Há menos de uma semana a Total em Moçambique anunciou que tinha garantido 16 mil milhões de dólares de financiamento junto de várias instituições bancárias, para conseguir dar seguimento ao processo de exploração de gás natural no norte de Moçambique, em Cabo Delgado. Desse total, 400 milhões foram garantidos pelo Banco de Fomento Africano.
A informação quase passa despercebida numa altura em que, finalmente, a violência em Cabo Delgado parece ter chegado às agendas mediáticas de forma mais constante. Tal como a VISÃO tem vindo a dar conta, os conflitos naquela província moçambicana não dão sinais de abrandar, numa altura em que cerca de 700 mil pessoas estão a ser severamente afetadas – segundo o bispo de Pemba, D. luiz Lisboa, e uma das vozes mais ativas no grito de socorro da região.
A informação parece contraditória, mas como ilustrava Paulo Aido, jornalista residente em Moçambique, numa entrevista recente ao Ponto SJ (o portal dos Jesuítas em Portugal), “é preciso alimentar a máquina de guerra. Olhamos para o mapa de África e começamos a perceber que a passagem daquilo que foi a ameaça jihadista do Médio Oriente para o continente africano implica a necessidade de financiamento”.
Desde outubro de 2017 que aquela região está sob fogo cerrado, com ataques constantes por parte de grupos chamados insurgentes, que alegadamente pertencem ao Estado Islâmico – embora haja quem duvide da autoria dos ataques. Há quem defenda que podem estar ligados à exploração de diamantes – com fontes ouvidas pela VISÃO a salientar a presença de vários mercenários russos no terreno – e também que não descarte a hipótese de haver interesses económicos ligados à exploração do gás natural por detrás.
A verdade é que são cerca de 250 mil pessoas deslocadas, estima-se que um milhar de mortos e dezenas de organizações humanitárias a abandonarem o seu trabalho no terreno por falta de condições de segurança. Ao longo dos últimos meses foram sendo noticiados também ataques a jornalistas que tentam obter mais informações e ainda a Igrejas e instituições do Estado, o que representou uma clara escalada nas intenções dos atacantes: 2020 foi o primeiro ano em que edifícios públicos e religiosos foram atacados. Num dos países mais pobres do mundo, a ajuda humanitária muitas vezes prestada pelas instituições religiosas é fundamental para a sobrevivência de grande parte da população, razão pela qual geralmente a sua presença é respeitada. No entanto, organizações como a Médicos sem Fronteiras já se viram obrigadas a suspender a ajuda por não conseguirem garantir a segurança dos seus colaboradores.
“Poderemos estar perante aquilo que seria uma ação terrorista oportunista, como aliás, Paulo Rangel afirmou recentemente, porque é uma zona potencialmente rica”, salientou também Paulo Aido. “É uma zona potencialmente rica, mas das zonas mais pobres de Moçambique, que é um dos países mais pobres do mundo. E com isto percebemos a dimensão da tragédia. São pessoas que já não tinham praticamente nada e que perderam tudo. Estão de mãos vazias e dependentes da ajuda internacional”, alertava o jornalista. Na mesma ocasião, Aido pedia responsabilidade e a intervenção do Estado português, numa região onde acredita que o País tem uma “obrigação moral” de se fazer presente.
“Com a História da ligação de Portugal a Moçambique, o regresso de militares portugueses poderá trazer alguns problemas”, avisa, depois de defender que Cabo Delgado precisa urgentemente de intervenção militar, porque não há qualquer intermediário com quem possa ser tentada uma abordagem diplomática. E porque também o tempo parece escassear cada vez mais para aquelas pessoas.
“Mas isso não invalida que Portugal não tenha uma responsabilidade moral, também, para com este povo. É um povo que reza em português, que fala em português. As autoridades portuguesas não podem fingir que não sabem de nada”, instou.
Recorde-se que de acordo com as previsões económicas atualizadas do FMI para a África Subsaariana, divulgadas recentemente, a economia de Moçambique crescerá 1,4% este ano, uma revisão em baixa da estimativa anterior de 2,2%. O crescimento deve acelerar em 2021, para 4,2% (0,5 pontos abaixo da previsão anterior).
Gás de ouro
Quando pensa na economia de Moçambique, o FMI está de olhos postos no projeto da chamada ‘Cidade do Gás’, que deverá nascer em Cabo Delgado até 2030, e cujo investimento direto está estimado em 50 mil milhões de dólares. Acredita-se que 200 mil pessoas irão habitar a Bacia de Afungi, onde se planeia construir um empreendimento quase irreal, se pensando para o contexto daquele país – onde milhares de crianças sofrem de desnutrição severa e a maioria da população não consegue fazer três refeições diárias.
No início deste ano, quando foram revelados os planos, várias bocas abriram-se de espanto. A Renko-AK, responsável pelo plano diretor da cidade do gás, apresentou-o no início do ano: 200 km quadrados onde caberão 1 200 hectares para zonas residenciais, 3 800 hectares dedicados a um espaço industrial, 2 300 hectares de lotes para agricultura e 8 000 hectares de áreas verdes. Haverá 214 hectares destinados a infraestruturas de lazer e turismo – e fala-se em 15 unidades hoteleiras, numa região para a qual se pede, hoje, aos turistas que não viagem.
Fazem parte deste mega-projeto empresas como a Total, a Galp, a Exxon, a Eni e a Anadarko, para além do moçambicano Grupo ENH.
Um ano depois de dois ciclones terem arrasado o centro e o norte de Moçambique – o Idai e o Kenneth, respetivamente – o país continua a enfrentar duras provações, agora com o contributo também da pandemia do novo coronavírus, que obrigou grande parte das ONG no terreno a direcionar a sua ajuda para o combate à pandemia.
E apesar de os apelos irem do Papa Francisco aos media internacionais, passando por alguns eurodeputados, a verdade é que ainda está tudo por fazer em Moçambique.
Entretanto, fontes confirmaram à VISÃO que a Vamoz, uma entidade local com mais de 4000 ativistas a nível nacional e a Makobo, uma plataforma solidária, vão organizar uma primeira coleta de bens para Nampula e Pemba, numa altura em que tudo é necessário.