Que têm em comum três velhos pensadores franceses (Dominique Venner, Renaud Camus e Alain de Benoist) com um perigoso pintarolas austríaco de 35 anos? Martin Sellner pode não ser ainda uma estrela global por expressa vontade própria, mas desde jovem que devora as ideias, os livros e as experiências de vida do triunvirato que o inspira: Venner, o historiador e ensaísta que se suicidou há pouco mais de uma década, militou numa organização terrorista contra a independência da Argélia (OAS) e participou, em 1961, num golpe falhado contra o Presidente Charles de Gaulle; Camus é o principal propagandista da teoria da grande substituição, que as populações autóctones da Europa estão a ser substituídas (demográfica, cultural e religiosamente) por imigrantes oriundos de outros continentes, sobretudo de África e da Ásia; Benoist costuma ser descrito como o prolífico autor da “Nova Direita” e o intelectual que defende a união das forças anti-sistema contra o “pensamento único”).
Hipster identitário
Nascido e criado nos arredores de Viena de Áustria, Martin Sellner está a fazer jus às três figuras acima mencionadas – poderíamos somar à lista Martin Heidegger ou Oswald Spengler – e revelou ser bastante precoce em ações diretas e polémicas. Ainda antes de atingir a maioridade, atacou sinagogas, integrou vários grupos neo-nazis, promoveu cerimónias de homenagem a soldados das SS e sessões de esclarecimento a negar o Holocausto. Após passar pelas licenciaturas de filosofia e direito, que nunca concluíu, iniciou uma carreira como ativista profissional, enquanto chefe de fila de um movimento identitário, contra tudo o que lhe cheirasse ser de esquerda, em prol da democracia e da imigração.
Para se distinguir dos skins convencionais, nunca quis rapar o cabelo, usar roupa militar ou as famosas botas Dr Martens. O visual polido mas “hispster” e o poder da palavra bastaram-lhe para se assumir como “grafista e blogger”, com perto de 100 mil seguidores em diferentes pontos do globo. Um deles chamava-se Brenton Tarrant, um supremacista australiano que, no início de 2018, lhe ofereceu 1500 dólares a favor das causas comuns. A 15 de março do ano seguinte, Tarrant levou a cabo um mediático ataque contra a comunidade muçulmana de Christchurch, na Nova Zelândia, que fez 51 mortos e outros tantos feridos, tudo filmado e transmitido em direto nas redes sociais.
O atentado levou a polícia austríaca a instaurar um processo a Martin Sellner, por alegada cumplicidade. Além do dinheiro, o então líder do Identitäre Bewegung Österreich (IBÖ, siglas do seu movimento identitário, em língua alemã), era suspeito de se ter encontrado com Tarrant em Viena, Salzburgo e Innsbruck. Num vídeo transmitido no YouTube, ele negou categoricamente qualquer responsabilidade pelo que aconteceu nos antípodas e apresentou-se como vítima de uma perseguição política: “Não sou membro de nenhuma organização terrorista, não tenho nada a ver com esse indivíduo, excepto o facto de ter recebido uma doação sua”. E, para justificar esta última, acrescentou: “Todos os que me apoiam recebem um email de agradecimento.” O caso mereceu também a atenção do governo de coligação austríaco, entre o conservador Partido Popular e o Partido da Liberdade (extrema-direita), com o primeiro-ministro da altura, Sebastian Kurz, a afirmar que não iria tolerar “fanatismos”, fossem eles “ultranacionalistas ou islâmicos”. Martin Sellner acabou absolvido – armado em filantropo, entregou 1500 dólares a uma instituição de caridade -, mas as autoridades deram como provadas as ligações entre o IBÖ e outras entidades neofascistas, como a italiana Casa Pound ou a francesa Génération Identitaire.
Na sequência deste episódio, já sinalizado por diversos serviços de informações e proibido de entrar no Reino Unido e nos EUA, Martin Sellner prosseguiu discretamente a sua vida, denunciando, em entrevistas esporádicas, a “utopia do multiculturalismo” e garantindo que, “tal como o comunismo, o cosmopolitismo fracassou”.
Adepto da solução radical
Há três semanas, o nome de Martin Sellner voltou a merecer parangonas em títulos de referência, após uma plataforma de jornalismo de investigação na Alemanha, a Correctiv, denunciar um encontro secreto de vários dirigentes e simpatizantes de extrema-direita, em Potsdam, a sudoeste de Berlim. Essa cimeira radical terá ocorrido a 25 de novembro de 2023, no hotel Landhaus Adlon, um palacete centenário junto ao lago Lehnitz. Por estranha coincidência, o local dista meia dúzia de quilómetros de uma outra mansão histórica que, em 1942, acolheu as elites nazis para a conferência de Wannsee, em que se definiu a “solução final para a questão judaica”. Desta vez, os participantes do “forum identitário”, três dezenas de pessoas, discutiram as formas de extraditar “estrangeiros indesejados”, “requerentes de asilo”, “não alemães com autorização de residência” e “cidadãos não assimilados”. Tal como Reinhard Heydrich e Adolf Eichmann, principais comandantes das SS intervenientes na reunião de Wannsee, os promotores do encontro de novembro passado querem instituir uma “volksgemeinschaft” (“comunidade nacional”) baseada em linhas étnicas e contornos de eugenia. E, segundo os jornalistas da Correctiv, o responsável pela apresentação do “plano estratégico” para deportar milhões de pessoas para um “estado modelo”, no norte de África, coube a Martin Sellner. Antes de apostar nos campos de extermínio, o regime de Adolf Hitler ponderou expulsar 4 milhões de judeus para a ilha de Madagáscar. Agora, o jovem líder ultranacionalista austríaco fala de um “sistema para incitar à partida voluntária” de todos aqueles que, na Alemanha e no Velho Continente, constituem um “fardo económico, cultural e criminal”. Se Hitler descreveu na sua autobiografia, Mein Kampf, publicada em 1925, as suas intenções futuras, Martin Sellner também já revelou parte dos seus planos num livro recém-publicado – Remigration: Ein Vorschlag (numa tradução livre, Remigração: Uma proposta – ou a minha solução).
