Inicialmente, as autoridades acreditavam que a morte do ator Matthew Perry, de 54 anos, se tratava de um afogamento, contudo, um relatório toxicológico – divulgado a 15 de dezembro do ano passado – determinou que a sua morte estaria relacionada com os altos níveis de cetamina presentes no seu organismo. As suspeitas de overdose levaram à abertura de uma investigação policial que resultou, na passada quinta-feira, na detenção de cinco pessoas acusadas de conspiração, posse, distribuição e morte como resultado de distribuição de cetamina bem como de alteração e falsificação de documentos envolvidos numa investigação federal.
De acordo com o relatório da autópsia Matthew Perry – mais conhecido pela personagem Chandler, na série televisiva “Friends” – apresentava cerca de 3,54 microgramas por mililitro de cetamina no organismo, quase três vezes a quantidade normal. O relatório apontava ainda o afogamento, uma doença arterial coronária e os efeitos da buprenorfina — um medicamento utilizado para tratar o uso de opiáceos — como fatores que terão contribuído para a sua morte, considerada inicialmente um acidente.
O que é a cetamina?
Envolvida na morte do ator, a cetamina é um alucinogénio – aprovado pela entidade de saúde americana – normalmente utilizado como anestésico em humanos e animais em cirurgias. Administrado através de injeção intramuscular ou intravenosa, possui efeitos de distorção da percepção visual e auditiva fazendo com que os pacientes se sintam desligados da dor e do ambiente que os rodeia. Devido aos seus efeitos nocivos e adição que pode provocar – nomeadamente para o coração e respiração – é recomendada a sua administração apenas por profissionais de saúde. No entanto, esta substância tem sido muito utilizada para outros fins recreativos, devido aos seus efeitos eufóricos.
A cetamina também tem sido utilizada por paramédicos como sedativo, muitas vezes em conjunto com a polícia, quando acreditam que os indivíduos estão fora de controlo. Segundo uma investigação conduzida pela The Associated Press, a prática de administrar cetamina e outros sedativos a pessoas detidas pela polícia espalhou-se por todo o país nos últimos 15 anos. Contudo, alguns estados e agências começaram a repensar a prática devido aos seus perigos. A morte, em 2019, de um jovem negro, no Colorado, chamou a atenção para esta prática e levou a que dois paramédicos fossem condenados por terem administrado uma overdose de cetamina.
No final de 2023, a Food and Drug Administration – a entidade reguladora da saúde americana – emitiu um aviso sobre alguns tipos de cetamina, que não está aprovado para qualquer perturbação psiquiátrica e alertou para os riscos de a substância ser administrada em casa. “Não é um medicamento sobre o qual saibamos o suficiente em termos de segurança e eficácia para uso a longo prazo como paciente ambulatorial, e mais pesquisas precisam ser feitas para isso”, explicou Padma Gulur, professor de anestesiologia no hospital Duke Health, nos EUA, à NBC News.
Nos últimos anos, a cetamina tem sido muito utilizada enquanto tratamento para a depressão, ansiedade e dor. Embora não esteja aprovada para essas condições, a sua prescrição médica é feita “off-label”, ou seja, para tratar doenças que não se enquadram na sua finalidade. A sua procura tem levado à criação de várias clínicas de administração de cetamina pelos EUA, que chegam a cobrar centenas de dólares por injeções de para tratar diversas patologias. “É um medicamento importante porque oferece algo rápido e eficaz para algo que é uma grande fonte de incapacidade para as pessoas”, explicou Brandon Hamm, psiquiatra numa clínica de infusão de cetamina em Chicago, nos EUA, à NBC News. Segundo o especialista, o valor da droga reside, em parte, na rapidez com que funciona. “Os riscos incluem aumento da pressão arterial, respiração lenta e problemas de bexiga. Também pode parar a respiração de uma pessoa se for tomada em excesso ou em conjunto com outros medicamentos ou álcool” referiu Hamm.
Diagnosticado com depressão, Matthew Perry estava a receber tratamentos de cetamina, prescritos pelos seus médicos, quando faleceu. Contudo, dados da investigação revelados na passada quinta-feira, revelaram que o ator recorreu a outras fontes para obtenção da substância quando os seus médicos se recusaram a dar-lhe mais doses.
No seu livro de memórias, intitulado “Friends, Lovers, and the Big Terrible Thing”, publicado em 2022, o ator referia-se aos tratamentos de cetamina a que esteve sujeito como uma “lufada de ar fresco”. Levavam-me para uma sala, sentavam-me, punham-me auscultadores para poder ouvir música, vendavam-me os olhos e punham-me uma intravenosa”, pode ler-se no livro.
