comunidade”. A vice-presidente Esther Mucznik classificou-as na imprensa como “calúnia vergonhosa”. Os dois antigos presidentes, Samuel Levy e Joshua Ruah, consideraram o relato “absolutamente inverosímil” e testemunharam a honorabilidade de Amzalak, com quem, no passado, trabalharam ombro a ombro. A CIL prometeu solenemente “ir até ao fim” para repor a verdade sobre o seu dirigente. Ruah anunciou mesmo um pedido de investigação que seria feito ao WJC. Dois historiadores, o israelita Avraham Milgram e a portuguesa Irene Flunser Pimentel, manifestaram-se também sobre o tema, pondo em dúvida, ao menos em parte, a veracidade das alegações de Weissman contra Amzalak e atribuindo-as à hostilidade entre os dois homens. Ninguém desmentiu, nem podia, o facto da separata. Mas os dirigentes da CIL procuraram reduzi-la à dimensão de pecadilho a destoar duma biografia marcada, toda ela, por nobres causas humanitárias. Dir-se-ia que Amzalak tinha cometido um deslize como o de Frei Genebro – a personagem queirosiana que, depois de uma vida em cheiro de santidade, perdera a sua alma por cortar uma pata à cria dum javali, deixando-a agonizante, sem lhe desferir o golpe de misericórdia. Ainda assim, a diferença estaria em que Amzalak não perderia a alma e teria agora direito a mais um monumento de papel erigido com o aval do WJC. Neste ponto, cada um deverá desquitar-se dos compromissos que contraiu. A polémica desencadeada na altura criou aos dirigentes da Comunidade Israelita de Lisboa a responsabilidade de publicarem os resultados da investigação anunciada e criou ao autor de Conspiradores e Traficantes, agora co-autor deste trabalho, a obrigação de pesquisar mais alguma coisa sobre a actividade de Amzalak. Teria sido puro sensacionalismo lançar no mundo um facto espantoso, como foi a divulgação pontual de propaganda nazi por um dirigente judeu, e nada mais fazer para explicar esse facto, o sujeito que o produziu, o contexto em que ocorreu. Assim, o autor roído de escrúpulos meteu ombros a uma leitura dos editoriais e a uma apreciação das principais manchetes de O Século entre 1935 e 1938. Quanto mais avançava na leitura, mais se convencia da articulação, da consistência e da clareza das prioridades que inspiravam a orientação do jornal. Fiel ao regime salazarista, O Século representou, contudo, durante parte dos anos 30, um grupo de pressão francamente favorável à Alemanha nazi. A separata não podia ser obra do acaso nem tinha caído do céu. Justificava-se, portanto, insistir junto de vários arquivos alemães onde, numa primeira abordagem, não fora possível encontrar provas da relação entre Amzalak e o nazismo. A insistência iria dar finalmente os seus frutos: com efeito, Amzalak recebeu uma condecoração nazi em 1935. Dois anos depois, pediu ao chefe da Legação alemã, Hoynningen-Huene, uma miniatura dessa condecoração. O diplomata diligenciou obtê-la, enviou-lha e juntou-lhe uma carta em reconhecimento da “colaboração” [sic!] que vinha tendo lugar entre ambas as partes (vd. capítulo 1 e anexos documentais). Condecoração que – será preciso sublinhá-lo? – não vai constar, mais tarde, na lista oficial de distinções recebidas pelo dirigente judeu em diversas homenagens consagradas à sua pessoa. Entretanto, a co-autora deste livro estava a investigar em Londres e encontrava, no Public Record Office, documentos que testemunhavam, também eles, a actividade do dirigente judeu português, nos anos 1935-1938. A necessidade de cruzar os resultados das duas investigações tornava-se evidente. Além disso, o prosseguimento de investigações em diversos arquivos e bibliotecas, em Portugal e no estrangeiro, trouxe provas adicionais sobre a ligação continuada entre Amzalak e o nazismo anterior à guerra. O significado desses documentos tem alcance internacional: o presidente da Comunidade Israelita de Lisboa foi, tanto quanto se sabe, o único alto dirigente judeu do mundo inteiro a receber uma condecoração nazi. Esta conclusão acontece, talvez, ser iconoclasta, como tantas vezes o tem sido a investigação histórica. Mas os elementos realçados pela nossa análise não se limitam ao episódio da condecoração: as afinidades do dirigente judeu com o fascismo e com o nazismo tiveram implicações nas suas actividades como responsável de um grande jornal, como director de um importante instituto universitário ou, ainda, como presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, nos anos 30 e, inclusivamente, para além deles. Para que o leitor ou a leitora possa fazer a sua própria apreciação, aí fica o detalhe dos passos que demos e do caminho que percorremos. O capítulo 1 concentra-se sobre o episódio da condecoração e sobre as ligações de Amzalak com a Alemanha nazi, tal como as encarava a poderosa Embaixada britânica em Lisboa, de 1935 a 1938. O capítulo 2 analisa o conteúdo de O Século durante esse mesmo lustro dos anos 30. O capítulo 3 retoma as alegações contra Amzalak por parte de Isaac Weissman, o delegado do Congresso Mundial Judaico, e debruça-se brevemente sobre alguns aspectos do papel da CIL na assistência aos refugiados judeus nos anos 1933-1945. O capítulo 4 trata da atitude dos judeus perante o fascismo na Europa dos anos 30, em especial, a partir de dois case studies diametralmente opostos: a Itália fascista e a Espanha republicana. Nele se traduz a convicção da autora e do autor deste livro de que a existência de um ou, mais tarde, de vários dirigentes judeus com ligações ao nazismo nada muda ao facto de os judeus terem estado à cabeça do rol de vítimas do Holocausto. Judeus a militarem nos movimentos fascistas e judeus a militarem contra esses movimentos são simplesmente sujeitos actuantes, que olharam, de formas diversas, o ovo da serpente nos primeiros estágios da sua gestação e, depois, reagiram de formas diversas perante um dos mais bárbaros genocídios de sempre. Contra estes factos, nada pode a mais elaborada sofística revisionista. Nota: Este texto constituiu a Introdução do livro O Segredo da Rua d’O Século. Para uma leitura mais simplificada na internet, foram-lhe retiradas as notas bibliográficas que constam da edição impressa.
O fantasma de Amzalak

Moses Amzalak, antigo líder da Comunidade Israelita de Lisboa, terá sido o único judeu no mundo condecorado pelos nazis. A VISÃO revela, em exclusivo, a investigação dos historiadores António Louçã e Isabelle Paccaud