Quando o exército russo entrou em massa na Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, Volodymyr Vitaliyovych, militar das Forças Armadas da Ucrânia, foi chamado a combater, para comandar um pelotão. Despediu-se da mulher, Snizhana Volodymyrivna, 33 anos, e das duas filhas, de 4 e 5 anos, abandonou Zhytomyr e juntou-se à sua brigada. Snizhana pegou nas filhas e, tal como milhões de ucranianas, seguiu na direção oposta, dirigindo-se à fronteira com a Polónia, para fugir do país. Ao fim de três semanas na Polónia, seguiu para a Alemanha e depois para a Chéquia, onde conheceu voluntários portugueses que a convenceram a vir para Portugal com as crianças.
As três chegaram a Coimbra depois de uma viagem de três dias de autocarro e passaram algumas noites num pavilhão desportivo. Uns dias mais tarde, já em abril, disseram-lhe que tinha abrigo em Miranda do Corvo, onde ficaria numa residência da Fundação ADFP, juntamente com outras refugiadas.
Daí a seis meses, Snizhana ficaria sem as filhas.
A 31 de outubro, Snizhana foi chamada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) local. Apresentaram-lhe um documento para assinar – em português. “Usaram o tradutor do Google no telemóvel para me dizerem que havia queixas sobre as crianças, que eu não podia bater-lhes e que, se não assinasse, iam para tribunal e eu ficava sem elas. Eu estava cheia de medo e assinei o papel”, conta a refugiada ucraniana à VISÃO.
Snizhana garante que não percebeu que tinha acabado de assinar um “acordo de promoção e proteção” que lhe retirava as filhas e as institucionalizava durante um ano. Tanto que saiu dali e foi buscar as filhas à escola, como fazia todos os dias.
Na escola, não a deixaram levar as filhas nem despedir-se delas.
CPCJ não explica a situação
A ucraniana não desmente que, às vezes, dá palmadas às filhas, e que chegou a fazê-lo em público, quando as foi buscar ao jardim de infância. “Um dia, dei um estalo a uma delas, na escola, porque estava frio e ela teimava que não queria vestir o casaco.”
Snizhana conta que lhe disseram que, se arranjasse um emprego, as crianças lhe seriam devolvidas. Acontece que ela não quer um emprego: quer apenas regressar à Ucrânia. Mas, enquanto não lhe forem devolvidas as filhas, está presa em Portugal.
As crianças foram levadas para uma casa de acolhimento residencial em Coimbra, a 20 quilómetros de Miranda do Corvo. A mãe tenta marcar visitas constantemente, mas até agora só a deixaram vê-las sete vezes, sempre só uma hora de cada vez. Esta quinta-feira, 16, vai vê-las pela oitava vez. Fez o pedido a 27 de fevereiro.
A VISÃO enviou, por email, várias perguntas à CPCJ de Miranda do Corvo. Entre elas, qual a razão para que as crianças tenham sido institucionalizadas e porque tinha sido dado à mãe um documento em português para esta assinar, não tendo sido chamado um intérprete que lhe explicasse o que estava a assinar.
Em resposta, o presidente da CPCJ de Miranda do Corvo, Fernando Saavedra, disse apenas que “as comissões de proteção de crianças e jovens não podem pronunciar-se sobre casos concretos – motivo pelo qual se não remetem as informações solicitadas – sendo certo que todas as decisões por elas tomadas têm em conta o superior interesse das crianças e jovens e que a sua intervenção depende do consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso”. E remeteu para a lei que impede os jornalistas de identificar as crianças em risco, sob pena de crime de desobediência.
Documento nulo?
Ana Perdigão, jurista do Instituto de Apoio à Criança, explica que a CPCJ optou pela “medida mais grave, a institucionalização”, mas sublinha que este processo passa sempre pelo consentimento dos progenitores. “Nas comissões, os pais são chamados a dar o consentimento. É-lhes explicado tudo, o que é a comissão, as medidas em causa, a matéria sinalizada e as consequências de não aceitar, que passa por remeter a decisão para o tribunal. Só numa situação de urgência, quando está em risco a saúde física ou emocional da criança, ou a própria vida, é que a comissão retira as crianças aos pais, comunica ao Ministério Público e, em 48 horas, o tribunal dá suporte à decisão.”
