Um conjunto de arquivos confidenciais incluindo documentos privados, memorandos, faturas, e-mails, mensagens de texto e apresentações da empresa Uber entre os anos de 2013 e 2017, quando se tratava apenas de uma startup em crescimento num processo para se tornar a gigante que é hoje, foram obtidos pelo jornal The Guardian e compartilhados com o Consórcio Internacional dos Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla inglesa). As informações vazadas revelam um passado obscuro da empresa de transporte e vêm provar como nem sempre se olharam aos meios para atingir os fins. Esta é a história desconhecida da ascensão da Uber e de como a sua atual posição no mercado foi atingida com a ajuda de elementos dentro do governo, o incumprimento de leis e regulamentos locais e a exploração da violência contra os seus próprios trabalhadores.
Quando a aplicação Uber foi lançada pela primeira vez, em 2010, na cidade de São Francisco, nos EUA, a empresa não era mais do que uma startup que oferecia aos seus clientes a possibilidade de alugarem veículos de luxo para transporte. O serviço era limitado às fronteiras da cidade e minimamente conhecido e foi apenas no ano seguinte, com a introdução de uma nova opção, a UberX, que permitia aos motoristas utilizarem os seus próprios carros no serviço, que a empresa começou a ganhar força e a fazer-se notar.
Os anos que se seguiram trouxeram um crescimento significativo que permitiu à empresa expandir-se além-fronteiras e assegurar o seu lugar no mercado de vários países. Em 2013, o serviço já operava em mais de 30 locais, principalmente nos EUA, e já tinha planos para assegurar um crescimento no estrangeiro. Em 2017, quando o controverso co-fundador da empresa, Travis Kalanick, um dos nomes mais vezes enunciado nos documentos vazados, renunciou ao cargo de presidente-executivo, a Uber já operava em mais de 600 locais.
O período de tempo compreendido entre os anos de 2013 e 2017 foi, por isso, de extrema importância na história da empresa já que foi nessa época que a mesma ascendeu ao topo. Os documentos analisados pelo The Guardian e outros 43 parceiros de media com quem o jornal britânico partilhou as informações revelam os investimentos e estratégias utilizadas pela Uber para atingir o lugar que hoje ocupa no mercado, assim como os nomes de quem terá ajudado a empresa a vingar.
A informação assume-se como prova, não só de um conjunto vasto de práticas eticamente questionáveis levadas a cabo pela empresa durante a análise de cinco anos oferecida pelos documentos, que incluem a pressão sobre governos para que fossem alteradas leis de transporte que favorecessem a Uber, o incumprimento de ordens diretas da polícia, o incentivo á violência, entre outros, como a noção de que Kalanick, assim como outras personalidades em cargos de destaque da empresa, tinham conhecimento de que as decisões tomadas eram, de facto, ilegais.
Algumas mensagens divulgadas mostram, inclusive, os executivos da Uber a autonomearem-se de “piratas” pela forma como orientavam a empresa, com um deles admitindo mesmo compreender o porquê de terem tantos problemas com a polícia já que eram “simplesmente ilegais”.
De acordo com os documentos divulgados, este tipo de práticas terá sido aplicado em vários países de todo o mundo, incluindo Portugal. Entre os nomes que têm causado mais controvérsia encontra-se o atual Presidente francês, Emmanuel Macron, que terá, na mesma época em que uma série de protestos organizados por motoristas de táxi contra a Uber decorriam em várias cidades francesas sob o pretexto de a empresa não oferecer uma competição justa, feito promessas a Kalanick de que reformaria as leis a favor da empresa.
Também o nome da ex-vice-presidente da Comissão Europeia, Neelie Kroes, surgiu entre os cerca de 83 mil e-mails divulgados por se encontrar, na época, em negociações para assinar um contrato de trabalho com a Uber antes do término do seu mandato, apesar das restritas regras da União Europeia que o proibiam.
