Quando, há dois anos, chegou a Tripoli, no norte do Líbano, James Gomez Thompson não sabia o que ia encontrar, mas tinha um objetivo: juntar à mesma mesa as pessoas que ainda há poucos meses “continuavam a tentar matar-se umas às outras”. O cozinheiro de ascendência espanhola e irlandesa, que durante vários anos partilhou com o gastrónomo Nigel Slater um programa na BBC, acredita no poder regenerador de uma refeição partilhada e o seu instinto tem-se revelado certo. Decidiu recuperar a ideia dos fornos comunitários que em Espanha eram lugar de conversa e de convívio, e em Tripoli conseguiu que antigos inimigos partilhassem refeições.
Quando a explosão do porto destruiu parte de Beirute, James decidiu trazer o forno para o sul do país para dar apoio imediato às famílias com fome – numa altura em que o preço dos alimentos disparou 350% em apenas 12 meses, são demasiadas a precisar de ajuda. “Sou amigo do Joe Mourani, dono do Ballroom Blitz [uma das mais famosas discotecas de Beirute], que entretanto teve de fechar, por causa da pandemia. Usamos o espaço para guardar o forno e fazer toda a preparação dos alimentos. No fundo, tem funcionado como o nosso quartel-general”, explica antes de perguntar se é preciso juntar mais azeite aos tabuleiros de couve-flor que estão quase a entrar no forno.
À equipa de base, que inclui refugiados do Sudão e antigos prisioneiros do Daesh, juntam-se todos os dias novos elementos que querem ajudar, de alguma forma. E muitos precisam de ajuda, também. Nour, a namorada libanesa de James, diz que é agora que o desafio maior começa: “O objetivo é reabilitar comunidades e criar um espaço seguro para estas pessoas”, sejam famílias carenciadas, refugiados ou sem-abrigo. Por essa razão, o The Great Oven está “a tentar não cair na rigidez de uma instituição de caridade” no que toca a definir quem são as pessoas que ajuda. “Não vamos ter uma espécie de formulário em que se as pessoas não cumprem todos aqueles pontos, não podem ser ajudadas. Como é que se mede a tragédia que alguém está a viver?”, pergunta Nour, alternando o inglês que fala connosco com o árabe com que responde às duas avós de Achrafieh − o bairro onde o forno estava no dia em que a EXAME falou com os mentores do projeto − que descascam rabanetes para o jantar.
Com a ajuda do Banco Alimentar do Líbano, têm conseguido servir entre 400 e 500 refeições por dia, mas o forno tem capacidade para cozinhar mil. “Já recebemos coisas incríveis, porque, por exemplo, quando um hotel abre falência, o Banco Alimentar pergunta se queremos a despensa. Claro que sim!! E depois há a questão de como usar os alimentos para retirar deles o maior proveito. Este bocadinho de tecnologia antiga do forno comunitário permite mesmo… ‘acrescentar mais um copo de água para alimentar mais pessoas’, como se diz em Espanha”, explica James. “O que fazemos é colocar os ingredientes todos na mesa e tentar responder à questão: como é que podemos fazer disto a maior e mais saborosa refeição? E toda a gente contribui com ideias. O chefe somos todos. Às vezes, conseguimos triplicar ou quadruplicar as quantidades. Eu tenho aprendido mais com estas pessoas do que na minha carreira toda como chefe”, admite.
Atualmente, o The Great Oven já se transformou em quatro fornos e o objetivo é que sejam dez até ao final do ano. O primeiro foi financiado totalmente por James, mas os que estão previstos – o valor da construção e da pintura ronda os $10 mil – são já fruto da generosidade de todos os que, em redor do mundo, decidiram contribuir para o projeto. E a ONU, de olho no sucesso da ideia, já convidou James para uma reunião, de forma a perceber como pode levar o projeto para alguns países da América Central.
*artigo publicado na edição 440 da EXAME, de dezembro de 2020, como parte integrante da reportagem ‘Beirute: “A alma das gentes” renasce’