Nas últimas semanas, nas principais cidades germânicas, percebeu-se que existe muita gente indignada e revoltada com a conversa deste guru xenófobo que se diz preocupado com o futuro do Velho Continente e o “Stimmvieh”, o “gado” que já tem voz e peso eleitoral.
Percebe-se a inquietação. 2024, como já se explicou vezes sem conta, será um ano excecional em que quase metade da população mundial irá às urnas dizer de sua justiça. No caso da Alemanha, pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, organizações que voltam a invocar a superioridade ariana podem alcançar vitórias surpreendentes. Se houvesse agora legislativas, de acordo com as sondagens, os cristãos democratas da CDU-CSU alcançariam um resultado a rondar os 30%, mas o partido que aparece nas intenções de voto em segundo lugar, a Alternativa para a Alemanha (AfD), receberia perto de 22%. Algo que, a verificar-se, lhe permitiria duplicar o número de deputados face ao último escrutínio para o Bundestag, o parlamento federal, realizado em 2021, humilhando os sociais-democratas do SPD, os Verdes e os Liberais (formações que constituem a atual coligação no poder). Pior. Os últimos estudos de opinião indicam que a AfD poderá ganhar as eleições deste outono em três estados (Turíngia, Saxónia e Brandemburgo) e, antes disso, em junho, obter uma votação record para o Parlamento Europeu (passando dos atuais 11 eurodeputados para 22).
Loba vestida de ovelha
“Nos últimos anos, a AfD tem sido subestimada e etiquetada como um partido do leste [da antiga RDA] ou um partido de protesto, mas a ameaça é bem real”, afirmou ao diário La Vanguardia Irmgard Wurdach, diretora de um movimento antiracista. Em Bruxelas e Estrasburgo, a Identidade e Democracia (I&D), família política a que pertence a AfD, a Liga italiana, de Matteo Salvini, e a União Nacional francesa, de Marine Le Pen, pode crescer de 58 para uma centena de representantes. Um estudo recente do think tank Conselho Europeu de Relações Externas (ECFR, nas siglas em inglês), alerta para a quase inevitabilidade de um aumento vertiginoso das formações nacionalpopulistas e de extrema direita no sufrágio que vai mobilizar 370 milhões de eleitores, na UE, entre 6 e 9 de junho. Claro que o português Chega também entra nestas contas. Eddy Wax e Paul Dallison, na newsletter semanal que o Politico dedica às eleições para o hemiciclo europeu, foram muito claros: “O próximo Parlamento deverá ser mais amigável para com a Rússia, menos Verde e mais eurocético do que nunca. Mesmo que se mantenha uma maioria pró-europeia, uma enorme vaga de direita pode seguramente influenciar a próxima Comissão e reduzir o poder desta para assassinar legislação que divide as forças centristas – das migrações à agricultura, passando pelo Green Deal [pacto ecológico europeu]”. Para complicar as coisas, o líder do Partido Popular Europeu [grupo que integra as formações de centro-direita], o alemão Manfred Weber, defende o fim do cordão sanitário que, historicamente, impediu acordos com os partidos extremistas. Ou seja, ao contrário de milhões dos seus compatriotas que se manifestam nas ruas em defesa da democracia e apelam à ilegalização das forças que violam a Constituição germânica, Weber parece não ter problemas em dialogar com Hans Georg Massen (ex-diretor dos serviços secretos germânicos que vai lançar um novo partido xenófobo e que já está a ser investigado por alguns dos seus ex-agentes) ou Alice Weidel, a líder da AfD que admitiu ao Financial Times estar disposta a convocar um referendo para formalizar um Dexit (a saída unilateral da Alemanha da UE) e a quem o líder parlamentar dos sociais democratas no Bundestag (Lars Klinbeil, chamou “loba com roupa de ovelha”. O aparente insulto explica-se facilmente: dois deputados da AfD e o principal conselheiro político de Alice Weidel, Roland Hartwig, estiveram entre os convivas que aplaudiram os planos de Martin Sellner. Quanto ao guru de Viena, tem crescentes dificuldades em passar despercebido. Na passada semana, a polícia alemã interrogou-o várias horas na histórica cidade bávara de Passau, perto da fronteira austríaca. Explicação oficial que apresentou: “Tomar um café e comer um bolo!”