“A política de erradicar a língua e a cultura russas e promover a assimilação continua. A Verkhovna Rada [Parlamento ucraniano] gerou um fluxo constante de projetos de lei discriminatórios, e a legislação sobre os chamados indígenas já entrou em vigor. As pessoas que se identificam como russas e querem preservar a sua identidade, língua e cultura estão a receber sinais de que não são desejadas na Ucrânia.”
Entre os muitos argumentos levantados por Vladimir Putin no já infame discurso que precedeu a guerra, encontra-se este, que acusa Kiev de perseguir quem quer preservar a língua e a cultura russas. É uma denúncia popular no Kremlin (acima de tudo, desde a Revolução da Euromaidan, em 2014), que chega a usar a palavra “genocídio” para descrever essa suposta perseguição e que tem sido repetida até em Portugal.
Uma das pessoas que recentemente invocaram o “genocídio” de quem fala russo foi João Oliveira, deputado do PCP, num discurso na Assembleia da República a 4 de março, quando a guerra entrava na sua segunda semana: “A morte de 15 mil ucranianos na região do Donbass, exclusivamente porque são ucranianos russófonos, é objetivamente uma situação de limpeza étnica, que foi desenvolvida pelas Forças Armadas ucranianas contra o seu povo. A proibição dos ucranianos russófonos utilizarem a sua língua, darem expressão à sua identidade cultural, são elementos de um regime xenófobo que foi instalado a partir do golpe de Estado de 2014”.
Antes de mais, diga-se que os “15 mil ucranianos [mortos] na região do Donbass” (14 200 a 14 400, segundo a ONU) incluem 4 400 soldados do exército ucraniano e as 298 pessoas que seguiam no avião da Malaysia Airlines abatido por um míssil russo, disparado da zona separatista, além de muitos civis mortos pelos rebeldes. Mas, situação no Donbass à parte, é verdade que os ucranianos estão proibidos de falar russo?
Se assim fosse, grande parte da população estaria a ser perseguida. O russo é a língua mais falada na rua na maioria das cidades. Mesmo em Kiev, é de longe mais comum do que o ucraniano, o que pode ser confirmado por qualquer pessoa que já tenha visitado a capital. Até no leste do país, onde há mais gente com ucraniano como língua materna, a população é bilingue. A harmonia é tal que duas pessoas podem estar a conversar, cada uma na sua língua, quase sem repararem que a outra está falar uma diferente.
O ucraniano é, no entanto, a única língua do Estado (reconhecida na Constituição aprovada em 1996, cinco anos após a independência), que deve ser usada em documentos oficiais, dentro dos tribunais e nos serviços públicos. Para quem fala russo no seu dia a dia, isto é visto como um pequeno incómodo. Ao longo dos anos, outras iniciativas legislativas têm reforçado a língua ucraniana, o que é visto como uma forma de consolidar a identidade da nação. Por exemplo, todos os filmes são dobrados em ucraniano e os livros publicados no país têm de ter também versões na língua oficial (não há qualquer proibição sobre livros em russo ou noutra língua).
Talvez o mais irónico nas acusações de repressão da língua russa é que o próprio presidente da Ucrânia é russófono. Volodymyr Zelensky passou a falar ucraniano quando entrou na política, mas há quem ainda hoje note um ligeiro sotaque em certas palavras. Aliás, a sua série de comédia, Servo do Povo, que passou na televisão entre 2015 e 2019, é falada em russo – apenas algumas personagens secundárias se exprimem, aqui e ali, em ucraniano, de uma forma tão natural e orgânica que até passa despercebido a quem vê. Tal como na vida real.