Por toda a Europa, e desde que Putin ameaçou recorrer a armas nucleares, que vários países têm esgotado o stock de comprimidos de iodo. Os avanços do exército russo sobre as plantas nucleares de Chernobyl e Zaporizhzhia aumentaram o receio de que uma onda de material radioativo se pudesse propagar pelo continente, embora até agora e ao que tudo indica os níveis de radiação tenham variado apenas ligeiramente. Ainda assim, várias pessoas e até alguns países já têm começado a aplicar algumas medidas de prevenção.
Os comprimidos de iodo têm sido alvo de elevados níveis de procura pela proteção que fornecem contra certos tipos de radiação. De facto, estes comprimidos, constituídos por iodeto de potássio, um sal de iodo estável não radioativo, permitem bloquear a absorção de iodo radioativo, um tipo de iodo emitido em explosões nucleares, pela glândula da tiroide.
O iodo, quando estável, é um “produto químico importante necessário ao corpo para a produção de hormonas da tiroide”, explica o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, e a sua presença no corpo humano deriva principalmente “dos alimentos que comemos”. As hormonas produzidas na tiroide são, por sua vez, importantes na regulação da taxa metabólica do corpo e no controlo da função cardíaca, muscular e digestiva, assim como no desenvolvimento do cérebro e manutenção dos ossos.
A tiroide absorve o iodo, mas não é capaz de distinguir o iodo estável do iodo radioativo, de modo que, na sua presença, irá absorver ambos. “Se o iodo radioativo for libertado no ar após um evento radiológico ou nuclear, pode ser inalado pelos pulmões. Na maioria dos casos, e quando o iodo radioativo já entrou no corpo, a glândula tiroide vai absorvê-lo rapidamente”, explica o CDC. Uma vez absorvido, “o iodo radioativo pode causar lesões na glândula tiroide” e, na pior das hipóteses, cancro na tiroide a curta, médio ou longo prazo.
É exatamente na prevenção deste tipo de lesões que o comprimido de iodo pode ser útil, permitindo “impedir que o iodo radioativo seja levado para a glândula tiroide”, ou seja, “bloqueando a entrada de iodo radioativo na tiroide”. “Quando uma pessoa toma KI (símbolo químico do iodeto de potássio), o iodo estável do medicamento é absorvido pela tiroide. Há tanto iodo estável no KI que a glândula tiroide fica “cheia” e não consegue absorver mais iodo – estável ou radioativo – nas próximas 24 horas”.
Stocks esgotados
Vários países europeus têm visto os seus stocks de comprimidos de iodo esgotar desde o início de março com farmácias na Finlândia, Noruega e Luxemburgo a verem-se forçadas a repor os medicamentos depois de um grande aumento na sua procura. Na Amazon, por exemplo, e segundo a CamelCamelCamel, uma embalagem de 180 comprimidos custa agora cerca de 60 dólares, uma subida de 30 dólares face às semanas anteriores à invasão russa, tendo atingido um pico a 9 de março, com um preço de 70 dólares (63,54 euros).
De acordo com uma reportagem desenvolvida pela Bloomberg, também nessa altura vários consumidores nos EUA recorreram ao Google para saber como se poderiam proteger perante uma ameaça nuclear. Hoje, um dos nove tópicos mais procurados e em ascensão é a “reação do relógio de iodo”, com um pico no dia 20 de março de 2022, ao qual se juntam outras pesquisas como “Quando foi o iodeto descoberto?”, “Iodeto e funcionamento da tiroide” ou “onde posso comprar comprimidos de iodeto?”.
As farmácias também têm sentido nos seus consumidores um crescente receio traduzido num aumento da procura de comprimidos de iodeto. “Nos últimos seis dias, as farmácias búlgaras venderam tanto [iodo] quanto costumam vender num ano”, explicou, no início de março, à Reuters Nikolay Kostov, presidente do Sindicato das Farmácias da Bulgária. “Algumas farmácias já não têm stock. Encomendámos mais quantidades, mas temo que não durem muito tempo”, admitiu ainda.
A Bulgária é apenas um de muitos países que têm sofrido com a crescente ansiedade da população perante a ameaça de uma guerra nuclear. Na Polónia, aumentou consideravelmente o número de farmácias que disponibilizam iodo, de acordo com um site polaco que ajuda os doentes a descobrirem qual a farmácia mais perto do local onde se encontram a vender um dado medicamento. “Dados internos do nosso site mostram que o interesse pelo iodo aumentou cerca de 50 vezes desde a última quinta-feira”, afirmou no início de março à Reuters Bartlomiej Owczarek, co-fundador do site.
Uma reação semelhante sentiu-se também na Finlândia e Países Baixos, segundo a Euronews. Algumas farmácias nestes países também esgotaram o stock.
Na Roménia, a produção deste tipo de comprimidos acelerou significativamente depois do primeiro-ministro Nicolae Ciucă admitir numa emissão em direto na News.Ro que o então atual stock de comprimidos de iodo não era suficiente para enfrentar um possível desastre nuclear. Hoje, o país já se encontra capaz de fornecer este medicamento a toda a sua população.
