Ao sábado à noite, há sempre concerto. Desta vez, é na esplanada do restaurante Casa Congo. O nome remete-nos para a cultura trazida de África para as Américas, nos séculos XVI e XVII, época em que o reino do Congo dominava vários povos do continente que era a base do tráfico de escravos. A voz de um grupo de miúdos faz-se ouvir sobre o rufar dos tambores, deixando ainda espaço para o saxofone, o clarinete, o piano e a guitarra elétrica. A mistura soa um bocadinho a reggae, com samba, jazz e até um pouco de flamenco. “Colón, Colón, venham para Colón…”, entoam como refrão. Segue-se a banda da Escuelita del Ritmo, “que merece a vossa atenção”, há tempos a dar um ar da sua graça nas redondezas.
“Colón, a província à qual pertence a cidade de Portobelo,a já foi a tacinha de ouro da América Latina. Hoje, parece o Haiti”, sussurram-nos, enquanto nos apresentam aquele projeto que é musical mas também de cultura e de arte, e que, gratuitamente, permite a educação para todos, sem distinção de sexo, religião ou condição socioeconómica. “É uma forma de respeitar a identidade da sua cultura e, ao mesmo tempo, de inovar”, afiança o português Rui Dinis, 37 anos, que há nove se aventurou na travessia do Atlântico, para dirigir a Escuelita del Ritmo.
Na assistência, está ainda outro espectador muito especial. Máximo Francisco, 15 anos, aluno de piano do Conservatório Nacional em Lisboa, miúdo que, por coincidência, “herdou” o nome verdadeiro de Compay Segundo, o músico que mais apregoou o som do Caribe pelo mundo. Máximo acaba de chegar para, durante 15 dias, se atrever à estreia do conceito de residência artística com aqueles alunos. No palco, a música segue agora para um cover de Celia Cruz, com todos a cantar em coro: “Ayyyyy, no hay que llorar, que la vida es un carnaval…”
Uma história de amor…
Estamos na baía de Portobelo, pouco mais de 100 quilómetros a norte da Cidade do Panamá, um lugar rico em histórias de galeões e de piratas, cheio da beleza natural típica das Caraíbas. À beira da água transparente e tranquila, cresce uma vegetação frondosa que oferece cocos, mangas e ananases à população. Aves de toda a espécie de cor e bico pululam por estas redondezas – que, já lá vamos, são muito mais do que um par de ruas com casas térreas coloridas, umas viradas para o mar, outras para a montanha.
Esta é uma história que começa no momento em que este lugar se tornou o porto de abrigo das memórias de infância da espanhola Alejandra Fierro Eleta, que tem perto de 60 anos. Foram vários os verões que ela aqui passou na casa da prima Sandra, hoje uma fotógrafa panamiana reconhecida e filha de Carlos Almarán, o autor da música Historia de un Amor, um bolero escrito em 1955, que conheceu as mais diversas versões, da cabo-verdiana Cesária Évora à francesa Dalida, da grega Nana Mouskouri à espanhola Luz Casal. Filha de banqueiro e aficionada por salsa e rádio desde os 12 anos, foi por esse amor à música que Alejandra enfrentou a fúria do pai para seguir o seu sonho. “Não o fará com o meu nome”, vociferou ele. Foi assim que adotou o nome de Gladys Palmera, lançando-se na criação de uma rádio pirata, misturando a alcunha que o irmão lhe dera em pequena com uma referência clara aos trópicos. Hoje, detém um dos maiores acervos de música latina.
Seria com a herança da família, dividida com a irmã, Aurora, que se tornaria mecenas do ritmo caribenho, depois de lançadas as primeiras pedras da Fundação Bahia de Portobelo. O intuito era preservar e divulgar todo aquele património, tanto natural como cultural – e, para tal, serviram-se de duas iniciativas particulares. Uma delas é a Casa Congo.
O nome, foram buscá-lo à tal dança tradicional, a manifestação mais autêntica que ficou do período colonial. Homens e mulheres escravos que, ainda assim, mantinham o sentido da vida e o gosto por celebrá-la. Este é também o nome de uma corrente artística que mistura fé, História e cultura – negra e indígena.
“É pelo meio dos tambores e da dança que o povo negro, o nosso povo, conta o seu legado de luta contra a escravidão, com um canto de agradecimento e de esperança”, há de relatar-nos, mais tarde, Mama Ari, 62 anos, que promove demonstrações de dança para os turistas e que é figura maior de uma comunidade que era matriarcal. E ainda nem sabíamos da existência dos Cimarrons, o grupo de escravos que conseguiu escapar e que se refugiou na montanha, antes de se aliar aos corsários e piratas, alimentando histórias como aquela que se conta sobre Francis Drake, um dos maiores salteadores de sempre, que terá acabado fundeado num caixão de chumbo, junto à ilha que está à entrada da baía e que se chama, claro, Farallon del Drake.
Porém, a Casa Congo é mais do que uma galeria de arte e um restaurante, espaços que permitem apoiar aquela população e obter fundos para outro projeto. “Angariamos aqui cerca de 80 por cento dos recursos da escola”, orgulha-se a ceramista Lourdes Gutierrez, 47 anos, espanhola que veio de Sevilha, do bairro de Triana, onde cresceu a admirar os mapas de Portobelo inscritos numa parede. Afinal, era daquele cais que a Armada espanhola saía para as suas investidas além-mar.