Não é, no entanto, a primeira vez que a gigante de transporte se vê envolvida em controvérsias, especialmente sob as ordens de Kalanick. Entre 2013 e 2017, a Uber terá visto o seu percurso marcado por vários processos judiciais, alegações de assédio sexual e polémicas de violação de dados.
O “espetacular” apoio de Emmanuel Macron
A expansão da Uber na Europa teve o seu começo na capital francesa onde encontrou uma forte resistência por parte da indústria de táxis que viu o emprego dos seus motoristas ser posto em causa perante uma empresa com uma forte componente tecnológica e preços significativamente mais reduzidos. Assim, a entrada da Uber no mercado francês foi recebida com relutância e tornou as ruas de Paris o palco de violentos protestos.
Nessa época, Macron já integrava o governo francês, não enquanto Presidente, mas enquanto ministro da Economia. Assim, e vendo-se responsável pela economia do seu país, o ex-banqueiro viu na nova empresa uma oportunidade de crescimento e de criação de novos empregos, pelo que, em outubro de 2014, realizou uma reunião com Kalanick e outros executivos e lobistas que marcou o início do longo, ainda que pouco divulgado, período no qual foi defensor dos interesses controversos da empresa dentro do governo. Nos documentos divulgados é possível ler uma mensagem enviada por um dos lobistas presentes, Mark MacGann, na qual descreve a reunião como “espetacular”. “Vamos dançar em breve”, acrescentou.
Depois dessa primeira reunião, Macron e Kalanick ter-se-ão encontrado pelo menos outras quatro vezes durante o período de análise: em Paris e na conferência do Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça. Dos quatro encontros apenas um era previamente conhecido pelo público e órgãos de comunicação. O atual Presidente francês foi também responsável por organizar reuniões com a oposição do seu próprio partido para assegurar que os interesses da Uber eram considerados pelo governo.
Mensagens diretas entre Macron e o co-fundador da Uber sugerem que o ex-ministro da economia terá chegado a interferir nas decisões governamentais no sentido de reformar a lei francesa para favorecer a empresa de transporte. “A Uber fornecerá um esboço de uma estrutura regulatória para a partilha de viagens. Conectaremos as nossas respetivas equipas para começar a trabalhar numa proposta viável que possa tornar-se a estrutura formal em França”, escreveu num e-mail para Macron, Kalanick. A mensagem foi enviada numa época em que os protestos por parte da indústria de táxis se tornavam especialmente violentos. Uma semana depois, a resposta do atual Presidente francês deixou clara a sua posição: “Reunirei todos na próxima semana para preparar a reforma e corrigir a lei”.
O pedido de ajuda de Kalanick seguia o escalar dos protestos dos taxistas que, por sua vez, vinham em consequência do mais recente serviço da aplicação, UberPop, que permitia a motoristas não licenciados oferecerem viagens a preços muito mais baixos. Macron não terá apoiado esse serviço, mas terá, em troca do término do mesmo, favorecido a empresa de um ponto de vista legal.
A Uber, no entanto, já veio assegurar perante as acusações de que a “suspensão do UberPop não foi de forma alguma seguida por regulamentações mais favoráveis”, e uma nova lei que entrou em vigor em 2018 resultou na adoção de “regulamentos mais rígidos” em França, que “não eram de forma alguma benéficos para a Uber”.
Também um porta-voz de Macron terá dito num e-mail, em resposta ao The Guardian, que as “funções (do atual Presidente) naturalmente o levaram a conhecer e interagir com muitas empresas envolvidas na mudança acentuada que ocorreu durante esses anos no setor de serviços, que teve de ser facilitada pelo desbloqueio de obstáculos administrativos e regulatórios”.
Os documentos divulgados mostraram um padrão de comportamento da Uber enquanto empresa entre 2013 e 2017. Ao que tudo indica, e tendo em conta as várias mensagens e e-mails, a estratégia da gigante de transporte implicava explorar com frequência as relações que estabelecia com personalidades no poder, ignorando com recorrência regulamentos locais e apoiando-se em acordos com membros dos próprios governos. Além de Macron, vários executivos da Uber terão reunido com nomes como Enda Kenny, primeiro-ministro irlandês, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelita, e George Osborne, então chanceler do Reino Unido, tendo este último sido, inclusive, considerado um “forte defensor” numa nota sobre uma reunião em que terá participado.
