Num piscar de olhos, a família Assad deixou de governar a Síria, ao cabo de 54 anos que pareciam não ter fim à vista.
De repente, vários grupos rebeldes que se opunham ao regime opressor de Bashar al-Assad, aparentemente adormecidos nos anos mais recentes, uniram esforços para derrubarem o tirano que havia sucedido ao pai no poder, após a morte dele, em 2000.
Bastaram 11 dias de uma ofensiva relâmpago, com avanços rápidos a norte e a sul do país, para fechar o cerco a Damasco e surpreender o presidente agora deposto e os soldados que o protegiam, além de toda a comunidade internacional. Umas escassas horas da madrugada de domingo foram mais do que suficientes para os rebeldes capturarem a capital e darem a machadada final em mais de meio século de História, sem vestígios de combates sangrentos mas com bastantes evidências de fardas militares à beira da estrada para Beirute.
Em menos de nada, consumou-se o que não se conseguira em 13 anos de guerra civil, a mais mortífera deste século XXI – com pelo menos 300 mil mortos e 100 mil desaparecidos, sem esquecer os mais de 12 milhões de deslocados.
Escrito assim, quase nos poderíamos convencer de que a primavera árabe bafejou o povo sírio, com mais de uma década de atraso, num ar que se lhe deu. É evidente que não, por muito que os acontecimentos vertiginosos dos últimos dias tenham criado tamanha ilusão. Se, em 2011, o movimento detonador do conflito interno na Síria, impulsionado por revoltas populares que levaram à queda de outros regimes autoritários no mundo árabe (Ben Ali, na Tunísia; Gaddafi, na Líbia; Mubarak, no Egito), esbarrou de frente com o poder bélico da Rússia e do Irão posto ao serviço de Assad, desta vez os dois maiores aliados do regime sírio não puderam estender-lhe uma mão tão generosa, deixando-o à mercê dos opositores.
Um golpe cirúrgico, no momento oportuno, ditou o sucesso estratégico dos insurgentes. Afinal, russos e iranianos andam ocupados com a Ucrânia e com Israel faz já muito tempo, talvez demasiado para ousarem voltar a segurar o velho amigo no poder. O melhor que Vladimir Putin conseguiu foi conceder-lhe asilo na Rússia, extensível à família, soube-se pelas agências noticiosas russas.
Os problemas na Síria, no entanto, não desaparecem com a partida de Assad para Moscovo e com a rendição das suas tropas. O Ocidente em peso e a maioria dos países do Médio Oriente congratularam-se com a queda do regime “bárbaro”, como a ele se referiu o francês Emmanuel Macron, mas ninguém se atreve a dar pulos de alegria face à incerteza que hoje começa.
Estados Unidos da América e Rússia, com presença militar no país, rapidamente se posicionaram para estabelecer pontes com os grupos rebeldes, sem que isso invalide o diálogo multilateral através das Nações Unidas. Ainda ontem os americanos estavam a bombardear posições do que resta do Estado Islâmico na Síria, segundo divulgou o Pentágono, enquanto os russos mantêm a expectativa de preservar a sua única base naval no Mediterrâneo (e uma base aérea), que lhe permite uma ligação mais próxima a África.
Mas quem vem a seguir a Assad? É a pergunta que se impõe. O homem que lidera o grupo rebelde dominador, dissidente da Al-Qaeda na Síria, é (ou foi?) um extremista islâmico que parece ter-se moderado nos últimos anos, a ponto de ter passado a defender um pluralismo religioso e de ontem ter anunciado a imediata “libertação de todos os oprimidos das prisões do regime”. É mais conhecido por Abu Mohammad al-Jolani, mas nem sequer será esse o seu verdadeiro nome.
Em direto da Casa Branca, Joe Biden classificou o momento atual “de risco e incerteza”, garantindo que os EUA vão “continuar vigilantes” dos grupos rebeldes que, apesar de “agora estarem a dizer coisas certas”, estão ligados “a um registo negro de terrorismo” no passado. “À medida que forem tendo responsabilidades maiores, avaliaremos não só as suas palavras mas também as suas ações”, avisou o presidente americano em final de mandato.
Jolani representa apenas uma das muitas fações que se uniram para derrubarem o poder vigente na Síria, a que se junta a oposição exilada no estrangeiro. Com a queda de Assad, caiu um elo de coesão que era esse interesse em comum. Qual será então a natureza de futuros entendimentos, no pressuposto de que eles vão acabar por surgir, é outro grande ponto de interrogação, como se não chegassem já os que pontuam o Médio Oriente por estes dias, para não dizer anos nem décadas.