A explosão de dia 4 de agosto deixou o Líbano nos olhos do mundo, mas para o país foi só mais um duro golpe na sua já macerada pele. Toda a capital se mexe para se reerguer, sozinha mas confiante.
Espaços vazios. O silêncio entrecortado pelas chamadas para as orações que ecoam das várias mesquitas da cidade ou pelos sinos das igrejas que teimam em não deixar de tocar. Portas fechadas, janelas que se perderam, murais de cores vibrantes que pedem paz, renascimento ou que recordam as vítimas da última tragédia que se abateu sobre a cidade: a explosão de um silo no porto de Beirute que, a 4 de agosto, provocou quase duas centenas de mortos e milhares de feridos. Durante vários dias, a capital do Líbano esteve nas bocas do mundo, mas hoje é uma cidade abandonada pelos repórteres, pelas ONG que ocuparam o terreno nos dias seguintes, e até pelo Governo, que se demitiu poucos dias depois da explosão, abrindo um vazio de poder que se prolongou durante três meses. Resquícios da thawra, a revolução que foi pedida por milhares de libaneses no ano passado, e que culminou com a queda do executivo de Saad Hariri, no final de 2019. O mesmo que há cerca de três semanas voltou ao poder, numa reviravolta clara daquilo que tinha sido pedido pelo povo que, durante semanas, saiu à rua para protestar contra a corrupção dos representantes da nação.
Recorde-se que foram precisos alguns dias até que a hipótese de um ataque terrorista fosse absolutamente afastada para justificar as explosões no porto – o Líbano está confinado entre a trágica Síria e Israel, com quem as relações continuam a ser bastante tensas. Mas o país é um bastião da liberdade religiosa no Médio Oriente, tem paisagens naturais e património histórico de fazer inveja e a culinária é, claramente, um ponto de honra. Já para não falar da vida cultural e recreativa que, em alguns momentos, nos fez mesmo esquecer que não estamos numa qualquer capital ocidental.
A braços com uma gravíssima crise económica, com escassez de alimentos e de medicamentos, com a pandemia da Covid-19 que lhe roubou os turistas (o setor representa cerca de 7% do produto interno bruto daquele país), a explosão “foi só mais uma coisa que aconteceu”, diz meio a sério, meio a brincar a Irmã Nawal, freira da congregação das Irmãs do Sagrado Coração, antes de pedir, emocionada: “Não se esqueçam de nós. O mundo não se pode esquecer de nós.” Estima-se que nos últimos meses cerca de meio milhão de pessoas tenha abandonado o país, para procurar uma vida melhor em locais como o Brasil, o Canadá ou os EUA. A posição geoestratégica do Líbano complica-lhe a vida há décadas e a população sente-se particularmente esquecida, quando não há tragédias recorrentes para reportar.
Mas desengane-se quem acha que vai aterrar em Beirute e encontrar uma cidade rendida, completamente destruída ou sem vontade de viver. A capital está de mangas arregaçadas, mesmo que a desesperança seja o que mais se sente na rua. No entanto, apenas dois meses depois das explosões que destruíram grande parte dos bairros próximos do porto da cidade, a reconstrução é uma realidade graças ao trabalho de organizações como a Offre Joie que, com a ajuda de dois mil voluntários, já recuperou 45 casas. Encontrámos Rodrigue Harb num dos bairros mais afetados pela detonação, onde prédios inteiros ficaram sem paredes. “No dia da explosão começámos a fazer o levantamento das necessidades e, dois dias depois, estávamos a trabalhar. Não esperámos pelos donativos, fizemos o contrário”, explica o ilustrador que agora é mestre de obras, também ele voluntário. “As pessoas estão mais disponíveis para dar dinheiro ou material, se virem que já estamos no terreno. E foi isso que fizemos. Montámos aqui uma carpintaria, uma serralharia… Temos tudo à mão para fazer o trabalho da melhor forma e o mais depressa possível”, conta à VISÃO enquanto nos encaminha para junto da pequena oficina de Charbel. De olhos tristes e perdidos, este conta-nos que desmaiou assim que a explosão se fez sentir, e que acordou com uma casa destruída e o desgosto de uma vida: o filho, no terceiro ano da universidade, campeão de judo, perdeu um olho naquele dia. E Charbel nunca mais foi o mesmo. “Fui combatente no Exército libanês. Tentei fazer tudo bem na vida. Fui um bom homem, um bom marido, um bom pai. Porque é que Deus me fez isto?”, atira-nos em jeito de pergunta que sabe não ter resposta. Pede desculpa pelas lágrimas que não consegue segurar, antes de contar que continua a abrir a sua loja às 6h da manhã, e onde fica até às 18h. Acabou de recuperar um cadeirão de madeira maciça de uma igreja próxima, para tentar ganhar algum dinheiro e alguma paz de espírito. Aplaude o trabalho da Offre Joie – “ofereceram-nos tudo, até a comida” –, mas está cansado.
