A expetativa é de recuperação e de crescimento para as empresas portuguesas presentes naquele país, na certeza do facto de que Portugal e Moçambique são “povos irmãos” que vivem “realidades muito próximas em diversos planos – cultural, económico, desportivo, social…”, refere a embaixadora de Portugal em Moçambique à VISÃO, numa entrevista realizada por email.
A responsável disponibilizou-se a responder a algumas questões colocadas pela VISÃO, na tentativa de perceber como está a Embaixada a acompanhar os trabalhos de recuperação do centro e norte do país, após a passagem dos ciclones Idai e Kenneth; como estão as empresas nacionais a contribuir para estes esforços e de que forma a comunidade portuguesa prossegue num país que enfrenta uma grave crise financeira desde 2016. Maria Amélia Paiva mostra-se otimista com os trabalhos de recuperação, e aplaude os apoios prestados pelas empresas e Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD) portuguesas no terreno.
No mesmo sentido, a diplomata espera que o escândalo das dívidas ocultas passe rapidamente para segundo plano, numa altura em que o Fundo Monetário Internacional já deu sinais de maior otimismo no que diz respeito à economia de Moçambique.
Uma entrevista para ler no seguimento do acompanhamento que a VISÃO tem feito do pós-Idai:
Passaram oito meses desde que o ciclone Idai atingiu a Beira, e sete meses desde que o Kenneth chegou a Cabo Delgado. Há ainda milhares de desalojados e centenas de obras em andamento. Como é que a comunidade portuguesa reagiu aos tempos posteriores aos desastres naturais?
Em Moçambique, como aliás em Portugal e na diáspora, a solidariedade do povo português foi imensa e um sinal claro dos profundos laços que nos ligam a Moçambique. Ao longo dos meses subsequentes e até hoje, a comunidade portuguesa residente em Moçambique desdobrou-se em inúmeras iniciativas de apoio humanitário, mobilizando-se a todos os níveis para fazer chegar a ajuda às províncias afetadas. Movimentos como “SOS Moçambique”, “Unidos pela Beira”, “Moçambique no Coração”, para citar apenas alguns, mobilizaram a angariação, o transporte e a entrega de toneladas de donativos às populações mais atingidas pelos Ciclones. Esse apoio continua ainda hoje a sentir-se e a mostrar resultados.
Ainda há poucos dias, por exemplo, pude acompanhar a inauguração de uma ala do Hospital da Beira que foi recuperada com o apoio de uma ONGD portuguesa [a Health4Moz, que contou ainda com um financiamento de €100 mil da Câmara Municipal de Coimbra]. As contribuições enviadas por empresas e associações portuguesas também continuam a chegar a Moçambique.
Foi ainda possível, com a importante colaboração das Misericórdias de Lisboa e Porto, apoiar financeiramente a reconstrução dos 24 casos reportados ao Consulado-Geral na Beira de habitações de cidadãos nacionais que ficaram danificadas, havendo registo de algumas obras já concluidas e outras em andamento. Mas estes são apenas exemplos de entre muitos que poderia citar, sem esquecer os voluntários e as ONGDs que estão no terreno a apoiar aquelas populações desde o primeiro momento como sejam a Cruz Vermelha, a FEC, a OIKOS, a Fundação Gonçalo da Silveira, a APOIAR, a HELPO, a VIDA, a Cáritas Portugal e que continuam presentes, em muitos casos, e a prestar o seu apoio à Comunidades afetadas.
Ambos os ciclones acabaram por atingir projetos que estavam ligados a empresas portuguesas. Houve alguma alteração na forma como as organizações e os empresários passaram a operar no País? Que dificuldades imediatas foram relatadas à Embaixada? Foram feitos pedidos de ajuda?
Os ciclones tiveram um efeito devastador nas províncias afetadas, em particular em Sofala, e as empresas portuguesas nessas províncias sofreram, inevitavelmente, prejuízos imediatos com a passagem dos ciclones (algumas infraestruturas ficaram destruídas, stocks estragados) e outros mais prolongados devido ao impacto destas catástrofes na atividade económica. Nos meses subsequentes à passagem do Idai, foi feita uma identificação de necessidades, incluindo dos prejuízos sentidos pelas empresas portuguesas, que envolveu a Embaixada, o Consulado Geral na Beira e as instituições portuguesas competentes.