A cetamina também já usada em Portugal
Segundo o Jornal Público, há cerca de quatro anos que esta substância é utilizada em Portugal para tratar casos de depressão resistente. Pelo País, apenas os hospitais Beatriz Ângelo, São João, Júlio de Matos e Magalhães Lemos e o Centro Clínico das Janelas Verdes, na Grande Lisboa, recorrem a estes tratamentos.
Quem é a “Rainha da Cetamina”?
Entre os detidos pela morte de Perry encontra-se uma alegada traficante, conhecida como a “Rainha da Cetamina”, dois médicos, o assistente pessoal do ator, Kenneth Iwamasa, e Erik Flemingum amigo próximo do ator. Segundo os procuradores envolvidos no caso, todos terão trabalhado em conjunto de forma a obter as doses de cetamina para o artista.
Iwamasa, Mark Chavez – médico envolvido na rede – e Erik Fleming, respondem à justiça por conspiração para distribuição de cetamina. O assistente de Matthew Perry declarou-se culpado revelando ter injetado o ator com cetamina várias vezes nos dias – e semanas – anteriores à sua morte. “Não estamos a falar de um tratamento legítimo com cetamina”, referiu Martin Estrada, procurador do caso, ao anunciar as acusações numa conferência. “Estamos a falar de dois médicos que abusaram da confiança que tinham, abusaram das suas licenças para pôr em risco a vida de outra pessoa”, continuou.
Ao que a investigação conseguiu apurar, parte dos envolvidos terá recorrido a uma aplicação de mensagens encriptadas de forma a discutir a passagem ilícita da droga. Fleming, realizador americano e amigo de Perry, servia enquanto intermediário na venda de cetamina e foi quem comprou 25 frascos de cetamina a Sangha – a “rainha da cetamina” – e os entregou ao assistente pessoal do ator, que as administrou no dia da sua morte. Após a morte de Perry, a traficante terá enviado uma mensagem a Fleming onde lhe pedia para apagar “todas as nossas mensagens”, segundo NYT.
Também Salvador Plasencia, um dos médicos, está também acusado por falsificação de documentos envolvendo numa investigação federal. Segundo a acusação, este terá tentado enganar as autoridades sobre o tratamento prescrito de cetamina Matthew Perry ao entregar às mesmas “um documento falso que mostrava o plano de tratamento para a vítima” onde constava a dose máxima de 60 miligramas por dia. Contudo, “(…) como Plasencia bem sabia, Plasencia injetou a vítima com doses de cetamina que excediam em muito os 60 miligramas”, revelam os documentos da acusação.
Já Jasveen Sangha, conhecida como a “rainha da cetamina”, é uma das principais figuras ligadas ao caso. A cidadã de dupla nacionalidade – americana e britânica – terá vendido a droga que levou à overdose do ator bem como aconselhado a compra de doses superiores às prescritas para o seu tratamento. Sangha terá vendido 50 frascos de cetamina ao ator por 11 mil dólares – cerca de 10 mil euros -, incluindo os que resultaram na sua morte. A “rainha da cetamina”, segundo a BBC, lidava apenas com celebridades e só traficava quando os valores em causa lhe eram altos. Sangha mantinha ainda as substâncias numa propriedade a norte de Hollywood no que Martin Estrada apelidou de um “império de venda de droga”. Após uma busca, foram apreendidos da sua residência 80 frascos de cetamina e milhares de comprimidos de substâncias como metanfetamina, cocaína ou Xanax.
Nas redes sociais a traficante publicava regularmente a sua vida de luxo, sendo normal a partilha de fotografias das suas viagens, tratamentos de botox e diversas festas. Sangha publicava ainda várias fotografias com celebridades – incluindo o ator Charlie Sheen – apesar dos seus conhecidos problemas de consumo.
Mas esta não foi a primeira morte de um dos clientes de Jasveen Sangha associada à cetamina. Ainda em 2019, outro cliente seu, Cody McLaury, morreu devido a uma overdose da substância e Sangha terá até recebido mensagens dos seus familiares culpando-a do sucedido. “A cetamina que vendeste ao meu irmão matou-o, está nas causas da morte”, revelou à BBC. Dias depois, o histórico de pesquisas da alegada traficante mostrava a pergunta: “Pode a cetamina ser considerada como a causa de morte?”, revelou a investigação do caso.
Sangha, que enfrenta nove acusações – incluindo de conspiração para distribuição de cetamina e distribuição da mesmas – declarou-se inocente perante o juiz. A “rainha” viu ainda o seu pedido de fiança ser-lhe negado e vai permanecer sob custódia policial até ao julgamento, marcado para outubro, em que enfrenta uma pena de prisão mínima de 10 anos e a possibilidade de condenação à prisão perpétua.