“O nosso lugar está destruído, mas nós não estamos!”
No bairro de Charbel veem-se agora estruturas novas, portadas de madeira acabadas de fazer, ligações elétricas e canalizações adequadas. “Aqui vai nascer um jardim, para haver um espaço bonito para estas pessoas”, confidencia Rodrigue, que entretanto conseguiu a autorização da câmara para o construir. Não que as autoridades tenham feito coisa alguma para acudir aos moradores de Beirute, mas pelo menos não têm impedido a sociedade civil de se mobilizar. O que já é muito. E num país tão ferido pela guerra, isso é algo que as pessoas sabem fazer: em duas semanas as ruas da capital libanesa estavam limpas, graças ao trabalho de milhares de voluntários que organizaram grupos em todas as áreas da cidade. “Basicamente, só tínhamos de chegar, pegar numa vassoura ou numa pá ou no material de que precisássemos, e que estava à disposição em pequenas bancas, deixávamos o nosso nome, informávamos se precisávamos de almoço, e íamos trabalhar”, conta o padre Rui Fernandes, jesuíta a viver no Líbano há mais de ano e meio. “A comida foi oferecida e grupos de voluntários faziam uns saquinhos com o que houvesse, para alimentar os que estavam a colaborar nas limpezas”, como ele fez.
E se é certo que ainda conseguimos ver os tetos ricamente trabalhados e os sofás desconjuntados de muitos palácios libaneses cujos donos não estão no país, e que ficam assim de paredes abertas para o mundo, a verdade é que dificilmente se pode dizer que Beirute ficou destruída.
As ruas da cidade ecoam, mas a culpa é da Covid-19, que fechou escolas, restaurantes e estabelecimentos comerciais há vários meses. Nos bairros mais pobres, há uma obrigatoriedade de confinamento mais restrita – o facto de os hospitais, já insuficientes, terem sido atingidos pelas explosões, não ajudou ao controlo do coronavírus –, mas nos que têm mais dinheiro, a vida pode continuar a ser bastante agradável, ainda que muito mais cara. É que para fazer face ao enorme défice comercial acumulado, os bancos libaneses decidiram confiscar as contas correntes e, incapazes de manter o câmbio fixo que tinham com o dólar desde 1997, converteram todo o dinheiro em libras libanesas. Sem dólares nas instituições financeiras, a moeda libanesa pode ter agora sete diferentes taxas de câmbio no mesmo dia, no mercado negro. Durante a semana que passámos em Beirute, o valor do dólar oscilou entre as sete mil e as dez mil libras, e os preços dos alimentos, refeições fora ou roupa tocam facilmente os que encontramos em Portugal, o que torna qualquer compra praticamente incomportável num país onde o salário mínimo é de cerca de 150 dólares.
As esperanças estão agora postas num acordo internacional que permita ao país garantir ajuda financeira, reconstruir o porto (importante porta de entrada de bens de primeira necessidade) e voltar a ser a Paris do Mediterrâneo a que sempre aspirou. Os libaneses estão de olhos postos no futuro, mesmo que ele pareça difícil de alcançar: é por isso que continuam a fazer desporto, a passear como se estivessem num desfile de moda. Tal como a sorrir e a acolher como ninguém os poucos estrangeiros que os visitam e, os que ainda têm dinheiro, a encontrarem-se em lugares como o Salon Beyruth, onde um trio de jazz anima as noites de quarta-feira e refeições requintadas transportam os consumidores para um qualquer bar em Nova Iorque assim que passam à porta.
Reconstruir à mesa
James Gomez Thompson inspirou-se nos fornos comunitários espanhóis para reconstruir comunidades no Líbano. O projeto The Great Oven já alimenta centenas de pessoas e está a escrever uma verdadeira história de Amor no mundo.