Houve um esforço imediato de acompanhamento muito próximo da situação, tendo em vista apoiar os cidadãos e empresas afetados. O Senhor Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas deslocou-se à Beira poucos dias depois do ciclone Idai, para falar com a comunidade portuguesa e avaliar in loco o impacto dos ciclones, procurando identificar resposta para as diferentes situações que foram sendo identificadas. Outros membros do Governo, como o Senhor Secretário de Estado da Proteção Civil e autoridades e serviços portugueses ligados às Forças Armadas, à Proteção Civil, à emergência médica, ao ambiente e à Cruz Vermelha Portuguesa também atuaram na resposta imediata às calamidades.
Por outro lado, tal como foi anunciado na IV Cimeira bilateral em julho deste ano, o FECOP (Fundo Empresarial da Cooperação Portuguesa) e o Investimoz (Fundo de Apoio ao Investimento em Moçambique) – dois instrumentos da Cooperação Portuguesa para apoiar o setor privado em Moçambique – foram mobilizados para apoiar o setor privado nestas situações de catástrofes naturais. Nos próximos meses, as empresas que continuem com dificuldades de tesouraria, ou que queiram fazer novos investimentos naquelas províncias, poderão solicitar apoio a estes Fundos, que serão implementados em parceria com a banca local.
Deixe-me aproveitar para reconhecer publicamente e elogiar a resiliência das nossas empresas, que mantiveram as suas operações em Moçambique apesar destas catástrofes. Por outro lado, o FMI sublinhou na sua recente missão a Moçambique que a recuperação da atividade económica no país após o ciclone foi mais rápida do que se antecipava: isso é uma boa notícia para as nossas empresas.
Uma das questões que temos estado a acompanhar é o facto de organizações humanitárias estarem a abandonar Moçambique por falta de verbas para continuar os projetos. Teve conhecimento de algum caso?
Com exceção das notícias publicadas a respeito dos Médicos do Mundo, não temos conhecimento de outras ONGD ou organizações que tenham anunciado estar a terminar projetos em Moçambique por falta de meios. Não obstante, todos sabemos como é difícil sustentar os esforços de solidariedade a longo prazo. Em resposta à disponibilidade manifestada, no imediato, pela sociedade civil e o setor privado para contribuir financeiramente para o auxílio às vítimas dos ciclones Idai e Kenneth, e a fim de conciliar as manifestações de apoio com intervenções que vão ao encontro às reais necessidades sentidas no terreno, o Camões, IP constituiu, em julho deste ano, o Fundo de Apoio à Recuperação e Reconstrução de Moçambique, ao qual diversas entidades públicas e privadas portuguesas se associaram permitindo reunir cerca de €1,5 milhões. Com esse financiamento, foi lançado um concurso destinado a financiar projetos de Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD) nos domínios da saúde, educação e segurança alimentar como contributo para a reconstrução pós-Idai e Kenneth. O concurso esteve aberto entre 1 de agosto e 30 de setembro passados e os resultados serão publicitados até ao próximo dia 31 de dezembro, permitindo assim continuar a responder a médio prazo às necessidades de recuperação.
De que forma a Embaixada de Portugal está envolvida no processo de recuperação da região da Beira?
A Embaixada de Portugal e o Centro de Cooperação Português em Moçambique trabalharam, desde a primeira hora, com as autoridades moçambicanas e com as organizações humanitárias na resposta de emergência. O contributo de Portugal em ajuda humanitária correspondeu a um total de cerca de €4 milhões. Portugal enviou 6 aviões para a Beira, sendo um deles integrado na resposta do Mecanismo Europeu de Proteção Civil desencadeado por Moçambique, incluindo equipas de operações de resgate, especialistas em proteção civil, logística, engenheiros (ex. redes de energia) e médicos assim como várias cargas de kits médicos, alimentares e higiénicos e produtos de purificação da água; 10 botes, incluindo equipamentos de resgate; 2 equipas cinotécnicas. Por outro lado, temos trabalhado diretamente com as autoridades moçambicanas, em particular o Gabinete de Reconstrução Pós Ciclone, para apoiar os esforços de reconstrução e de recuperação das áreas afetadas, e temos promovido a necessária articulação com os outros Parceiros de Desenvolvimento e Organizações Internacionais com vista à necessária coordenação da ajuda.
Para a fase da Reconstrução a União Europeia anunciou na Conferência de Doadores, realizada na Beira no final de maio, que disponibiliza um montante de €200 milhões para apoiar a reconstrução. Este é um esforço financeiro da UE e dos seus Estados Membros, ao qual se somam também apoios bilaterais de cada país.
