Sabia que a União Europeia tem dois Estados-membros que já não cumprem regras básicas da democracia? E que a Arábia Saudita deixou de aplicar a pena de morte a menores e que também irá acabar com os chicoteamentos – mas não com as decapitações públicas? Ou que o Irão lançou este mês o seu primeiro satélite militar para o espaço? E que os EUA acusaram formalmente Nicolás Maduro, o Presidente da Venezuela, de envolvimento no narcotráfico e oferecem uma recompensa de 15 milhões de dólares pela sua captura? E que Israel tem um novo Governo de “emergência nacional” liderado por Benjamin Netanyahu, para que este não tenha de responder por crimes de corrupção e possa ainda anexar enormes partes da Cisjordânia? Exemplos de temas de atualidade que nos têm passado ao lado.
Moçambique
Terror do Estado falhado. A 10 de abril, a ExxonMobil, uma das maiores petrolíferas do planeta, anunciou discretamente que ia adiar os seus investimentos no Norte de Moçambique. A empresa justificava a decisão com as incertezas globais resultantes da pandemia. Mas havia outro motivo para ter suspendido todas as suas operações na paradisíaca bacia do Rovuma, onde estão concentrados vários projetos para a exploração de gás natural que envolvem também a portuguesa Galp, a italiana ENI e a francesa Total. E a culpa não era dos 17 casos confirmados de coronavírus então registados no país banhado pelo oceano Índico.
Para tudo ficar mais claro, no Domingo de Páscoa, 12, o Papa Francisco aproveitou a sua tradicional mensagem aos fiéis para fazer uma referência direta à “crise humanitária” e aos “constantes ataques violentos” que se registam na província de Cabo Delgado, em Moçambique. Era a forma encontrada pelo chefe da Igreja Católica de responder ao urgente apelo que lhe fizera o bispo de Pemba, Luiz Fernando Lisboa, para a guerra silenciosa a que assiste este território quase do tamanho de Portugal.
Desde 5 de outubro de 2017, já se realizaram ali mais de 350 ataques terroristas, de que resultaram quatro centenas de mortos e 120 mil desalojados. Uma contabilidade trágica se tivermos em conta que esta foi também a região mais fustigada pelos ciclones Idai e Kenneth e agora assistir, como se não bastasse, a um surto de cólera que já contagiou duas mil pessoas e roubou a vida a 38.
O pior de tudo é que a violência e os massacres têm vindo a agravar-se nas últimas semanas. A 8 de abril, na aldeia de Xitaxi, distrito de Muidumbe, um grupo islamista que as populações locais conhecem como “Al-Shabab” – embora não esteja demonstrada a ligação ao seu homónimo da Somália – assassinou 52 homens e adolescentes por estes terem oferecido resistência quando lhes foi dito que tinham de se juntar ao movimento que defende a instauração da lei islâmica. Esta versão da polícia é, contudo, contestada pelo jornalista Armando Nhantumbo, do semanário Savana, que adianta a hipótese de ter havido um número muito superior de vítimas e do ataque ser uma represália por eventuais informações prestadas a forças de segurança do Governo.
Seja como for, a província de Cabo Delgado tornou-se um espaço selvagem onde convivem interesses económicos e crime organizado – pedras preciosas (rubis), narcotráfico (heroína), contrabando de espécies protegidas (marfim) – com as populações a ficarem reféns da violência protagonizada por fanáticos muçulmanos, por soldados da fortuna (mercenários russos e sul-africanos) e pelas tropas ao serviço de Maputo. Um cenário que tem sido analisado por alguns investigadores moçambicanos – Sérgio Chichava, Saíde Habibe ou Salvador Forquilha – e que levou um antigo embaixador no país, o norte-americano Dennis Jett, a considerar que Moçambique é já um “Estado falhado”.
África e Médio Oriente
Praga bíblica. Akinwumi Adesina, presidente do Banco Africano de Desenvolvimento, avisa: “Quem escapar à Covid-19 vai enfrentar o Locust-19.” O também antigo ministro da Agricultura da Nigéria refere-se à pior praga de gafanhotos (locust, em inglês) que o continente negro conhece em sete décadas. Para já, Uganda, Sudão do Sul, Quénia, Etiópia, Eritreia e Somália são os países mais afetados, mas os efeitos sobre as colheitas ameaçam espalhar-se a todo o Sahel, à Península Arábica e ainda ao Paquistão e ao Irão. O Programa Alimentar Mundial da ONU, num relatório apresentado na última semana, considera que os efeitos combinados da Covid-19 com esta calamidade pode provocar “fomes de proporções bíblicas”.
