Os dados, referentes à primeira semana de novembro, são do Instituto Nacional de Gestão de Catástrofes, que faz o acompanhamento das populações afetadas pelo ciclone Idai: segundo este organismo, para mais de 700 mil pessoas o abrigo ocupa o segundo lugar nas necessidades mais urgentes – sobretudo agora, que está à porta a época das chuvas – enquanto a comida é a terceira necessidade para 1,036 milhões de pessoas.
Os números vão assim ao encontro daquilo que tem sido monitorizado pelas ONG’s que ainda permanecem no terreno, e cuja atividade a VISÃO tem tentado acompanhar, seja através de contacto direto seja através dos relatórios que vão sendo libertados regularmente.
O acesso à água potável foi desde logo uma necessidade, com as várias organizações humanitárias a tentar organizar a compra de filtros de água e pastilhas desinfetantes para conseguir suprir as necessidades da população da Beira, que logo depois do Idai se viu a braços com um surto de cólera – uma diarreia infeciosa que se transmite pela água contaminada e que pode matar em algumas horas. A água potável, essencial para prevenir infeções e a progressão de doenças continua, no entanto, a ser um bem escasso: mais de dois milhões de pessoas foram afetadas pelo Idai, somente em Moçambique. Isto significa que metade da população que sofreu os efeitos de uma das maiores catástrofes naturais da história daquele país continua sem acesso a necessidades básicas.
Os dados libertados pelo INGC mostram ainda que na larga maioria dos casos, as famílias cujas habitações foram danificadas ou destruídas pelas forças do Idai acabaram por ser elas próprias a recuperar as suas próprias casas, com a ajuda de alguns kits de proteção entregues pelas autoridades e organizações humanitárias que estiveram no terreno. Ainda assim, quase 6 mil famílias não terão recebido qualquer tipo de ajuda. Os restantes agregados familiares recorreram, sobretudo, à recolha de material para conseguir fazer reparações. A compra de material ficou circunscrita a apenas 4% das famílias afetadas.
Recentemente, a irmã Anna Fontana, uma religiosa que vive na Beira há cerca de 13 anos, confirmava à VISÃO que os preços dos materiais de construção tinham permanecido significativamente inflacionados praticamente até novembro. Só agora começaram a chegar alguns barcos com material, e finalmente os preços dão algum sinal de alívio, referia em conversa telefónica desde Moçambique.
No mesmo sentido, é preciso recordar que há ainda cerca de 12 mil pessoas deslocadas, que não sabem quando e se um dia poderão voltar àquilo que foi em tempos a sua casa e o seu pedaço de terra – em 80% das 187 localidades afetadas pelo ciclone a agricultura é o principal meio de subsistência das famílias.
Apoios continuam a ser necessários
Destas, mais de duas mil vivem num campo de desalojados gerido pela missão portuguesa da Médicos do Mundo (MdM) – que deverá ter que abandonar o país já em dezembro face à falta de verba para continuar o projeto. “Alguns já começaram a construir as suas casas, ou pelo menos uma espécie de abrigo para tentarem proteger-se agora do tempo das chuvas”, referia à VISÃO Ana Oliveira, a coordenadora de projetos da MdM.
Para tentar suprir de alguma forma as necessidades [ainda] prementes dos afetados pelo ciclone Idai, as organizações que prestam ajuda humanitária têm tentado desdobrar-se em esforços que não fiquem apenas pela ajuda imediata – relevante e absolutamente necessária na altura. A título de exemplo, a Cáritas Portuguesa continua no terreno, depois de ter conseguido angariar 450 mil euros, para prestar ajuda a mais de 5 mil famílias através de projetos que visam a recuperação das suas machambas (hortas para autossubsistência), fornecimento de água e saneamento e habitação.
Neste sentido, a ONG nacional lançou na semana passada a sua já habitual iniciativa intitulada “10 Milhões de Estrelas – Um Gesto pela Paz”, que este reverterá em parte para as vítimas do Idai – uma vela em forma de estrela vai ser vendida pelo valor de 2 euros. Das receitas que forem angariadas, 35% serão aplicadas nos projetos que estão a ser desenvolvidos junto das populações afetadas pelo ciclone e os restantes 65% serão para responder aos mais pobres que ainda abundam em Portugal.
Em declarações recentes à agência Ecclesia, o presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio Fonseca, explicava que gostaria que na noite de 24 de dezembro, a “vela não seja só para decorar a mesa da consoada” mas se apresente publicamente, como sinal de preocupação com a “justiça e paz”.a
“Pedimos que a partir das 20 horas coloquem a vela num sítio visível da casa onde se possa ver uma pequena luz a brilhar naquela casa, e passando alguém na rua, que esteja informada, perceba que ali há gente que se preocupa com a justiça e a paz, por isso é uma vela solidária”, apela.
Zonas rurais continuam a ser as mais afetadas
Os dados do INGC confirmam que a população afetada se dividia praticamente em partes iguais entre as zonas rurais (48%) e as zonas urbanas. No entanto, enquanto nos ambientes mais citadinos a reconstrução já se faz notar – sobretudo na cidade da Beira e graças ao investimento estrangeiro, nomeadamente vindo da China e dos países de língua árabe – a verdade é que nos campos há ainda um rasto de destruição que não foi possível aplacar. Depois das fortes inundações veio a seca, e com ela a incapacidade de produção hortícola, que é o grande sustento das famílias. O facto de escassearem ainda os utensílios agrícolas, as sementes – que várias associações têm doado para que as famílias voltem a ter o que comer – e o material para poderem voltar a compor algo parecido com um lar, tem agravado as dificuldades dos moçambicanos da região centro do país.
A fome, que aparece como terceira necessidade mais urgente, pode rapidamente passar a primeira para mais famílias, já nos próximos meses, consideram várias organizações internacionais.