A especialista não compreende, no entanto, por que razão neste caso não foi chamado um intérprete para explicar o documento, dada a importância de a mãe saber, para lá de qualquer dúvida, o que estava a assinar. “Ela assinou a institucionalização das crianças. Tinha o direito de perceber bem que era isso que estava em cima da mesa e decidir não dar o consentimento. A senhora pode agora fazer uma reclamação para a Comissão nacional, a dizer que não foi devidamente esclarecida.”
Além disso, continua, o acordo de promoção e proteção exige o consentimento de ambos os pais. O pai está destacado na guerra, o que dificulta o contacto, mas, “mesmo que estivesse incontactável, a comissão tinha de provar que tentou contactá-lo.”
Rita Sassetti, advogada especializada em Direito da Família, considera que o facto de o acordo estar em português é “uma ilegalidade” e torna-o “completamente nulo”. “Faria mais sentido que a mãe se recusasse a assiná-lo e não tivesse medo que o processo seguisse a via judicial, porque a partir desse momento, sendo estrangeira, tem direito a um tradutor em todos os atos processuais. O tribunal apuraria as reais condições de vida das crianças, se estariam efetivamente em risco, e a mãe teria garantido um acompanhamento completamente diferente daquele que resulta daqui.”
A advogada acrescenta que o melhor neste caso seria a mãe retirar o consentimento da intervenção e ir para tribunal, onde teria direito a ser representada por um advogado oficioso.
O desespero do pai
O Consulado da Ucrânia no Porto já se envolveu no processo, sem sucesso. Fez um primeiro pedido de esclarecimento à CPCJ de Miranda do Corvo a 30 de janeiro; não obtendo resposta, voltou a tentar daí a duas semanas, a 14 de fevereiro. A 15 de fevereiro, a comissão respondeu que não daria quaisquer informações uma vez que o consulado “não tinha “fundamento legal para representar os interesses da requerente”.
Nesse mesmo dia, o consulado insistiu, citando as normas da Convenção de Viena nas Relações Consulares. Nova resposta negativa: Snizhana não estava impedida de “contactar pessoalmente a comissão de modo a obter informações relativas à retirada temporária das menores”. O consulado enviou, então, pedidos de esclarecimento para a CPCJ de Coimbra e para o tribunal da mesma cidade.
O pai das meninas, que nunca conseguiu falar com elas desde que ficaram à guarda da CPCJ, apelou ao consulado que fizesse tudo o que fosse possível para ajudar Snizhana a recuperá-las. Na carta, manuscrita e em ucraniano, Volodymyr diz ter conhecimento de que as filhas foram retiradas à mãe “por ter batido numa delas quando a foi buscar ao jardim de infância”, assegurando que isso nunca tinha acontecido antes na família”. “Pelo que me conta a minha mulher, sei que elas estão seriamente doentes no orfanato [sic] e estão constantemente a chorar e a chamar pela mãe. Não compreendem inglês nem português e são demasiado novas para ficarem sem os pais. Como militar, estou privado da oportunidade de sair do país e ir buscar as minhas filhas, e já estou há quatro meses em total confusão e desespero a pensar em como trazê-las de volta à Ucrânia. (…) Informo-vos que na Ucrânia tenho capacidade para sustentar as minhas filhas, já que recebo um salário como militar. Antes disso, tinha um emprego e a minha mulher recebe subsídios sociais. Estou preocupado com a saúde e a vida das minhas filhas, e peço-vos que me ajudem a tomar medidas imediatas para fazer regressar as crianças e a mãe à Ucrânia.”
A urgência de voltar a casa foi reforçada a 22 de fevereiro, quando Snizhana recebeu uma carta da Fundação ADFP, a “solicitar a sua saída da Residência no prazo máximo de 15 dias”, uma vez que a casa só acolhe mães com filhos “e a senhora já não se encontra com a guarda das suas filhas há 4 meses”.
À VISÃO, Jaime Ramos, presidente da Fundação, explica que “a D. Snizhana foi informada várias vezes que teria que encontrar outro local para residir dado esta resposta não ser a destinada a mulheres sem filhos. Estava a ocupar uma vaga necessária para outras mulheres mães, grávidas ou com filhos. Foram realizadas várias diligências no sentido de a apoiar, mas a senhora nunca aceitou. Fomos dando conhecimento à Segurança Social.”
A refugiada pediu para ficar, uma vez que não tem para onde ir, mas a ADFP manteve a decisão. Em carta datada de 10 de março, a Fundação reitera que Snizhana “deverá sair da Residência” e “encontrar uma solução de habitação fora da Instituição”.
Sem alternativa, Snizhana mantém-se na casa. Vive com o medo permanente de ser despejada à força.