Coreia do Sul
Governar para o povo. Em dezembro, a taxa de popularidade de Moon Jae-in, o Presidente sul-coreano, era de 47 por cento. As sondagens indicavam então que as eleições legislativas agendadas para 15 de abril poderiam afastar do poder o seu Partido Democrático (NPAD), devido à delicada situação económica do país e aos avanços e recuos nas negociações com a vizinha Coreia do Norte. Só que a Covid-19 mudou tudo. Mais de 62% da população aplaude agora o desempenho do chefe de Estado e o bloco liberal liderado pelo NPAD (centro-esquerda) alcançou uma maioria parlamentar sem precedentes desde 1960, com o pormenor do escrutínio deste mês ter a maior taxa de participação desde que o país se tornou uma democracia, em 1987. A forma como Moon Jae-in lidou com a pandemia e as medidas que tomou para a conter logo na fase inicial levaram muitos analistas a afirmarem que ele soube governar em função dos interesses da população e não para satisfazer a classe política e os chaebol – os conglomerados empresariais controlados por famílias poderosas (Hyundai, Samsung, LG, etc). No entender da revista Nikkei, um autêntico caso de estudo e um exemplo para o Japão, Singapura e outros líderes asiáticos.
Polónia e Hungria
O vírus ultranacionalista. Há muito que se fala da deriva autoritária em vários países do Centro e do Leste da Europa, mas a pandemia constituiu uma oportunidade para alguns líderes reforçarem as suas agendas ultranacionalistas. No mesmo dia (30 de março) em que a UE aprovava, em Bruxelas, um pacote financeiro de emergência (37 mil milhões de euros) por causa do novo coronavírus, em Budapeste, o primeiro-ministro húngaro via o parlamento magiar decretar o estado de emergência e outorgar-lhe poderes extraordinários e intemporais. Viktor Orbán pode agora dar-se ao luxo de invocar qualquer “situação de perigo” para restringir liberdades, direitos e garantias, tendo já forçado os partidos políticos a renunciarem a metade do respetivo financiamento público para que esse dinheiro fique ao dispor de um fundo especial contra a Covid-19. Uma medida polémica que visa estrangular economicamente a oposição, tal como a decisão de bloquear quaisquer informações que “criem obstáculos ou ponham em causa” o combate do executivo ao novo coronavírus – também destinada a silenciar vozes críticas.
Com menos alarido, o Governo da Polónia segue um caminho idêntico, sob o apertado controlo de Jaroslaw Kaczynski, líder do partido Lei e Justiça e eminência parda do regime. É ele que insiste em realizar as eleições presidenciais a 10 de maio, apesar dos riscos sanitários, de modo a manter no cargo Andrzej Duda, seu protegido. Tudo indica que vão levar a sua avante graças ao voto por correspondência. Mas o coro de protestos e apelos ao boicote tem vindo a aumentar: “O espectro de duas pandemias pairam sobre a Polónia. Uma envenena os nossos pulmões; a outra, os nossos corações e espíritos. (…) Há forças que querem transformar a nossa república numa ditadura de partido único, de autoridade única e chefe único, em que o individuo não é mais do que uma propriedade do Estado”, escreveu Adam Michnik, figura histórica da oposição e diretor do diário Gazeta Wyborcza.
América Latina-Caraíbas
Caos e protestos inacabados. No último ano, do Equador ao Irão, passando pela Argélia, milhões de pessoas manifestaram-se contra o custo de vida e as desigualdades sociais. Agora, a história poderá repetir-se porque, ao contrário da vox populi nos bairros de lata de Caracas ou do Rio de Janeiro, a Covid-19 não é uma doença exclusiva dos ricos. E uma das regiões do globo onde já se começam a verificar os primeiros sinais de uma nova explosão social é a América do Sul e as Caraíbas, onde mais de metade da população vive da economia informal. O FMI tinha já anunciado que o PIB do subcontinente iria cair 5,2% até ao final do ano e, esta semana, a ONU anunciou que a taxa de pobreza vai crescer 34,7% – o mesmo é dizer que haverá 83 milhões de esfaimados em dezembro.
Em Santiago do Chile, onde se deveria ter realizado um referendo constitucional a 26 de abril – entretanto adiado para outubro – já é bem visível, segundo o El País, o descontentamento com o Presidente Sebastián Piñera e o Governo: “Resistiremos sólo para verte cair”; “morir luchando, pero de hambre ni cagando”. No Brasil, vários grupos profissionais ameaçam multiplicar as greves e até os estafetas de entregas de refeições ao domicílio estão a fazer o mesmo por já nada terem a perder.
A Argentina está à beira de declarar a nona bancarrota da sua História – os credores não aceitam que o Governo de Buenos Aires faça uma reestruturação da dívida e só retome pagamentos em 2023. O Presidente Alberto Fernández ainda goza do estado de graça por ter chegado à Casa Rosada há apenas quatro meses, mas trabalhadores e reformados já falam em novos corralitos. Na Venezuela, apesar das negociações em curso entre Nicolás Maduro e Juan Guaidó, ninguém acredita que a crise social e a miséria desapareçam porque mais de um terço da população não se consegue alimentar em condições. Aliás, o Governo de Caracas até já admite a situação trágica do país e está a negociar um empréstimo de cinco mil milhões de dólares com o FMI.