Num comunicado, Osborne defendeu-se dizendo que era a política explícita do governo, na época, reunir-se com empresas globais de tecnologia e “convencê-las a investir na Grã-Bretanha e criar empregos”. A reunião na qual participou Osborne foi declarada e divulgada, no entanto os dados revelam que seis ministros conservadores do Reino Unido tiveram reuniões com a Uber que não foram divulgadas, levantando questões sobre se as mesmas deveriam ou não ter sido declaradas, como salienta o The Gardian.
O lobby secreto de Neelie Kroes
Em 2016, e numa tentativa de reprimir todas as ações contra a empresa, assim como alterar as leis a seu favor, a Uber planeou dedicar mais de 89 milhões de euros em lobby e relações públicas, de acordo com as informações de um dos documentos divulgados. Uma das estratégias da empresa parecia ser investir em lobistas poderosos que pudessem pressionar os governos a seu favor. Um dos exemplos mais polémicos desta prática foi o da ex-vice-presidente da Comissão Europeia, Neelie Kroes.
É de conhecimento público que Kroes integrou a empresa no fim do seu mandato enquanto ex-vice-presidente da Comissão Europeia. No entanto, a sua relação com a Uber poderá ter sido mais profunda do que antes considerado e ter ido, inclusive, contra as regras que regem a conduta dos comissários.
De acordo com os documentos divulgados, Kroes estaria em negociações para se juntar ao conselho consultivo da Uber antes de ter dado como terminado o seu mandato na Comissão Europeia. As regras da UE expressam que os comissários devem respeitar um período de “reflexão” de cerca de 18 meses após abandonarem o seu cargo, altura durante a qual qualquer nova oportunidade de emprego deve fazer-se acompanhar de uma aprovação da própria comissão.
Ainda durante o seu período de reflexão, e embora tal não fosse aprovado, Kroes terá sido responsável por pressionar vários ministros e membros do governo dos Países Baixos, o seu país natal, para que recuassem numa operação que tinha como objetivo não só proibir a UberPop, que também foi alvo de muita controvérsia no país, mas investigar a própria empresa.
Em outubro de 2014, um mês antes de Kroes abandonar o seu cargo na Comissão Europeia, vários motoristas holandeses da Uber foram presos. Em dezembro, um juiz terá proibido formalmente o serviço UberPop no país e em março de 2015, quando a ex-comissária ainda se encontrava no seu período de “reflexão”, o escritório da Uber em Amesterdão terá sido invadido pela polícia, altura na qual Kroes terá pressionado o chefe do serviço civil holandês.
Num e-mail interno, o porta-voz de Kroes terá, inclusive, aconselhado a equipa a não discutir o relacionamento informal que a ex-comissária mantinha com a Uber externamente, dando a entender que o mesmo não seria inteiramente legal: “A sua reputação e a nossa capacidade de negociar soluções na Holanda e em outros lugares sofreriam com qualquer brincadeira casual dentro ou fora do escritório”. De acordo com os arquivos, a Uber queria que Kroes passasse mensagens diretamente para o gabinete do primeiro-ministro holandês, Mark Rutte.
Também antes do término dos 18 meses, Kroes terá redigido um pedido ao Comitê de Ética Ad Hoc da comissão para que lhe fosse dada permissão para ingressar no conselho consultivo da Uber antes do fim do seu período de “reflexão”, apelando diretamente ao presidente da comissão, Jean-Claude Juncker. Apesar de a permissão ter sido explicitamente negada, Kroes continuou a ajudar a empresa informalmente até a sua nomeação enquanto membro do conselho consultivo da Uber ter sido anunciada, logo após o término do referido período.
