Construída na era soviética, a central nuclear de Zaporizhzhia é, atualmente, o maior reator nuclear da Europa. Contém seis reatores de água pressurizada, dos quais pelo menos dois estão, neste momento, ativos, fornecendo energia a cerca 4 milhões de residências ucranianas e assumindo, por isso, um papel de destaque para o país.
Desde o início da guerra, a 24 de fevereiro, que esta central nuclear tem sido um alvo importante para a Rússia, não apenas por ser um ponto de controlo no que toca à eletricidade ucraniana, mas porque a própria cidade de Zaporizhzhia, onde esta se situa, se encontra numa posição estratégica de grande interesse para ambos os lados.
Embora a região de Zaporizhzhia esteja parcialmente ocupada desde o começo do conflito, a centralnuclear da cidade só foi ocupada pelo exército russo a 4 de março, tendo mantido as suas atividades desde então: enquanto a Ucrânia controla a margem oeste, definida pela passagem de um rio local conhecido, o Dnipro, os russos ocupam a zona ao redor da central, na margem leste do rio, incluindo a própria central.
Nos últimos meses, vários ataques têm sido relatados na região da central nuclear, aumentando o receio internacional de que algum tipo de material radioativo possa vir a ser libertado intoxicando não apenas a Rússia e a Ucrânia, mas vários outros países da Europa. Agosto registou vários destes ataques dentro do complexo, intensificando a preocupação já sentida de que os combates possam aumentar o risco de um acidente nuclear.
Sabe-se que a Rússia tem armazenado no território da central nuclear equipamento militar e que a própria Ucrânia, que promove uma zona nuclear desmilitarizada, já terá atacado a central recorrendo a drones. Os últimos ataques, no entanto, são ainda de autor desconhecido, sendo que ambos os países se culpam mutuamente pelo sucedido. Se por um lado os ucranianos acusam os russos de atacarem as instalações da central com o objetivo de cortarem o fornecimento de energia de algumas das cidades do país, os russos defendem que é a Ucrânia a responsável pelos últimos bombardeamentos.
Porque é a central nuclear um local tão perigoso?
A central nuclear de Zaporizhzhia concentra grandes quantidades de material radioativo, extremamente tóxico não apenas para o ser humano, como para toda a natureza. Quando se sucedeu a explosão de um dos reatores de Chernobyl, por exemplo, na qual apenas 5% de todo o material radioativo armazenado terá sido libertado, as consequências foram amplas e diversas. Segundo estimativas da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 4 mil pessoas terão morrido resultado do incidente, duas delas diretamente da explosão, 28 da síndrome de radiação aguda e as restantes de outras complicações que se foram fazendo sentir meses e anos mais tarde.
O material radioativo libertado na explosão de Chernobyl depositou-se, depois, não apenas na Ucrânia, onde se encontra a central, mas também em países como a Bielorrússia, a Rússia e alguns outros locais da Europa estando, ainda hoje, presente no solo que rodeia a dita central como poeira e detritos e deixando as regiões que rodeiam Pripyat, a cidade que abriga a central elétrica, e as zonas a cerca de cem quilómetros de Kiev, cidade próxima de Chernobyl, inabitáveis. Estes locais mereceram, por isto, a designação de zona de exclusão definindo os limites das regiões que não estão aptas para habitação devido aos elevados níveis de radiação, prejudiciais ao ser humano, que apresentam.
Com isto em mente, facilmente se compreende o receio e a preocupação que se têm criado em torno de Zaporizhzhia. Até porque, e embora os reatores se encontrem reforçados por aço e cimento, assim como sistemas de proteção contra incêndio, sendo, inclusive, projetados para suportar um impacto substancial, como, por exemplo, a colisão de um avião, o embate de um míssil pode ter consequências mais problemáticas.
