Desde outubro de 2017 que violentos ataques têm sido perpetrados por grupos armados com alegadas ligações ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) na região norte de Moçambique. O clima de insegurança foi aumentando com o passar do tempo, agravou-se depois de o ciclone Kenneth ter deixado um rasto de destruição em abril do ano passado, pouco tempo antes de o Daesh parecer realmente querer marcar uma posição na zona.
Depois daquilo que parecia uma relativa acalmia, durante uns meses, os primeiros meses de 2020 ficaram marcados por uma série de ataques cadenciados e cada vez mais violentos, contra aldeias inteiras, civis, edifícios do governo, da Igreja Católica e das várias organizações não governamentais que há anos operam no terreno e dão apoio às populações.
Fontes ouvidas pela VISÃO falam de “muitos refugiados na estrada que liga Pemba a Montepuez”, numa altura em que as organizações internacionais apontam para milhares de desalojados e para um nível de insegurança nunca antes registado.
“Sabe-se que existe um sem número de ataques mortais que estarão a ser cometidos por milícias. Uns falam de milícias de um braço do Estado Islâmico, Al-shabab, outros suspeitam que são milícias ao serviço de interesses económicos para desfazerem parcerias na mesma região e reorganizar negócios”, contava à VISÃO uma fonte próxima da situação há uns meses. “Tudo isto tem levado a um êxodo de milhares de pessoas da província de Cabo Delgado para as ilhas do arquipélago das Quirimbas. Situação que está a tornar-se insustentável com os recursos limitados das ilhas”, alertava a mesma fonte na ocasião.
E a verdade é que os dados da Rede dos Sistemas de Aviso Prévio contra a Fome (FEWS NET, na sigla em inglês) continuam a mostrar um agravar da situação no que se refere à falta de acesso a alimentos.
Analistas aprovam investimento na região
Recorde-se que Cabo Delgado é a província onde está a ser feito o maior investimento total em Moçambique, para construção da já chamada ‘Cidade do Gás’. O diretor para o departamento de petróleo e gás da Standard&Poor’s afirmou recentemente que “o investimento de 125 mil milhões de dólares [115 mil milhões de euros] até meados desta década pode levar a um desenvolvimento enorme e sustentável no país” e que apesar dos ataques na região, vê com bons olhos os projetos de exploração de gás natural.
“É uma questão multifacetada, complexa, envolve fundamentalismo religioso, contrabando de heroína, isolamento da província, mas está a ser combatido não só pelo país, mas pela região, de forma consistente e coerente, mas não vai desaparecer de um dia para o outro”, realçou.
Ainda assim, justificou o responsável, “há três aspetos únicos na exploração de gás em Moçambique, que são o facto de o país estar no meio do mapa e ser ideal para exportar para a Ásia e para a Europa, ter uma grande concentração de reservas num raio geográfico pequeno e não estar alinhado com nenhuma jurisdição política, podendo, por isso, vender para todos os países”, salientou Paul Taylor durante uma conferência online organizada pela Africa Oil Week.
A linha do tempo dos ataques
5 outubro de 2017
O dia marcou os primeiros ataques de grupos armados totalmente desconhecidos na província de Cabo Delgado. Os alvos? Três postos da polícia em Mocímboa da Praia. O resultado? Cinco mortos. Em novembro, várias mesquitas foram encerradas por ordem das autoridades moçambicanas, que suspeitavam de ali terem havido reuniões de grupos armados.
Dezembro de 2017
Há novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, também em Mocímboa da Praia. Na primeira semana desse mês terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. A polícia, por seu lado, desmentia o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Janeiro a maio de 2018
Foi o ano horribilis da zona norte de Moçambique, com os ataques violentos a alastrarem-se a vários distritos da província de Cabo Delgado. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. No entanto, logo no dia 27 desse mês novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
2 de junho de 2018
Milhares de pessoas já tinham abandonado as suas casas e aldeias, com o medo a ganhar terreno, quando o canal televisivo STV anunciou que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano.
4 de junho de 2018
Os festejos em torno dos bons resultados das autoridades moçambicanas duraram muito pouco. A 4 e a 7 de junho as aldeias de Naunde e Namaluco foram incendiadas e, na sequência, sete pessoas morreram e outras ficaram feridas. Mais de 150 casas foram destruídas. A 22 de junho, um outro ataque à aldeia de Maganja matou 5 pessoas,
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois… Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas “insatisfações”.
Agosto de 2018
Apesar do desafio lançado por Filipe Nyusi, para que os oficiais promovidos do exército usassem a sua experiência para combater os grupos armados, dois ataques marcariam agosto do ano passado: ao todo morreram 6 pessoas, nos distritos de Palma e Macomia.
Setembro de 2018
Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam “jovens expulsos de casa pelos pais”.
