Se há uma virtude no líder do Partido dos Trabalhadores (PT) e Presidente eleito do Brasil, que “ninguém discute”, é a sua “enorme e inacreditável capacidade de negociar”, diz, em entrevista à VISÃO, o escritor e jornalista brasileiro Fernando Morais, 76 anos, autor de Lula – Biografia: I Volume (ed. Objetiva, 392 págs., €21,95), que chegou às livrarias portuguesas em setembro. Àquela virtude para enfrentar o dificílimo mandato presidencial (o seu terceiro) que começa a 1 de janeiro de 2023, o biógrafo acrescenta uma nota pessoal surpreendente: “Para mim, o Lula que saiu da cadeia é infinitamente melhor do que o Lula que entrou na cadeia.” Recorde-se que, em 2017, o então juiz federal Sérgio Moro (agora ex-magistrado e senador eleito pelo Estado do Paraná) condenou Lula a quase dez anos de prisão, por corrupção, na sequência da Operação Lava Jato. Essa sentença seria anulada, em 2019, pelo Supremo Tribunal Federal, por ilegalidades processuais e “parcialidade” de Moro, com os direitos políticos a serem devolvidos a Lula, 77 anos – que de imediato arrancou com a sua candidatura presidencial, vencendo à tangente Jair Bolsonaro, na segunda volta das eleições, no passado dia 30.
Como Lula da Silva está a ver os tumultos agora causados por apoiantes de Jair Bolsonaro e as atitudes do Presidente em exercício?
Era natural que Bolsonaro reagisse como reagiu. Não se pode dizer que ele seja uma pessoa educada, não é um sujeito polido. De Bolsonaro, Lula já esperava isso. E, ao mesmo tempo, está tão despreocupado com os tumultos que pegou na sua esposa, Rosângela – eles se casaram em maio e até agora não tinham tido a oportunidade de ter lua-de-mel -, para aproveitarem estes dias para, finalmente, desfrutá-la. Foram para uma praia isolada da Baía, para, pela primeira vez, ficarem sossegados por uns dias.
Que qualidades diria que Lula tem para operar o milagre de pacificar e harmonizar este Brasil politicamente partido ao meio, objetivo que expressou no seu discurso de vitória?
Se há uma virtude em Lula que ninguém discute é a sua capacidade de negociação. Ele se converteu de líder operário provincial numa figura nacional e, depois, internacional à conta, sobretudo, dessa virtude – a enorme, inacreditável capacidade de negociar. De um lado, liderava uma greve [nos anos 1970/80] e paralisava 500 mil trabalhadores. E durante a noite ia negociar com os patrões. Ele passava ao lado da mediação do Estado, com as chamadas Delegacias Regionais do Trabalho. A região que Lula controlava do ponto de vista sindical, em São Paulo, respondia por 80% do Produto Interno Bruto do Brasil. Era uma questão de segurança nacional. E para não ficar pendurado nas mãos de burocratas do Ministério do Trabalho, Lula fazia um atalho e ia diretamente se encontrar com os patrões. Mais: não na sede da Federação das Indústrias, mas na casa deles, ou de amigos comuns, para poder negociar. No dia seguinte, punha à consideração da assembleia de trabalhadores o que tinha sido falado. E ele já sabia como conduzir a assembleia para conseguir um “sim” ou um “não”. Lula é “pós-doutorado” na capacidade de negociar. Reúne também outras virtudes que não foram aprendidas na universidade nem nos pouquíssimos cursos que fez. Foram aprendidas na vida.
Mas vai agora ter de enfrentar um Congresso hostil, num mandato que será aquele que ficará para a História, segundo muitos comentadores políticos…
Concordo. É certo que os partidos que apoiaram Lula na eleição presidencial não tiveram cadeiras suficientes para obter maioria. Mas, a propósito, ocorre-me dizer que, para mim, o Lula que saiu da cadeia é infinitamente melhor do que o Lula que entrou na cadeia.
Porquê?
Exemplifico: ele leu nos 581 dias em que esteve preso seguramente mais do que tinha lido em toda a sua vida. Quando eu ia visitá-lo à cadeia, via a pilha de livros que estava ali para ser retirada, ou seja, livros que ele já tinha lido. Eu passei os olhos por alguns, e estavam anotados do princípio ao fim. Lula aprofundou e consolidou nessas leituras, de uma maneira teórica, coisas que conhecia pela vida prática ou por ideias superficiais. Isso, porém, não desmerece o milagre de ter feito uma revolução aqui, de tirar 40 milhões de pessoas da fome, e de fazer com que elas tivessem três alimentações por dia, sem quebrar a economia do país. Tudo isso foi destruído por Bolsonaro. E vai ter de ser reconstruído. A economia hoje não é tão risonha quanto era no período em que Lula foi presidente [2003/2011]. Os governos dele foram muito beneficiados pela alta dos preços das commodities, como, por exemplo, a soja brasileira, que se transformou em ouro, com a China a importá-la em quantidades brutais. Hoje, até o preço do aço brasileiro, de que a China, de novo, é talvez o maior cliente, caiu. Não é uma situação sedutora para um governante. Mas – e não sou do partido dele, nem de nenhum outro – estou convencido de que Lula tem uma grande agilidade para lidar com os problemas, muitas vezes partindo de soluções absolutamente óbvias.
Ainda assim, vai ter de engolir muitos sapos vivos, como dizemos em Portugal…
Tenho medo de que ele seja obrigado a engolir, além dos sapos, alguns gambás.
Porquê?
A situação ficou muito difícil. Será preciso fazer emendas constitucionais para, por exemplo, quebrar o teto de gastos para permitir que o Bolsa Família seja ressuscitado com maior pujança. Com o Bolsa Família a funcionar como deve ser, inicia-se uma correia de transmissão que vai mexer com a economia inteira do país, do emprego à habitação. Lula vai ter de mexer nos recursos do tesouro brasileiro se quiser enfrentar, antes de mais, a fome, que é a proposta n.º 1 dele. Ele acha inadmissíveis preocupações com a ciência, a tecnologia, a educação, com o que for, quando há um povo que não come três vezes por dia. Não adianta. Provavelmente, terá também de apresentar outras propostas de emendas à Constituição, para fazer voltar atrás muitas das medidas tomadas por Bolsonaro.
Vai ser mesmo difícil…
Vai. Mas Lula também tem uma resistência física inacreditável. Ele é poucos meses mais velho do que eu, e lembro-me, por exemplo, de uma viagem de 23 horas que fiz com Lula, de São Paulo a Nova Deli, com uma única escala em Maputo, para reabastecimento do avião. Vinte e três horas para ir e outras tantas para voltar, e ele, quando saiu do avião, sentou-se num carro para ir participar num comício de um amigo, que era candidato a prefeito numa cidade a 200 quilómetros de São Paulo. Já eu, honestamente, queria deitar-me num caixão confortável e morrer. E ele ia fazer um comício!
A “capacidade de negociação” de Lula estender-se-á aos representantes no Congresso do “bolsonarismo raiz”, como lhe chamam no Brasil?
Não. Quando falo na capacidade de negociação de Lula com um Congresso hostil, excluo a extrema-direita. Com essa gente não tem negócio, não tem negociação.
Em quem Lula aposta para o suceder na liderança do PT?
Lula não tem herdeiros visíveis, hoje. E, se me puserem à frente um saco com um milhão de dólares, que ficam para mim se acertar no sucessor que Lula tem na cabeça, vou falhar. Não sei mesmo quem possa ser.