Tudo começou com uma viagem a Tripoli, há cerca de dois anos: James, com a namorada, Nour, e um amigo artista saíram de Londres para ir até uma das zonas mais conflituosas do Líbano e ajudar as pessoas a reencontrarem-se umas com as outras através das artes e da comida. “Eu sou chef, de formação, e sou fascinado pela ideia de como a comida pode reabilitar relações entre as pessoas. Decidimos que íamos ensinar a cozinhar e a pintar. Tinha mesmo esta ideia de sentar pessoas que se tinham tentado matar em redor de uma mesa” para restabelecer relações, conta à VISÃO. O projeto foi um sucesso e deu lugar a um forno comunitário, construído com recurso a capitais próprios e a um artesão local. “A minha avó espanhola sempre me falou muito nos fornos comunitários e na importância deles para a construção de relações. E eu cresci fascinado com essa imagem. A ideia surgiu daí.”
Quando a explosão de 4 de agosto destruiu parte da cidade, a equipa do projeto, entretanto nomeado The Great Oven, decidiu que o forno tinha de estar onde estava a fome: com recurso a uma campanha de angariação de fundos fizeram-no chegar a Beirute, e já construíram mais três. Até ao final do ano, esperam que haja dez fornos no país. Enquanto nos conta a sua história, James aproveita para responder às duas avós que estão a descascar rabanetes ao nosso lado. “É um forno para a comunidade. São as pessoas que vêm cozinhar, com a nossa ajuda, claro. Mas o objetivo é fazer deste tempo um lugar de partilha.” Da cozinha vem o cheiro de quase 400 refeições que estão a ser preparadas para o jantar de hoje, sob a direção de um antigo prisioneiro do Daesh e de um refugiado sudanês – “É incrível a relação que aqueles dois estabeleceram. É tão bonito ver isto a acontecer”, sorri James enquanto aponta para eles. “É isto que a comida permite, sabe? A partilha numa mesa traz ao de cima o que temos de melhor.” Lá fora, um dos novos fornos está a ser pintado pelo artista libanês Apocaleps, sob os olhares curiosos do bairro de Achrafieh, um dos mais antigos da cidade.
O Banco Alimentar de Beirute tem sido um parceiro fundamental para o projeto, fazendo chegar os alimentos que são doados, mas também que são recuperados de hotéis ou restaurantes que entretanto fecharam portas. Com o preço dos alimentos a aumentar mais de 350% em apenas um ano, muitos libaneses estão, efetivamente, a passar fome. The Great Oven quer ser parte da solução. “Temos estas senhoras maravilhosas que se oferecem sempre para ajudar, dizendo que se estão em casa sem fazer nada podem vir cozinhar connosco, uma equipa de voluntários imensa e muita vontade de reconstruir as comunidades. E isso não é só dar-lhes comida: é ensiná-las a cozinhar, mostrar-lhes arte, porque as coisas bonitas também alimentam, e pô-las em diálogo.” O objetivo final é que estes fornos possam ficar nos bairros onde são mais precisos, e que as comunidades os usem como a avó espanhola de James fazia. A equipa do Great Oven vai saindo de cena, à medida que a independência de cada comunidade é construída.
Cada forno custa cerca de 10 mil dólares a produzir, mas o impacto que pode ter a médio e longo prazo numa comunidade é imensurável, garante o cozinheiro que chegou a trabalhar com Nigel Slater, um dos chefs-estrela da BBC. Até agora o projeto já arrecadou mais de 130 mil dólares, mas o chef receia que o “arrefecimento mediático” faça cair as doações. Entretanto o Great Oven foi contactado pela ONU, que pediu a James uma reunião para estudar a possibilidade de estes fornos chegarem a várias zonas necessitadas da América do Sul. “Foi tipo…uau!”, resume o mentor filantropista com uma gargalhada. É caso para dizer que afinal, sim, é possível que uma pessoa mude o mundo. E que a comida continua a ser a melhor forma de conquistar a paz.
Nota: O The Great Oven continua em funcionamento, e está, ao dia de hoje, 28 de setembro de 2024, a funcionar com os voluntários possíveis para alimentar as populações em fuga, no Líbano.