Os amigos são para as ocasiões mas é difícil mantê-los quando se é ditador e se invade um país. Ao dar ordem para as suas tropas entrarem Ucrânia adentro, a 24 de fevereiro, Vladimir Putin, o Presidente da Rússia, tornou-se um pária e alvo de quase tantas críticas como de sanções internacionais. Mesmo assim, há quem resista em condená-lo de forma clara. É o caso do antigo chanceler da Alemanha, Gerhard Schröeder.
O ex-governante tornou-se “amigo pessoal” de Putin quando ainda liderava o Executivo de Berlim e os laços entre ambos estreitaram-se quando ele foi formalmente contratado por uma empresa russa, dez dias depois de abandonar a chancelaria. Desde então, recebeu largos milhões pelos seus bons ofícios, enquanto administrador e consultor de diferentes firmas energéticas (Nord Stream AG, Rosneft, Gazprom), e, ao que parece, vai manter os cargos e as respetivas remunerações.
Uma decisão inadmissível para a maioria dos germânicos. O seu clube de sempre, o Borússia de Dormund, retirou-lhe o título de sócio honorário. O diário Die Welt e muitos outros media aconselharam-no a romper de forma imediata e definitiva com o Kremlin. O seu partido (SPD) pondera expulsá-lo e o Governo de Olaf Scholz (também líder do SPD) estuda a possibilidade de retirar-lhe as mordomias de que ainda usufrui como ex-chanceler – nomeadamente viatura oficial e um gabinete de trabalho em Hanover. Por se sentirem envergonhados pela triste figura do chefe, os quatro elementos da equipa paga pelo erário público alemão (motorista, duas secretárias e um assesor) demitiram-se por quererem ser vistos ao lado do homem cuja conduta conseguiu até inspirar um neologismo russo: Schröderizatsya – conceito que pode ser traduzido como schrödificar e aplicar-se a qualquer indivíduo que não prima pela nobreza de carácter.
John Lichfield, um jornalista anglobelga que reside na Normandia (França), arranjou também uma palavra nova para descrever três personalidades da vida política gaulesa que nunca esconderam a sua admiração por Vladimir Putin e que estão agora em dificuldades para se demarcar do chefe de Estado russo: “os três moscoviteiros” são Marine Le Pen, Eric Zemmour e Jean-Luc Mélenchon, os três candidatos à presidência francesa e nenhum com hipóteses de derrotar no próximo mês o atual inquilino do Palácio do Eliseu, Emmanuel Macron.
Na opinião de John Lichfield, este último pode dar-se como reeleito graças aos elogios que, nos últimos anos, este triunvirato dedicou ao homem que fez regressar a guerra ao Velho Continente. O nacional-populista Zemmour, chefe de fila do partido Reconquista, em fevereiro 2014, já dizia que a “Ucrânia não existe” e agora, como que dando razão aos que já o acusam de querer ser o “Putin francês”, continua a tentar justificar as ações ao Kremlin e a definir o antigo espião como um “patriota”. No extremo oposto do espectro ideológico, Jean-Luc Mélenchon, líder da França Insubmissa, tenta desviar as atenções quando lhe recordam que, há apenas cinco semanas e a propósito de uma eventual invasão da Ucrânia, dizia que eram os EUA e “não a Rússia” que assumiam uma “posição agressiva” no Leste da Europa. No caso da dirigente da União Nacional, o caso é ainda mais grave porque o seu partido, em 2014 – quando ainda se chamava Frente Nacional – recebeu um empréstimo de nove milhões de euros de um banco russo. A 24 de março de 2017, um mês antes de Marine disputar a eleição presidencial contra Emmanuel Macron, ela foi pomposamente recebida no Kremlin, com direito a uma foto de honra com Vladimir Putin. Assim, não é de estranhar o seu atual embaraço e dificuldade em criticar o Presidente russo.
A mesma bitola se aplica a um seu outro amigo, em Itália, Mateo Salvini. Em 2019, a revista britânica chamou ao líder da Liga “o homem de Putin na Europa”. Entre outras coisas porque o polémico e xenófobo ex-primeiro ministro transalpino nunca se poupou nos encómios ao Presidente russo e chegou até a entrar na sede do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, envergando uma t-shirt com o rosto estampado de Putin. Na passada semana, Salvini tentou remover essas imagens comprometedoras das suas redes sociais. Em vão.
Quem parece não estar incomodado com os desvarios bélicos de Moscovo é a direita radical americana. Em particular a sua figura mais conhecida, Donald Trump, que classificou a invasão da Ucrânia como uma manobra “inteligente”. E acrescentou: “Sou o único Presidente [dos EUA] no século XXI em que a Rússia não invadiu nenhum país.” Em rigor, tem razão, mas de que vale esse argumento quando ele e os seus apoiantes mais mediáticos – desde Tucker Carlson, pivô da FOX News, a Marjorie Taylor Greene, congressista conspiracionista – são incapazes de qualquer reparo ao senhor do Kremlin?
Aparentemente, todos convivem tranquilamente com o que se passa na Ucrânia.