O edifício da Igreja de Macuti foi totalmente destruído pela força do furação Idai, que assolou Moçambique há duas semanas. O telhado abateu, restando apenas a estrutura metálica que o suportava e muitos dos seus bancos de madeira ficaram em pedaços. O altar está desfeito.
O empresário português Joaquim Vaz, imigrante em Moçambique há quase dez anos, confessa que, depois de se mudar para a Beira, o primeiro sítio onde se sentiu em casa foi na Igreja de Macuti. “Sejamos ou não crentes, não é possível não sentir nada quando se ouvem os cânticos africanos”, acredita.
Também o escritor moçambicano Mia Couto manifestou publicamente a sua tristeza perante a perda deste património arquitetónico, mas também emocional: “Recebi fotografias da igreja do Macuti que está em ruínas. Aquele edifício está profundamente dentro da minha história. É como se estivesse a escrever a história de um amigo que, entretanto, morresse”.
Este templo católico foi palco de alguns episódios marcantes durante a luta pela libertação do domínio colonial português. E exige uma viagem no tempo.
Ousar contrariar o regime
Já não era possível calar. E, para a primeira homilia do ano de 1972, ainda no rescaldo das celebrações do Dia Mundial da Paz, os padres Joaquim Teles Sampaio e Fernando Mendes escolheram um tema interdito. “A Paz é possível, mas Moçambique está em guerra”, era o mote – a luta pela independência desenrolava-se desde 1964.
Ao contrário do que a censura desejava, os crentes da Paróquia do Coração de Jesus do Macuti, na Beira, já não podiam ignorar que a guerra se desenrolava a escassos quilómetros dali.
Joaquim Teles Sampaio e Fernando Mendes tiveram conhecimento do massacre de Mucumbura, em Tete, no mês de novembro de 1971, através da denúncia do padre espanhol Alberto Font Castellá. As tropas portuguesas tinham metralhado e incendiado as palhotas de dezenas de famílias naquela localidade, matando civis indiscriminadamente.
Ao afrontarem ao Estado Novo, já sob o comando de Marcello Caetano, ficaram sob forte vigilância da polícia política. Tal não os impediu de voltarem a enfrentar a ditadura.
Na semana seguinte, impediram a entrada na igreja de uma bandeira de Portugal, considerada um símbolo da opressão colonial. A bandeira deveria ter sido usada na cerimónia de juramento de um grupo de escuteiros. As retaliações não se fizeram esperar.
A 10 de janeiro, a manchete do jornal Notícias da Beira acusava-os de “crime contra a harmonia racial”. Nessa noite, a casa onde viviam na Beira foi apedrejada, mas ambos estavam num encontro religioso a mais de uma centena de quilómetros da cidade.
Seriam presos no dia 14 de janeiro de 1972. Passaram o primeiro mês na prisão da Beira, até serem transferidos para um estabelecimento prisional em Machava, nos arredores de Maputo, então Lourenço Marques. A detenção de dois padres brancos despertou a atenção da imprensa mundial, mas só seriam julgados, no Tribunal Militar, um ano e três meses depois.
Joaquim Teles Sampaio seria condenado a dois anos de prisão, mas como já tinha cumprido um deles ficou com pena suspensa. Já Fernando Mendes foi sentenciado a sete meses de cadeia, que no momento do julgamento também já tinham sido cumpridos. Foram enviados de regresso para Portugal em março de 1973.
A província de Tete era um território fundamental no xadrez da guerra da independência moçambicana, funcionava como rota de passagem de armamento e de recrutamento de guerrilheiros. A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) tinha decidido alargar a sua ação para sul, abrindo novas frentes em Manica e Sofala. Além disso, era em Tete que a ditadura tinha feito um dos seus maiores investimentos: a construção da gigantesca barragem de Cahora Bassa, que a guerrilha queria travar.
Foram vários os massacres perpetrados na região. Um dos mais sangrentos seria o de Wiriamu, a 16 de dezembro de 1972. A investigação do historiador Mustafah Dhada – natural de Búzi, uma das zonas mais afetadas pelo Idai – contabilizou 385 mortos identificados pelo nome, divididos por cinco aldeias.
A memória, essa, nem o vento nem ninguém a deve levar.
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