Além disso, o principal receio dos especialistas não é propriamente a explosão de um reator que, embora não seja impossível, é incerta. “O que temos aqui com o envolvimento militar é muito difícil… Se vários fatores catastróficos se juntarem, uma explosão pode ser possível”, diz ao Al Jazeera Ross Peel, gerente de pesquisa e transferência de conhecimento do Centro de Estudos de Ciência e Segurança do King’s College London. “É difícil dizer se isso acontecerá e quais poderão ser as possíveis consequências disso. Depende de como a explosão acontece”, acrescenta.
Caso ocorra uma explosão, as preocupações recaem sobretudo sobre a possibilidade de os bombardeamentos que têm acontecido em redor da instalação poderem danificar a infraestrutura crítica, incluindo os próprios reatores. “Os reatores precisam de ser constantemente resfriados pela água que passa por (eles)”, explica ao mesmo órgão de comunicação MV Ramana, professor da Escola de Políticas Públicas e Assuntos Globais da Universidade da Colômbia Britânica. “Se esse fluxo de água for cortado, de alguma forma, o reator pode perder o resfriamento e o combustível começará a derreter. Isso criará uma alta pressão e pode gerar uma explosão”, acrescentou.
Uma explosão poderia ser o começo de uma situação semelhante à ocorrida em Chernobyl. “Provavelmente várias centenas de milhares de pessoas a tentar fugir daquela área”, descreve Ramana. “Haveria uma nuvem (de radiação), mas não poderíamos vê-la. Podemos rastrear a nuvem porque temos instrumentos sensíveis que medem os níveis de radiação”, explica.
A rutura total de um reator, no entanto, é, segundo os especialistas, improvável. O principal receio é exatamente que situações como a avaria dos sistemas de refrigeração e a libertação de material combustível radioativo ocorram. “Estamos principalmente com medo da libertação de radiação, não necessariamente de uma explosão”, admite à Al Jazeera Amelie Stoetzel, membro do Departamento de Estudos de Guerra do King’s College London. “Mesmo que pareça assustador, a libertação de radiação, em qualquer caso, seria catastrófica”, acrescentou.
De acordo com a Energoatom, autoridade nuclear ucraniana, os impactos dos mais recentes bombardeamentos foram próximos da área de armazenamento de combustível radioativo, o que reforça os receios que se têm feito sentir na esfera internacional e que já terão sido discutidos por autoridades como a ONU que veio, inclusive, pedir o fim imediato de qualquer ação militar perto da central nuclear de Zaporizhzhia, alertando para um “risco muito real de um desastre nuclear”.
A manutenção da central é essencial
Embora a central nuclear de Zaporizhzhia esteja, de momento, sob o controlo russo, os operadores que lá se encontram a trabalhar são os mesmos que exerciam funções antes do começo da guerra, ou seja, são funcionários ucranianos forçados a trabalhar pelo inimigo. A sua presença na central não pode ser dispensada já que a manutenção da central nuclear é crucial para o seu bom funcionamento, assim como para impedir que qualquer atividade potencialmente perigosa suceda.
De acordo com os relatos, os soldados russos têm submetido os funcionários da central a interrogatórios violentos. Apesar de todos serem peças importantes para o funcionamento apropriado e seguro da central, vários funcionários têm abandonado as suas posições, levantando preocupações sobre a segurança, segundo autoridades ucranianas. Alguns funcionários encontram-se, inclusive, desaparecidos.
A presença de tropas russas dentro do perímetro da central tem, sem dúvida, afetado as operações, segundo o que explica Edwin Lyman, diretor de segurança de energia nuclear da União de Cientistas Preocupados, um grupo de vigilância, à NPR. “Isso coloca pressão sobre a equipa ucraniana”, explica.
Dmytro Orlov, presidente da câmara exilado de Enerhodar, a cidade onde se situa a central, disse na televisão ucraniana que a moral dos trabalhadores se encontra baixa, especialmente depois de alguns soldados russos terem alegadamente espancado um funcionário até à morte em julho.
Qual é o risco de um desastre nuclear ocorrer?