Bilateralmente, e além da ajuda humanitária que referi, financiámos no imediato uma intervenção rápida por parte de ONGDs que continuam presentes no terreno, em particular em Sofala que é uma das áreas prioritárias da Cooperação portuguesa com Moçambique, com quem mantemos um contato e articulação permanente.
Violência em Cabo Delgado
Em Cabo Delgado, a passagem do Kenneth veio acentuar de alguma forma a escalada de violência que já se fazia sentir antes. O que está a comunidade internacional a fazer para mitigar o atual contexto que se vive na região?
Os ataques e incidentes que se têm verificado desde 2017 na província de Cabo Delgado são, naturalmente, acompanhados com grande preocupação, pelo impacto negativo que têm para Moçambique num momento e numa província que conhece uma oportunidade única de desenvolvimento, devido aos projetos de exploração de gás que ali vão ter lugar. Portugal já manifestou a Moçambique a disponibilidade para apoiar na resposta a estes desafios de segurança – que são simultaneamente desafios ao desenvolvimento do país -, na medida do que for entendido adequado pelas autoridades moçambicanas. Esta mesma disponibilidade tem sido manifestada por outros parceiros internacionais.
Há evidências de que grupos ligados ao Estado Islâmico podem estar a ser usados para esconder alguns interesses económicos que estão por detrás da exploração de gás em Cabo Delgado por empresas de diversas nacionalidades. Que conhecimento real tem a Embaixada do que se passa na região?
Há diferentes tentativas de explicação para os ataques em Cabo Delgado. Um dos fatores subjacente, nem sempre referido mas que importa termos presente, é que a pobreza e as dificuldades de desenvolvimento daquela província criam um contexto propício a esta insegurança. Nesse sentido, é importante que conjuguemos esforços com as autoridades moçambicanas para que os projetos de exploração de gás, que em breve se iniciarão, tragam benefícios concretos para o país e resultem em dividendos para aquelas populações.
A violência na região norte do país tem estado consistentemente a aumentar. As visitas turísticas são desaconselhadas?
Os nossos conselhos aos viajantes, que estão publicados no portal das comunidades portuguesas (https://www.portaldascomunidades.mne.pt/pt/conselhos-aos-viajantes/m/mocambique), recomendam que as deslocações àquela província, em particular aos distritos mais afetados pelos ataques, se limitem ao imprescindível, desaconselhando-se a permanência nas áreas mais afetadas.
Dívidas ocultas e crise económica
A senhora embaixadora assumiu o cargo em 2016, e pouco tempo depois o país enfrentou um escândalo relacionado com a dívida oculta que acabou por retirar o financiamento do FMI a Moçambique. Que impactos imediatos essa retirada do financiamento teve no país? E na comunidade portuguesa em particular?
Moçambique foi duramente afetado pelos efeitos do escândalo das “dívidas ocultas”. A quebra de confiança dos investidores e parceiros internacionais resultou numa redução abrupta do financiamento externo ao país, que passou por uma grave crise nos últimos anos. Moçambique sofreu com esta crise, que naturalmente afetou o volume dos investimentos e o comércio bilateral e que levou à saída de alguns expatriados, bem como à restruturação de algumas empresas de capitais portugueses. No entanto, é importante reconhecer que a comunidade portuguesa em Moçambique tem uma dimensão e presença muito ancoradas neste mercado, de longa data, sendo por isso bastante resiliente nos períodos de crise. Permaneceu quando muitos partiram. Verifica-se o mesmo no plano empresarial: apesar das dificuldades, a maioria das empresas portuguesas mantiveram-se no mercado moçambicano, mesmo que tivessem reduzido a sua atividade (em 2017 havia 1849 empresas portuguesas no mercado, comparando com 3028 em 2013, que foi o número máximo atingido na última década). Veja-se, aliás, que um terço das 100 maiores empresas moçambicanas tem capital português, segundo dados da consultora KPMG.
Na última década a chegada de portugueses a Moçambique aumentou significativamente, muito potenciada pela crise económica que foi vivida em Portugal. Como tem sido a integração dos povos? E que planos há para os próximos anos?
Moçambique e Portugal são povos irmãos, vivemos realidades muito próximas em diversos planos – cultural, económico, desportivo, social,… No plano político, temos Cimeiras anuais ao mais alto nível que nos permitem continuar a tecer esses laços de proximidade, aprofundar a cooperação entre os dois países. Nos próximos anos, Moçambique deverá conhecer um período auspicioso do seu desenvolvimento, um período de consolidação da paz e de crescimento económico sustentado. Será uma enorme oportunidade para o povo moçambicano e é nesse sentido que queremos fazer convergir os nossos esforços.