Outros países como a Bélgica apresentaram uma estratégia diferente com a distribuição gratuita deste medicamento pela população. Em resposta à agência de notícias belga, o Sindicato dos Farmacêuticos da Bélgica explicou que comprimidos de iodo estão disponíveis em todas as farmácias do país e serão fornecidos sem ser necessário qualquer tipo de pagamento a cidadãos naturais da Bélgica.
Segundo a ECO, este fenómeno já terá chegado também a Portugal e algumas farmácias online terão, inclusive, no início do mês, esgotado stock.
Posso (e devo) tomar este medicamento?
Os comprimidos de iodo não devem ser tomados sobre toda ou qualquer circunstância e alguns fatores devem ser tidos em conta. As autoridades pedem que o medicamento seja administrado apenas quando existirem indicações de fontes oficiais públicas. “Só deve tomar estes comprimidos quando aconselhado pelas autoridades públicas”, escreve no seu site oficial a Autoridade de Radiação e Segurança Nuclear da Noruega (ARSNN). Como esta, autoridades de outros países fazem questão de reforçar o mesmo. O CDC frisou também que qualquer consumo de iodeto aquando de um desastre nuclear deve seguir as indicações dos “serviços de saúde locais ou oficiais destacados para lidar com situações de emergência”.
Na ausência de qualquer indicação por parte das autoridades, comprimidos de iodo não devem ser autoadministrados, nomeadamente como forma de prevenção contra radiação. Além deste, outros aspetos devem ser tidos em conta. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, este medicamento, que pode ser consumido em formato de comprimido ou xarope, é recomendado, em concreto, a crianças, gestantes e pessoas com menos de 40 anos. Segundo a ARSNN, “pessoas com mais de 40 anos correm muito pouco risco de contrair cancro da tiroide e não precisam de tomar comprimidos de iodo”, assim como “qualquer pessoa que removeu a sua glândula tiroide”. Algumas condições médicas também impedem a administração deste medicamento, nomeadamente “alergia ao iodo” ou “certos problemas de pele”, como explica o CDC.
Ainda assim, e apesar de no passado este tipo de comprimidos já ter sido aconselhado, como é o caso do desastre nuclear de Fukushima, em 2011, no Japão, existem alguns limites a este medicamento e há quem considere que a sua aplicação numa situação de explosão nuclear seria, inclusive, inútil. No seu site, o CDC reforça: “É importante relembrar que o KI pode não dar a uma pessoa 100% de proteção contra o iodo radioativo”.
O tempo entre “a contaminação com iodo radioativo e a ingestão de KI” é um fator decisivo na eficácia deste comprimido, ou seja, “quanto mais cedo uma pessoa tomar KI após ser exposta ao iodo radioativo, melhor”, explica o CDC. Voichiţa Mogoş, professora de medicina na Roménia, acrescenta, em resposta à Vice, que “mais de 90% da população que ingere um dia antes da explosão estará completamente protegida. Se isso acontecer 8 horas após a inalação, apenas 50% estará protegida. E após 24 horas, apenas 10% estará protegida”. “A rapidez com que o KI é absorvido no sangue e a quantidade total de iodo radioativo à qual uma pessoa está exposta” são outros fatores relevantes para a eficácia dos comprimidos de iodo.
O Ministério Federal do Ambiente, Conservação da Natureza, Segurança Nuclear e Proteção ao Consumidor da Alemanha alertou também, em resposta à Deutsche Welle, que os comprimidos de iodo só deverão ser consumidos num raio de até 100 quilómetros de uma central nuclear que possa, de facto, representar um perigo.
Dúvidas e efeitos secundários
Os efeitos das bombas nucleares na saúde humana já são, pelo menos relativamente, conhecidos e não é preciso ir longe na busca por provas. Segunda dados apresentados por Mogoş existe uma crescente incidência nas taxas de cancro da tiroide em crianças e adolescentes da Bielorrússia, uma consequência direta do desastre nuclear de Chernobyl. Ainda assim, alguns especialistas consideram que os comprimidos de iodo não serão uma forma de prevenção eficaz.
“Até que ponto os comprimidos de iodo seriam úteis contra os efeitos das bombas nucleares é, no mínimo, questionável”, explicou à Euronews Hielke Freerk Boersma, especialista em proteção contra radiações da Universidade de Groningen, nos Países Baixos. “O uso desnecessário de comprimidos de iodo — o que pode acontecer quando as pessoas entram em pânico — também pode causar efeitos adversos para a saúde”, acrescentou ainda numa uma opinião partilhada por Dana Drábová, presidente do Serviço Estatal de Segurança Nuclear da República Checa, que considerou os comprimidos de iodo “praticamente inúteis” numa publicação que partilhou o Twitter.
A acompanhar a onda de dúvidas que se levanta perante estes medicamentos, surgem também os efeitos secundários que podem variar de “náuseas e vómitos” a “irritações na pele e palpitações no coração”, explica a InfoCrise, um site de informação do governo de Luxemburgo, e, na pior das hipóteses, “pode levar a uma tiroide hiperativa, caracterizada por níveis de pulsação elevados, sudorese (excesso de suor), insónia, tremores, diarreia ou perda significativa de peso”, embora sejam raros os casos. É ainda importante reforçar que estes comprimidos protegem apenas a tiroide e não outros órgãos do corpo humano, assim como só conseguem agir sobre o iodo radioativo e não protegem o corpo contra outros componentes da radiação.