A vitória histórica da União Nacional (ex-Frente Nacional) de Marine Le Pen, nas eleições para o Parlamento Europeu, provocou um terramoto político em França. O Presidente, Emmanuel Macron, sentiu-se “obrigado” a avançar para eleições legislativas antecipadas, agendadas para os dias 30 de junho (primeira volta) e 7 de julho (segunda volta). No passado fim de semana, mais de meio milhão de franceses saíram às ruas para protestar contra o avanço da extrema-direita, mas é nos gabinetes que se joga o xadrez político. Marine Le Pen volta a apostar no “trunfo” Jordan Bardella, fenómeno de popularidade (com 1,5 milhões de seguidores na rede social TikTok), que tem contribuído para desdiabolizar um partido conhecido pelas suas posições racistas e xenófobas. Bem-parecido, elegante e telegénico, o jovem político de apenas 28 anos foi o principal rosto do triunfo esmagador da União Nacional nas europeias, com 31,37% dos votos (a coligação liderada pelo Renascimento, partido de Macron, não foi além dos 14,60%). A dimensão do resultado percebe-se (ainda) melhor quando se constata ter sido esta a primeira vez, desde 1984, que um partido francês ultrapassou a barreira dos 30% nestas eleições.
Caso os resultados se repitam, Bardella tornar-se-á, muito provavelmente, o novo chefe do governo francês, a partir de 8 de julho. A eventual coabitação entre Macron (na Presidência) e a União Nacional (no governo) é tida pelos analistas como de “alto risco”, podendo contribuir para bloquear a governação e, sobretudo, ter impacto na política externa francesa, pondo mesmo em causa o apoio à Ucrânia. Na primeira sondagem publicada desde o anúncio das legislativas, a União Nacional surge com a possibilidade de eleger entre 235 e 265 lugares na Assembleia Nacional, aquém dos 289 para uma maioria absoluta, mas um grande salto em comparação com os atuais 88 deputados.
Noutra frente, Marine Le Pen, mentora de Bardella, tem os olhos postos no Eliseu. A grande ambição continua a ser a de suceder a Macron, após as presidenciais de 2027, e ficar com o Estado francês na mão.
A direita divide-se
Dois blocos tentam agora unir-se para contrariar este cenário, mas os caminhos parecem ter demasiados obstáculos (tanto à esquerda como à direita).
O “caso” Éric Ciotti denunciou o caos instalado na direita francesa. Logo que Macron anunciou as legislativas, o presidente d’Os Republicanos (direita conservadora gaullista) divulgou que apoiava “uma aliança” com a União Nacional nestas eleições, quebrando um tradicional “cordão sanitário”. A declaração caiu como uma “bomba” dentro do próprio partido, levando a comissão executiva a reunir de urgência. Horas depois, Os Republicanos anunciavam, na rede social X, ter decidido “por unanimidade” excluir Ciotti do partido. O jornal francês Le Figaro chegou a adiantar que a secretária-geral do partido, Annie Genevard, e o cabeça de lista ao Parlamento Europeu, François-Xavier Bellamy, seriam os presidentes interinos, mas Ciotti reagiu, e não reconheceu a decisão, considerando que a reunião se realizou “em flagrante violação” dos estatutos, uma vez que “ninguém tem o poder de convocar a comissão executiva sem a intervenção do presidente” (ou seja, ele próprio). Ciotti mantém-se, para já, no cargo, mas a confirmar-se o acordo com a extrema-direita, Os Republicanos, partido de figuras como os ex-presidentes Georges Pompidou, Valéry Giscard d’Estaing, Jacques Chirac ou Nicolas Sarkozy, arriscam uma cisão.
Enquanto à direita parece haver quem “ceda” ao canto dos radicais, Emmanuel Macron tenta recuperar a Frente Republicana, pacto que, historicamente, tem servido para travar a extrema-direita – o Presidente francês procura repetir uma receita que valeu a vitória de Jacques Chirac, na segunda volta das presidenciais de 2002, contra Jean-Marie Le Pen, pai da atual líder da União Nacional.
O apelo de Macron não exclui as forças partidárias de esquerda, mas estas parecem ter já decidido seguir outro caminho. O “bloco central, progressista, democrático e republicano” anunciado pelo Presidente francês pode, desta vez, ser demasiado curto.
A esquerda une-se
A esquerda parece posicionada para a batalha eleitoral, tendo já anunciado uma nova Frente Popular, que junta Partido Socialista – que “ressuscitou” com um bom resultado nas europeias –, Verdes, Partido Comunista, Praça Pública (liderado por Raphaël Glucksmann) e França Insubmissa, do polémico Jean-Luc Mélenchon. Apesar das divergências, o projeto para derrotar a direita francesa – não só Le Pen, mas também o bloco de Macron – parece estar a ser levado (muito) a sério. Prova disso mesmo são os primeiros acordos sobre temas sensíveis, que exigiram que Mélenchon revisse algumas das suas “linhas vermelhas” em matéria de política externa: concordou em manter a entrega de armas à Ucrânia e defender o regresso da Rússia às fronteiras anteriores ao início da agressão russa, em declarar que o Hamas é uma organização terrorista e em admitir que o antissemitismo “explodiu” em França – e não é apenas “residual”, como chegou a escrever num blogue.
Com um sistema eleitoral a duas voltas, o desfecho das legislativas francesas é imprevisível. Com o partido de Le Pen em vantagem nas sondagens, a cisão da direita parece dar vantagem à nova Frente Popular para chegar à segunda volta. Certezas, apenas que os blocos que passarem ao segundo round vão precisar de convencer meia França a “engolir um sapo” para travar um governo de Jordan Bardella. O sindicalista Laurent Berger é o favorito da esquerda para o cargo de primeiro-ministro. jsantos@visao.pt
A luta dos Thuram
Tal pai, tal filho. Marc Thuram imitou o pai, quase duas décadas depois, e apelou ao voto contra a extrema-direita de Le Pen
Corria o ano de 2006 quando Jean-Marie Le Pen, pai da atual líder da União Nacional, afirmou que a população francesa não se reconhecia totalmente na seleção francesa de futebol. Em vésperas do Mundial na Alemanha, o líder da extrema-direita queixava-se de haver “muitos jogadores de cor” na equipa. Do grupo de 23 futebolistas, fazia parte Lilian Thuram, então com 34 anos, e estatuto de campeão do mundo (em 1998). Natural do território ultramarino de Guadalupe (Antilhas Francesas), o jogador não foi brando a responder: “Ele [Le Pen] não está consciente de que existem franceses negros, franceses brancos, franceses castanhos… Acho particularmente mau um homem com aspirações a ser Presidente de França não saber, claramente, nada sobre a História e a sociedade deste país.”
18 anos depois, é a vez de o filho, Marcus Thuram, responder ao discurso político da família Le Pen. Antes da estreia dos blues no Europeu de 2024, também na Alemanha, o jogador afirmou que os franceses têm “de lutar todos os dias para que isto [vitória da extrema-direita] não volte a acontecer e para que a União Nacional não passe”.
A acompanhar os Thuram estão muitos outros nomes do universo do desporto e da cultura (e não só). Nos dias 30 de junho e 7 de julho, os franceses são chamados às urnas – cada voto conta.