Numa entrevista em Óbidos, no âmbito da sua passagem pelo Folio e do lançamento em Portugal do seu primeiro romance em cinco décadas, intitulado “Crónicas do Lugar do Povo mais Feliz da Terra”, o prémio Nobel da Literatura de 1986, questionado sobre se o livro, que satiriza a classe política da sua terra natal, retrata um momento específico no tempo, Soyinka disse que desejaria “poder dizer que é uma fase”.
“É algo que tem vindo a crescer e que é importante enfatizar, a deterioração do valor humano por todo o mundo, quer estejas a falar de um acampamento de escravos conhecido como Coreia do Norte ou quer estejas a falar de um fenómeno como Donald Trump, nos Estados Unidos, que se pressupõe que sejam um bastião da democracia”, afirmou Soyinka, para quem o anterior presidente dos Estados Unidos devia ser condenado a prisão perpétua por ter “nas suas mãos o sangue de milhares de americanos e [cidadãos de] outras partes do mundo”, pelas suas ações durante a pandemia da covid-19.
O escritor acrescentou que também se pode falar de algo em tempos “nunca pensado — para não dizer impensável — como o desenvolvimento de uma sociedade que se tinha por progressiva como a União Soviética, e que veio em auxílio de muitas sociedades africanas nas suas lutas de libertação, para se tornar num rufia abominável que tenta pulverizar uma entidade soberana vizinha como a Ucrânia”.
O autor de “Aké” elencou ainda o número elevado de golpes militares em África e o surgimento de “outro fenómeno anti-humano como o fundamentalismo religioso, que está a impedir o desenvolvimento do continente africano e a brutalizar a humanidade ainda mais do que o que essas sociedades experienciaram sob a colonização europeia”.
Soyinka, autor de três romances, mas principalmente de uma extensa obra poética e teatral (encenado duas vezes em Portugal: “A Raça Forte”, em 2013, e “Uma Dança das Florestas”, este ano, ambas pelo Teatro Griot), apontou o dedo ainda à chamada “crise migratória, criada pela inaptidão de líderes, por um lado, e pela xenofobia, por outro”.
“Aquilo a que temos assistido na última década tem sido uma espécie de rendição do que se podem considerar os ganhos progressivos do período em que eu cresci para uma fase de libertação”, afirmou o escritor.
Wole Soyinka sublinhou que “o poder contra-ataca sempre”, pelo que “nunca se pode pensar que a guerra foi completamente vencida”.
“A liberdade ganha algumas batalhas, perde às vezes terreno. Parece ser, tristemente, a trajetória da existência para muito do mundo. Veja-se o que aconteceu na Birmânia”, disse o escritor, que ao longo da carreira denunciou violações de direitos humanos e chegou a estar preso durante quase dois anos, no final da década de 1960.
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