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetia-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e matado três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW Moçambique David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que “depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles”.
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma. Abdul Rhamin Faizal, alegado líder dos insurgentes, natural do Uganda, foi preso pelas forças de segurança moçambicanas.
Fevereiro 2019
Sete homens foram mortos e desmembrados na aldeia de Piqueue, em Cabo Delgado. Na mesma ocasião, quatro mulheres foram raptadas.
Março 2019
Dezoito ataques – desses, 10 tiveram lugar em Macimboa da Praia – aconteceram durante este mês, mostram dados do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários.
Maio 2019
Depois de o ciclone Kenneth ter atingindo o norte de Moçambique, a 25 de abril, os ataques pareciam ter dados tréguas, mas duraram muito pouco. A 3 de maio houve mais ataques armados que destruíram Nacate, no distrito de Macomia, deixando seis mortos. Nas semanas seguintes várias vilas e aldeias foram saqueadas e incendiadas em Macomia. Os relatos de civis que abandonaram as suas casas começaram a aumentar. Pelo menos dois dos ataques tinham como alvos funcionários da Anadarko Petroleum, uma empresa norte-americana que está estabelecida em Cabo Delgado e se dedica à exploração de gás natural.
Junho 2019
No dia 4 de junho, 16 pessoas foram mortas e 12 ficaram feridas durante um ataque em Mocímboa da Praia. O autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) reivindicou este ataque embora haja dúvidas sobre a veracidade desta informação.
Julho 2019
Praticamente um mês depois, a 4 de julho, outro ataque no distrito de Nangade matou sete pessoas, entre elas um polícia. O Daesh reivindicaria a autoria do ataque três dias depois.
Setembro / outubro 2019
A 25 de setembro dois helicópteros MI-17 pertencentes ao governo russo foram entregues em Nacala, depois de os Executivos de Putin e Nyusi terem assinado um acordo de cooperação militar e técnica, ainda em janeiro de 2017.
Em outubro, Moçambique anunciou a detenção de 34 pessoas que viajavam para Cabo Delgado e que se suspeitava irem juntarem-se ao grupo insurgente com ligações ao Daesh a norte do país. Nesse mesmo mês, 27 pessoas (entre eles paramilitares e empreiteiros russos e 20 soldados moçambicanos) foram mortas por rebeldes durante duas emboscadas em Cabo Delgado.
Novembro 2019
Vários soldados da força paramilitar russa Wagner e soldados do governo moçambicano foram mortos num ataque cuja responsabilidade foi reivindicada pelo Daesh. Houve 18 ataques no total do mês, o número mais elevado desde março deste ano. A maior parte aconteceu no distrito de Macomia, que se tornou particularmente inseguro em outubro e novembro.
Janeiro a abril de 2020: houve 101 incidentes registado, relacionados com jihadistas em Cabo Delgado. Este número é três vezes superior ao do ano anterior. Estima-se que apenas nesses primeiros quatro meses tenham morrido cerca de 300 pessoas. O ataque mais mediático aconteceu no final de março, quando as vilas de Mocímboa da Praia e Quissanga foram invadidas, alegadamente pelo auto-proclamado Estado Islâmico, que içou a bandeira num quartel de Forças de Defesa e Segurança.
Maio 2020: A missão dos monges beneditinos da aldeia de Auasse foi atacada e destruída por um grupo de homens armados, que perpetraram ainda ataques contra um hospital que os mesmos monges estavam a construir na região, além de várias casas da aldeia. A informação foi avançada pela Ajuda à Igreja que Sofre e confirmada pelo bispo de Pemba, D. Luiz Fernando Lisboa. “Embora a presença das forças [militares seja mais visível], a situação não está controlada”, sublinhou na altura o prelado, citado pela agência Lusa, que adiantou não haver vítimas neste ataque, o mais significativo contra uma estrutura da Igreja Católica.
Junho 2020
A vila de Macomia sofreu um ataque que durou três dias e que se traduziu no saque de vários estabelecimentos comerciais, levados a cabo por grupos armados que usaram as pessoas como escudos. Houve relatos de mortes de adultos e crianças civis, embora ainda não haja dados oficiais. No ataque, o centro da Médicos Sem Fronteiras em Macomia foi destruído, o que levou a ONG a abandonar a região. A organização já tinha saído de Mocímboa da Praia depois dos ataques de março, e estuda agora uma estratégia para conseguir dar apoio aos milhares de desalojados e famílias em necessidade. No último domingo de maio o ministro da Defesa Nacional, Jaime Neto, anunciou que as Forças de Defesa e Segurança abateram 78 terroristas, incluindo dois responsáveis, oriundos da Tanzania. O responsável revelou ainda que outros 60 insurgentes terão ficado feridos.
*com Lusa