De acordo com o testemunho de Alberto Alemanno, professor Jean Monnet de Direito da União Europeia na HEC Paris, à BBC, a conduta de Kroes constituiu uma “clara violação” das regras da Comissão Europeia. “Isto é a prova de que está a ser feito algo que não se tem permissão para fazer”, argumentou. “Porque se ela não tivesse pedisse permissão, ainda poderia argumentar que era uma área cinzenta, que havia uma zona cinzenta. Mas agora não há mais essa hipótese”, explicou.
Kroes já veio responder às acusações tendo negado ter tido qualquer “função formal ou informal na Uber” antes de maio de 2016, quando o seu período de reflexão se deu por terminado. A ex-comissária argumentou que o seu cargo a obrigava a interagir com várias empresas de tecnologia, motivada apenas por aquilo que acredita “que beneficiaria o interesse público”, acrescentou.
Durante o seu período de reflexão, o governo holandês tê-la-á nomeado como enviada especial para startups, o que envolveu interações com uma “ampla gama de entidades empresariais, governamentais e não governamentais” com o objetivo de promover um “ecossistema favorável aos negócios e acolhedor na Holanda”, explicou.
“Kill Switch”, um interruptor poderoso
Entre 2013 e 2017, a Uber viu-se frequentemente envolvida em muitos confrontos com a polícia, sendo, inclusive, alvo de várias investigações. Em algumas cidades, as autoridades chegaram a fazer download da aplicação para que pudessem descobrir quem eram os motoristas sem licença que viajavam sob o serviço UberPop, e multá-los. Numa tentativa de protegerem as suas informações mais sensíveis, nomeadamente aquelas que poderiam servir como prova de quaisquer práticas ilegais, a empresa desenvolveu, a pedido do seu co-fundador, Kalanick, uma resposta a que deram o nome de “Kill Switch”.
O “Kill Switch” corresponde a um protocolo capaz de bloquear os acessos aos computadores da empresa por parte de qualquer identidade externa à mesma, incluindo a polícia. A Uber acredita que esta é uma resposta essencial da empresa que tem em vista a privacidade de dados que, se comprometidos, poderiam prejudicar o seu crescimento.
Em vários países, e durante o período em análise, foi frequente a polícia invadir os escritórios da Uber, exigindo ter acesso aos seus computadores. As informações divulgadas incluem mensagens de texto trocadas entre vários executivos da empresa e o próprio co-fundador apelando a que as equipas informáticas dos respetivos escritórios acionassem o “kill switch” para que a polícia não pudesse aceder a informação delicada sobre a empresa.
O próprio Kalanick terá ativado o sistema pelo menos uma vez. “Por favor, pressionem o botão de interrupção o mais rápido possível. O acesso deve ser encerrado em AMS (Amesterdão)”, escreveu a partir da sua conta de e-mail depois de tomar conhecimento de que a polícia havia invadido os escritórios da capital holandesa, um escritório especialmente importante por se tratar da sede do continente.
Os executivos da Uber já terão admitido, em conversas entre si, agora divulgadas, terem conhecimento das práticas ilegais da empresa e do porquê de ser necessário um “kill switch”. Comentando sobre as táticas que a empresa estava preparada para implantar para “evitar a fiscalização”, como é o caso do referido protocolo, um executivo terá escrito: “Nós tornámo-nos oficialmente piratas”. Nairi Hourdajian, chefe de comunicações globais da Uber, terá sido ainda mais direto numa mensagem redigida em 2014 na qual discutia o possível fim dos serviços da empresa na Tailândia e Índia: “Às vezes temos problemas porque, bem, somos simplesmente ilegais.”
