As passagens não autorizadas na fronteira dos EUA com o México sempre foram uma dor de cabeça para os presidentes norte-americanos. No entanto, tanto nas administrações de George W. Bush como de Barack Obama, a separação de crianças imigrantes dos seus pais era uma “linha vermelha” que não podia ser transgredida. Até que, em março de 2017, John F. Kelly, Secretário da Segurança Interna de Donald Trump, afirmou que os menores seriam separados dos pais se as famílias entrassem no país ilegalmente, “de forma a impedir mais movimento nesta perigosa ligação.”
Esta política de “tolerância zero” da Administração Trump colheu os seus frutos passado pouco tempo. No verão de 2018, a polémica rebentou quando se descobriu que mais de duas mil crianças tinham sido separadas dos seus pais ao passar a fronteira do Sul dos EUA. Poucos dias depois, Trump assinou uma ordem executiva a reverter esta política, mas já era tarde demais: as imagens de menores enjaulados em centros de detenção de imigrantes tinham percorrido todo o mundo, originado um choque generalizado. Trump tentou culpar os seus antecessores e os adversários do Partido Democrata, mas as antigas palavras de Kelly falavam mais alto.
Durante a sua campanha presidencial, Joe Biden garantiu que iria reverter estas políticas imigratórias de “tolerância zero” de Trump, prometendo não só receber os imigrantes à procura de trabalho ou asilo em terras norte-americanas, como também reunir os menores separados com as suas famílias. Até aos dias de hoje, os advogados do governo dos EUA ainda não conseguiram localizar mais de 600 destas crianças identificadas pelos tribunais. Muitos dos seus pais já foram deportados de volta para os seus países – e é provável que haja muitas outras crianças cujo paradeiro ainda é desconhecido. O trabalho para localizar todas estas famílias separadas no verão de 2018 pode durar vários meses, ou até anos. Esta semana, a Administração Biden deu os primeiros passos para o fazer.
As três (de várias) ordens executivas
Nas suas primeiras duas semanas no gabinete, Biden já assinou mais ordens executivas (diretivas postas em prática unilateralmente pelo Presidente dos EUA, que se aplicam a todos os Estados) que Franklin Roosevelt, o atual detentor do recorde na história do país. No dia 3 de fevereiro, Biden já contava com um total de 28 ordens. “Não estou a fazer novas leis – estou a eliminar más políticas” – foi assim que Joe Biden anunciou, na terça feira, a assinatura de mais três novas ordens executivas, desta vez a visar a reversão as políticas de imigração de Donald Trump.
A primeira destas três ordens tem como objetivo encontrar uma resposta para os migrantes à procurar de asilo nos Estados Unidos. Biden pretende substituir o atual programa de proteção de migrantes – a que Trump se referia como “fiquem no México” – suspenso imediatamente no seu primeiro dia como Presidente. “Queremos implementar um programa de imigração que seja humano, que seja moral, que considere candidaturas para refugiados, para pessoas que vêm para a fronteira deste país para serem tratadas como seres humanos. Mas vai demorar algum tempo, não vai acontecer de um dia para o outro”, avisou a assessora de impressa da Casa Branca, Jen Psaki.
O apoio a imigrantes à procura de um abrigo não é novo na política de Biden. Na quinta-feira, o Presidente anunciou (outra) ordem executiva que versa sobre o aumento das admissões de refugiados nos EUA. O seu objetivo é ajudar 125 mil pessoas que fogem de violência e perseguição por todo o mundo – contrastando com os 15 mil lugares disponibilizados por Trump em 2020.
A segunda ordem exige que as agências façam uma “revisão de cima a baixo de regulações, políticas e recomendações recentes que criaram barreiras ao sistema de imigração ilegal.” Uma das primeiras regulações a ser banida será a Public Charge Rule, implementada por Trump, que negava vistos de residência permanente a imigrantes que usavam – ou era “expectável usarem” – benefícios dos governos estatais ou federais, como selos de comida, vales para arrendamento ou ajuda médica. Por fim, Biden apresentou uma ordem executiva para reunir os pais e filhos imigrantes separados na fronteira – “uma vergonha moral e nacional”, como o próprio a classificou.
O grupo de trabalho para reunir famílias
Alejandro Mayorkas, o novo Secretário da Segurança Interna, será o coordenador desta nova task force para reunir famílias separadas. O advogado cubano-americano tem 61 anos e, em 2008, foi nomeado pelo The National Law Journal como um dos 50 advogados mais influentes na América. Integrou a Administração Obama como secretário adjunto do Departamento de Segurança Nacional entre 2013 e 2016. Agora, é o primeiro imigrante e latino a liderar esta pasta – uma nomeação com particular simbolismo, neste caso.
Os objetivos deste grupo serão identificar as crianças perdidas que ainda não foram localizadas, reuni-las com os seus pais e fazer recomendações ao Governo Federal, de forma a evitar que políticas e outras práticas de separação de famílias se repitam no futuro. Segundo um dos oficiais da Administração Biden, o grupo fará uma avaliação caso a caso, tendo em conta as preferências dos pais e o bem-estar das crianças. Assim, poderão considerar oferecer vistos ou permissões temporárias de imigração aos membros das famílias.
Contudo, apesar destes passos dados pela Administração do novo Presidente dos EUA, há que ter em conta que, a curto prazo, estas ordens executivas se vão limitar a fazer avaliações do Governo. Por outro lado, as ordens não reverterão automaticamente as políticas de Donald Trump – tratam-se de processos de implementação gradual. Para ilustrar este processo previsivelmente demorado, Jen Psaki explicou, na conferência de imprensa da Casa Branca, que esta task force só entregará o seu primeiro relatório a Joe Biden dentro de quatro meses.
“Apesar de estas anúncios serem boas notícias, a crise humanitária mantém-se igual na fronteira”, alertou Alida Garcia, Vice-presidente da FWD, uma associação de assistência à imigração, ao The New York Times, acrescentando que “ainda há uma enorme quantidade de trabalho urgente a ser feito para reparar este sistema de imigração falhado.” Também Lee Gelern, advogada de direitos civis nos EUA, alertou que Joe Biden tinha de se mexer rapidamente. A intenção da nova Administração é boa, dizem os ativistas – mas, até lá, os pais e filhos separados no verão de 2018 continuarão a aguardar para se reunirem com as suas famílias. De um lado ou do outro da fronteira.
O regresso a uma “diplomacia decente”
Desde o lançamento de bases para um salário mínimo nacional de 15 dólares, a anulação da proibição de pessoas transgénero se juntarem ao exército norte-americano ou o aumento de 110 mil vagas para refugiados nos Estados, Joe Biden está a romper com quatro anos de políticas de Donald Trump através da assinatura de dezenas de ordens executivas num curto espaço de dias. Como o jornal Le Monde afirma, trata-se de um regresso a uma “diplomacia decente” – mas, como afirmam os ativistas, o Presidente ainda tem muito trabalho pela frente.