Os seus temas de estudo incluem todos os ingredientes do “cardápio” de guerra: o espaço geográfico pós-soviético, a segurança internacional, o multilateralismo e as relações entre a União Europeia e a Rússia. Cientista política e especialista em Relações Internacionais da Universidade do Minho, Sandra Fernandes já colaborou com a embaixada de Portugal em Moscovo durante as presidências portuguesas da UE (2007 e 2021), foi auditora do Curso de Defesa Nacional (2003-2004) e docente convidada no âmbito de pós-graduações em diversas instituições europeias, entre elas o Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscovo. Em conversa com a VISÃO, a investigadora aceitou descodificar, à luz da História recente, o conflito na Ucrânia.
A guerra estava escrita?
Esta guerra é surpreendente, mesmo para especialistas e para quem acompanha a Rússia há muitos anos. Percebia-se que o país queria enterrar em definitivo toda a evolução da NATO e das organizações internacionais ocidentais da Europa junto das suas fronteiras, mas, com exceção dos EUA, ninguém esperava um conflito a esta escala. É uma decisão de alto risco extremo, cuja racionalidade não é clara. Há motivos profundos, mas estão também muito relacionados com o estilo do presidente russo.
Podemos perguntar: se a Rússia não fosse liderada por Putin, a reação seria igual? As perceções da Rússia face à Europa, sobretudo depois da Guerra Fria, são muito específicas e já eram um facto antes de Putin assumir a liderança, há 22 anos. O território da Rússia é relativamente pequeno face ao que era a sua extensão e o país sempre viu uma série de estados que conquistaram a independência como não sendo propriamente estrangeiros. Sempre teve com eles relações privilegiadas e contava com eles para construir a sua segurança.
A Rússia não é uma democracia, é uma cleptocracia com todo o peso dos oligarcas, forças de segurança, militares e interesses dos grandes grupos económicos. A juntar a esta opacidade, há também que valorizar os traços pessoais da liderança de Putin
Sandra Fernandes
O estilo de Putin não ajudou?
A deriva autoritária por parte de Putin, cuja liderança é muito opaca, agravou o problema. A Rússia não é uma democracia, é uma cleptocracia com todo o peso dos oligarcas, forças de segurança, militares e interesses dos grandes grupos económicos. A juntar a esta opacidade, há também que valorizar os traços pessoais da liderança de Putin.
O seu saudosismo da grandeza soviética, a luta contra o sentimento de humilhação do povo e a ideia de uma Rússia imperial estão sempre presentes na cabeça de Putin que, segundo consta, ficou muito paranoico com o “covid” e vive numa espécie de bunker, o que o mantém ainda mais afastado do seu povo e das realidades.
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A humilhação pós-soviética foi o rastilho?
A Rússia estava numa posição de fraqueza na década de 1990. A Rússia do presidente Ieltsin tinha de reconstruir tudo, de se redefinir como nação, de construir uma economia de mercado e um regime democrático. Essa transição foi calamitosa, com crises financeiras gravíssimas que levaram os russos à bancarrota várias vezes. O povo sai do século XX com o sentimento de que a aproximação ao Ocidente trouxe humilhação e não dividendos.
Quando Putin assume o poder, surge com uma vontade de romper a aproximação ao Ocidente que é, na sua perspetiva, pouco vantajosa para a Rússia. Embora tenha mantido quadros de cooperação com os países ocidentais, começou, paulatinamente, em várias dimensões, a não ser tão cooperante. É verdade que houve muita aproximação da União Europeia, da NATO e dos EUA à Rússia do ponto de vista das relações comerciais e culturais, mas nunca se discutiram questões que a Rússia quis sempre discutir. Uma delas é o facto de o país nunca ter olhado para a NATO como organização legítima na Europa: sempre a viu como representativa de um “clube” ao qual não pertence e que ameaça os seus interesses.
O messianismo está presente em quase todos os grandes países, é igual nos EUA. A Rússia também tem a ideia de ser uma civilização única, superior e que pode iluminar o mundo com a sua visão. Putin retomou isso de uma forma muito conservadora, opondo-se os valores tradicionais russos a uma Europa que supostamente corrompeu os seus valores. É no quadro desse pensamento ideológico que se insere a guerra a que estamos a assistir.
O verdadeiro perigo do momento que estamos a viver é o facto de a Rússia já não se ver como um país europeu. A Rússia tem uma matriz europeia, mas tenta redefinir-se como euroasiática, oposta à Europa
sANDRA FERNANDES
Quem tem a culpa?
Cada parte tem de assumir as suas responsabilidades. Se é verdade que Putin se radicalizou, também é verdade que existe uma perceção, por parte das elites russas, de que houve um falhanço da Europa na aproximação à Rússia. O verdadeiro perigo do momento que estamos a viver é o facto de a Rússia já não se ver como um país europeu. A Rússia tem uma matriz europeia, mas tenta redefinir-se como euroasiática, oposta à Europa. Isso está presente nos influenciadores do presidente Putin, em termos de pensamento geopolítico, e é algo que já está a ser muito palpável desde 2015, pelo menos. Houve elementos que falharam na relação da Rússia com a Europa, mas a culpa não é só da Rússia.
Porque é que Putin gera simpatias na esquerda marxista e na extrema-direita?
O traço comum é a crença em modelos de sociedade que não são democráticos e que põem em causa toda a construção do ordenamento internacional, que é o do liberalismo, que tem expressão na democracia. Um dos motivos da obsessão de Putin com a Ucrânia é também o receio de que a liderança pró-ocidental da Ucrânia transforme o país numa democracia saudável e funcional e que isso faça perder completamente a capacidade de influência da Rússia nesse país. É uma linha de pensamento autoritário.