Outro executivo que os arquivos divulgados sugerem estar envolvido nos protocolos “kill switch” é Pierre-Dimitri Gore-Coty, que dirigia as operações da Uber na Europa Ocidental e que agora faz parte da equipa executiva de 11 pessoas da empresa e se encontra responsável pelo serviço Uber Eats, um serviço de entrega de refeições gerido pela Uber. Gore-Coty lamentou, em comunicado “algumas das táticas usadas para obter uma reforma regulatória para a partilha de boleias nos primeiros dias”. “Eu era jovem e inexperiente e muitas vezes recebia orientações de superiores com ética questionável”, acrescentou num reconhecimento de culpa.
Também há registos dos executivos trocarem mensagens durante uma fiscalização da polícia nas quais aconselham aqueles que estavam no escritório a “fingirem estar confusos” quando as autoridades não conseguirem aceder aos computadores, resultado da ativação do “kill switch”, e darem a entender não saberem o porquê da falha dos mesmos.
Contrariamente a Gore-Coty, a porta-voz de Kalanick terá negado todas as acusações, argumentando que protocolos como o “kill switch” são práticas comerciais comuns que não foram projetadas para obstruir a justiça. Os protocolos, que, segundo o seu comunicado, não excluem dados, foram examinados e aprovados pelo departamento jurídico da Uber, e o ex-CEO da Uber nunca foi acusado de obstrução da justiça ou qualquer delito relacionado.
O kill switch terá sido acionado em outros países como o Canadá, Bélgica, Índia, Roménia e Hungria, e pelo menos três vezes em França.
“A violência garante o sucesso”
Na época de ascensão da Uber, protestos violentos levados a cabo pela indústria de táxis foram ganhando força em várias cidades de todo o mundo, inclusive Portugal. Quando foi alertado para o que estava a acontecer, Kalanick começou por lamentar a violência de que estavam a ser alvo os motoristas da Uber, emitindo comunicados a vários dos países afetados pelo sucedido. O que não foi relatado, na época, pelos órgãos de comunicação, que só agora tiveram acesso a essa informação, foram as ordens dadas pelo co-fundador da empresa aos seus executivos em todo o mundo.
De acordo com os documentos, Kalanick terá incentivado a uma retaliação, pedindo aos motoristas da Uber que organizassem contra-protestos com desobediência civil em massa. Alertado de que isso colocaria os motoristas do Uber em risco de ataques de “criminosos de extrema direita” que se infiltravam nos protestos de táxi “preparados para a luta”, Kalanick terá pedido que a sua equipe avançasse, ainda assim, com as ordens dadas. “Acho que vale a pena”, escreveu. “A violência garante o sucesso. E esse pessoal deve resistir, não? Concordo que o lugar e a hora certos devem ser pensados” acrescentou.
O objetivo de Kalanick parecia ser o de manter uma “narrativa de violência”. No caso de Portugal, por exemplo, e de acordo com o The Washigton Post, que também conduziu uma investigação sobre os documentos, no ano de 2015, quando culminaram os protestos da indústria de táxis em Portugal e a violência escalou, Rui Bento, na altura gestor da Uber em Portugal, terá enviado um e-mail no qual se expressava a vontade de a empresa apresentar a informação dos ataques e dos ferimentos sofridos pelos motoristas da Uber aos meios de comunicação locais.
As mensagens do próprio Rui Bento dão a entender que a ideia por detrás da difusão das informações dos ataques dos taxistas contra motoristas da Uber era “criar uma ligação direta entre as declarações públicas de violência do presidente da ANTRAL (a maior associação de taxistas em Portugal) e estas ações, para degradar a sua imagem pública”.
A informação parece ir ao encontro do que um ex-executivo sénior terá testemunhado ao The Guardian: este tipo de estratégias constituem uma forma de explorar a violência contra os motoristas da Uber e, com isso, “manter a controvérsia acesa”.
Nos Países Baixos, por exemplo, as vítimas dos motoristas foram encorajadas a registar relatórios policiais, depois partilhados com o De Telegraaf, o principal jornal diário holandês. “Mantemos a narrativa da violência durante alguns dias, antes de oferecer a solução”, escreveu um gerente da empresa numa mensagem.