A preocupação internacional leva a crer que existe um grande risco. O chefe da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), Rafael Mariano Grossi, descreveu, inclusive, a atual crise de supervisão de segurança como uma ameaça terrível à saúde pública e ao meio ambiente na Ucrânia, e muito além de suas fronteiras, considerando que a situação está “completamente fora de controlo”.
O receio de que as explosões possam ter danificado de alguma forma a central e que a manutenção possa não estar a ser feita corretamente, resultado da pressão das tropas russas sobre os operários ucranianos, levou Grossi a sugerir uma missão de inspeção à central. “Existe um catálogo de coisas que nunca deveriam estar a acontecer em nenhuma instalação nuclear”, reforça.
Ironicamente, a Ucrânia, o país que mais tem abordado a questão dos riscos nucleares e que terá, inclusive, proposto uma desmilitarização da central nuclear, não concordou com a missão proposta por Grossi, com a Energoatom argumentando, em junho, que qualquer visita da AIEA legitimaria a presença da Rússia lá.
Parece, por isso, existir uma vertente política forte nas ações da Ucrânia em relação à central, não se tratando apenas de uma questão de proteger o país de desastres radioativos, ainda que não deixe de ser um fator chave. Assim, este país pode ser acusado de exagerar algumas das suas alegações no que toca aos perigos vividos em Zaporizhzhia. Afinal, a desmilitarização da central nuclear, embora uma decisão prudente, serviria também um objetivo militar já que negaria às forças russas o uso de uma central a partir da qual podem bombardear com relativa imunidade sem serem atacados de volta pelo inimigo, neste caso a Ucrânia, por terem receio das consequências nucleares dos seus próprios ataques. Como explica o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, os russos podem estar a utilizar a central nuclear como o seu próprio “escudo nuclear”. “É claro que os ucranianos não podem retaliar para que não haja um terrível acidente envolvendo a central nuclear”. Isto poderá ter permitido à Rússia bombardear áreas como a cidade de Nikopol, do outro lado do rio, que sofreu fortes ataques nas últimas semanas.
De acordo com vários meios de comunicação ucranianos, a Rússia terá ainda investido em instalações minadas. Segundo o chefe das tropas de defesa contra radiação química e biológica das forças armadas russas, Maj Gen Valery Vasiliev: “Ou haverá terra russa ou um deserto arrasado”.
Apesar das ameaças russas, qualquer desastre nuclear vivido em Zaporizhzhia ameaçaria não apenas a Ucrânia, mas o sul da própria Rússia com contaminação nuclear, pelo que se torna crucial perceber se as palavras proferidas por Vasiliev se tratam de facto de uma ameaça, ou apenas de uma chantagem. Além disso, e de acordo com a operadora ucraniana Energoatom, as forças russas que ocupam a área parecem estar a preparar-se para “ligar a central à rede elétrica da Crimeia”, o que, segundo o testemunho de Michael Black, diretor do Centro de Engenharia Nuclear do Imperial College London, à Al Jazeera, pode ser algo positivo do ponto de vista dos desastres nucleares. “É encorajador ver que os russos querem usar a eletricidade; isso implica que eles não queiram danificar (a central)”, explicou.
Que países seriam afetados por um desastre nuclear?
O raio de impacto de um desastre nuclear ocorrido em Zaporizhzhia pode ser mais extenso e afetar mais país do que apenas a Rússia e Ucrânia. A localização geográfica da central permite, inclusive, que uma fuga de radiação possa atingir qualquer parte do continente europeu. “Zaporizhzhia fica no meio do continente. Então, não importa para onde o vento esteja a soprar, alguém vai ser contaminado”, explica Ramana.
É difícil prever em concreto que locais seriam afetados já que tal depende de vários fatores. “É imprevisível, nós realmente não sabemos para onde a nuvem (de material radioativo) iria, pode ir para qualquer lugar realmente, dependendo das condições climáticas”, explica. “A única certeza que realmente temos é que a atividade militar em torno da central nuclear representa um risco. E como exatamente isso vai acontecer é muito difícil de prever”, disse Ross.