No Dombe, a menos de 300km da Beira, cerca de 20% da população tem apenas frutos silvestres e raízes para se alimentar, depois de a agricultura ser uma impossibilidade causada pelo Idai e as consequentes inundações. Os terrenos, longe de recuperar, têm exasperado as famílias que continuam sem conseguir retirar da terra aquilo que lhes é mais essencial: a comida. Não há milho, não há praticamente fruta, não há leguminosas.
A cidade, demasiado perto do rio Buzi, foi fortemente atingida pela violência do ciclone, como aconteceu aliás em praticamente todo o distrito de Manica. Esta semana, a Deutsche Welle (DW) Moçambique dava conta de que uma das habitantes da localidade de Muoco tinha pedido ajuda às autoridades uma vez que todas as doações de alimentos das organizações internacionais estão a ser canalizadas para os centros de reassentamento – onde se abrigam ainda quase 90 mil pessoas.
“Há fome nesta região. Tentámos fazer de tudo no mês de junho, mas o pouco que tínhamos conseguido acabou. Agora estamos a morrer de fome. Imploramos ao Governo para que nos apoie”, pediu Genita Jone, citada pela DW.
Sementes que não dão fruto
O porta-voz do Instituto Nacional de Gestão de Catástrofes (INGC) em Manica, Cremildo Quembo, afirmou àquele órgão de comunicação que não tem dados concretos sobre o número de pessoas em situação de fome, e que a instituição apoiou toda população de Dombe na altura do Idai, mas que agora os apoios estão concentrados nas populações reassentadas. “Nós não estamos numa fase de assistência global, estamos numa fase de recuperação face aos efeitos do ciclone. Então há vários critérios de assistência”, afirmou o responsável. As organizações internacionais, no entanto, apontam para que sejam aos milhares as pessoas em situação de emergência alimentar.
O facto de as duas sementeiras deste ano terem falhado devido às condições meteorológicas – que ora incapacitaram os terrenos ora ajudara à proliferação de pragas –, em conjunto com as dificuldades de acesso a mais sementes e alfaias agrícolas e ainda ao início da época das chuvas está a fazer entrar em desespero pessoas que já resistiram ao máximo possível, este ano.
Portugueses menos otimistas
Até entre a comunidade portuguesa presente naquele país o espírito de resistência já foi mais elevado, referiu recentemente à VISÃO uma fonte com ligações à Beira. “Sente-se que as pessoas estão cansadas. Há quem fale em vir-se embora entretanto, ou pelo menos no médio prazo. Pessoas que estão há anos em Moçambique, mas que estão desanimadas”, afirmou a mesma fonte, lembrando que os apoios oficiais são poucos para tudo o que é preciso reerguer.
Informações que vêm contradizer, em parte, o espírito otimista da Embaixadora de Portugal em Moçambique, que numa entrevista recente à VISÃO apontava precisamente a comunidade portuguesa como um exemplo de resistência. “É importante reconhecer que a comunidade portuguesa em Moçambique tem uma dimensão e presença muito ancoradas neste mercado, de longa data, sendo por isso bastante resiliente nos períodos de crise. Permaneceu quando muitos partiram”, referia Maria Amélia Paiva em declarações por email.
Os ciclones Idai e Kenneth, que atingiram aquela antiga colónia portuguesa com apenas seis semanas de intervalo, têm aumentado significativamente as dificuldades das populações atingidas – sobretudo das que vivem mais longe dos centros urbanos. É que se na Beira houve investimento estrangeiro que ajudou à recuperação de edifícios, apoios de instituições como o Banco Mundial que permitiram a recuperação de pontes e acessos e até a recuperação de algum trabalho por parte dos habitantes, longe das cidades o caso começa a tomar proporções assustadoras.´
Carências agravam-se com o tempo
Com milhares de pessoas ainda em campos de reassentamento e com pouco acesso a comida e a água potável, as comunidades tardam em reerguer-se. Centenas de crianças têm abandonado a escola – ora porque saíram das suas localidades, ora porque perderam a família e estão em situação de emergência, ora porque a fome as impede de caminhar até às aulas ou ainda porque as escolas não foram reconstruídas – numa altura em que autoridades temem também pelos elevados níveis de trauma que muitas delas apresentam.
Na fase de emergência, logo após o ciclone Idai (bastante mais violento e mortífero que o Kenneth, no norte do país), muitas Organizações Não Governamentais (ONG) levaram para o terreno equipas de psicólogos que deram um primeiro apoio às populações para as tentar ajudar a evitar episódios de stress pós-traumático. No entanto, atualmente são poucos os que ainda estão em operações no centro de Moçambique, e estão praticamente na totalidade alocados aos 66 campos de reassentamento.
Numa altura em que já passaram mais de nove meses da passagem do ciclone Idai, o cenário parece, em alguns lugares, ainda mais dramático do que antes. E o facto de no final da semana passada algumas zonas da Beira terem voltado a inundar – devido às chuvas trazidas por uma tempestade tropical que nem passou na costa de Moçambique – não está a ajudar ao espírito das populações.
Os especialistas preveem que o país continue a ser fortemente atingido por desastre naturais, uma vez que as alterações climáticas se fazem sentir significativamente naquela zona do globo. Tudo sinais de que é urgente uma reconstrução rápida mas, acima de tudo, melhor do que aquela que até agora tem tido lugar.