A porta-voz de Kalanick questionou a autenticidade de alguns dos documentos e assegurou que o co-fundador da empresa “nunca sugeriu que a Uber deveria tirar vantagem da violência às custas da segurança do motorista”. Qualquer sugestão de que Kalanick estivesse envolvido em práticas do género são “completamente falsas”, acrescentou. “Uma coisa que sabemos e sentimos fortemente é que ninguém na Uber jamais ficou feliz com a violência contra um motorista”.
Um novo CEO e um futuro diferente
Em 2017, e em consequência das muitas polémicas na quais se viu envolvido, Kalanick viu-se obrigado a afastar-se do cargo de CEO da Uber, substituído por Dara Khosrowshahi, “encarregado de transformar todos os aspectos de como a Uber opera”, anunciou em comunicado Jill Hazelbaker, vice-presidente sénior de relações públicas da Uber, ao The Guardian.
“Não houve escassez de relatórios sobre os erros da Uber antes de 2017. Milhares de histórias foram publicadas, vários livros foram escritos – houve até uma série de TV. Há cinco anos, esses erros culminaram num dos mais infames acertos de contas da história da América corporativa. Essa avaliação levou a uma enorme quantidade de escrutínio público, uma série de ações judiciais de alto nível, várias investigações governamentais e a demissão de vários executivos seniores”, começou por declarar Hazelbaker. “É também exatamente por isso que a Uber contratou um novo CEO, Dara Khosrowshahi”, referiu.
“Dara reescreveu os valores da empresa, renovou a equipa de liderança, tornou a segurança uma prioridade da empresa, implementou a melhor liderança corporativa, contratou um presidente do conselho independente e instalou rigorosos controlos e conformidade necessários para operar como uma empresa pública. Quando dizemos que a Uber é uma empresa diferente hoje, queremos dizer literalmente: 90% dos atuais funcionários da Uber entraram depois de Dara se ter tornado CEO”, assegurou.
O comunicado terminou com um reconhecimento de culpa e uma promessa de melhoria. “Não temos e não daremos desculpas por comportamentos passados que claramente não estão alinhados com os nossos valores atuais”.
O homem por detrás do escândalo
Nesta segunda-feira, a fonte que terá divulgado os mais de 124 mil arquivos confidenciais da empresa decidiu manifestar-se e tornar público o seu nome. Mark MacGann, um lobista da empresa que terá liderado esforços para conquistar governos na Europa, Oriente Médio e África a favor da Uber apresentou-se como o responsável numa entrevista dada ao The Guardian. O lobista de 52 anos reconheceu fazer parte da equipa principal da Uber entre os anos de 2014 e 2016 e admitiu não estar isento de culpa pela conduta que descreveu. “Eu sou parcialmente responsável”, disse. “Fui eu que conversei com os governos (…) fui eu que disse às pessoas que deveriam mudar as regras porque os motoristas beneficiariam e as pessoas teriam muitas oportunidades económicas”.
O cargo ocupado por MacGann na Uber colocou-o no centro das mais importantes e confidenciais decisões tomadas na empresa durante o período em que esta procurava formas de entrar com sucesso nos mercados, violando, para isso, várias leis de licenciamento de táxi. O lobista admitiu supervisionar as tentativas da Uber de persuadir os governos a mudar os regulamentos de táxi e criar um ambiente de negócios mais favorável em mais de 40 países.
De acordo com o seu testemunho, a facilidade com que a Uber penetrou nos mais altos escalões do poder em países como Reino Unido, França e Rússia foi “intoxicante”, mas também “profundamente injusta” e “antidemocrática”. “Lamento ter feito parte de um grupo de pessoas que massageou os factos para ganhar a confiança dos motoristas, dos consumidores e das elites políticas”, disse. “Deveria ter mostrado mais bom senso e ter-me esforçado mais para parar a loucura. É o meu dever (agora) falar e ajudar governos e parlamentares a corrigir alguns erros fundamentais. Moralmente, eu não tinha escolha no assunto”, acrescentou.