Paraíso protegido
A escola de que Lourdes nos fala, o outro grande projeto que anima as vidas por aqui, é por sinal La Escuelita del Ritmo que, à boa maneira e ao gosto de Alejandra, não quer ser uma academia de música formal, mas um ponto de encontro e de acolhimento para crianças e jovens da comunidade.
“Além de recuperar o espírito dos bailes tradicionais, o nosso objetivo é romper com o ciclo de pobreza, seja com bolsas de estudo seja com apoio económico às famílias em risco”, conta Isabel, a amiga de Alejandra, que ajudou a lançar o projeto – e que aqui ganha relevância, porque foi quem conduziu a entrevista de emprego a Rui Dinis, o português que então nem 30 anos tinha e que estava decidido a deixar o seu emprego numa multinacional, em Barcelona, para embarcar num projeto que mudasse a vida das pessoas.
“Sente-se uma mudança substancial nos nossos adolescentes: mais autoestima, valores, cooperação, iniciativa, respeito pelo meio que os rodeia…”, elenca o diretor da Escuelita que, nove anos depois, gosta de dizer que não se vê a viver ali para sempre, mas cujo brilho nos olhos com que fala do local indicia claramente o contrário.
É ele que nos faz notar que o nome da terra, atribuído por Colombo, é desde sempre escrito à portuguesa, e não em castelhano, e que isso é só mais uma achega para, também aqui, se alimentar a tese de que o conhecido navegador era, afinal, português.
Para completar o cenário, falta ainda dizer que estamos em pleno parque nacional, aquele que foi o primeiro espaço natural protegido do Panamá, espalhado ao longo de 86 hectares, em que 20 por cento são áreas marinhas, cheias de recifes de corais e de pequenas praias, onde as árvores entram mar adentro, ao lado das comunidades indígenas e de Kuna, duas tribos muito ciosas da sua cultura e do seu espaço. Os Emberá souberam, como ninguém, aproveitar os recursos naturais das densas selvas, onde habitam, e estão preparados para receber estrangeiros, partilhando a sua cultura e o seu estilo de vida. Já os Kuna vivem, na sua maioria, na zona conhecida como San Blás, constituída por mais de 300 pequenas ilhas espalhadas ao largo da costa caribenha do Panamá, um paraíso protegido e um dos lugares mais bonitos do mundo, controlando com mão mais dura quem entra e quem sai.
Um lugar com história
Máximo, o adolescente que estuda piano no Conservatório em Lisboa, já está a ensaiar e a entrar no ritmo, ao mesmo tempo que nós fazemos estes pequenos mergulhos na História. Ao fundo das duas ruas da freguesia, o campo de futebol improvisado num baldio também já o chamou por duas ou três vezes, para jogar ao lado dos miúdos da terra, eufóricos: o país foi, pela primeira vez, a um campeonato do mundo de futebol, na Rússia, e isso nota-se. A seguir a este descampado, há ainda um mercado ao ar livre, onde duas mulheres de origem Kuna vendem um pouco da sua arte, seja ela pulseiras de palhinha, colares de contas ou ainda panos bordados cheios de cor e “passarada”. Só depois encontramos alguns lugares icónicos daquela baía.
Um é a Real Alfândega, que nos anos 1600 chegou a ser residência do governador, onde se guardavam as riquezas provenientes do Peru e do Equador, cujo destino era Espanha. Como Portobelo era o principal porto nas Américas, naquele período, ali se ergueu um sistema de defesa dos habitantes da cidade e das embarcações, um dos conjuntos mais impressionantes da arquitetura militar. Nada disso, no entanto, invalidou que, 300 anos depois, boa parte fosse desmantelada e várias daquelas pedras levadas pelos norte-americanos para construírem o famoso canal que leva o nome do país, uma via de navegação revista e aumentada, que liga o Atlântico ao Pacífico. Os andaimes a rodear o edifício revelam que, em tempos, houve a intenção de reabilitá-lo. No entanto, não se avistam quaisquer outros sinais de obra em curso. “Fomos abandonados”, lamenta-se Celso Anton, 48 anos, o guardião do monumento, o mesmo que, em conjunto com os fortes que contornam a baía, a UNESCO declarou Património da Humanidade, em 1980, reconhecendo o seu caráter excecional.
Celso há de ainda contar-nos a razão da cor roxa que contorna a igreja colonial, com quase 500 anos, erguida ali ao lado. É a cor da veneração do Cristo Negro que, todos os outubros, ali chama milhares de peregrinos devotos – e que ficou famoso depois de um navio espanhol ter feito três tentativas para largar o porto e só o ter conseguido fazer depois de atirar para terra uma grande cruz de madeira, que tinha um Cristo assim pintado para evangelizar a população escrava. Além disso, em terra havia uma grave peste, uma epidemia de varíola que acabou por desaparecer pouco depois de o El Naza – como a imagem é carinhosamente conhecida – ter ficado para trás.
Máximo conhece Mary
Máximo Francisco estuda piano, desde os 10 anos, e faz questão de dizer que, agora que vai para o Secundário, quer dedicar-se exclusivamente à composição. Lembra-se bem de ser garoto e de ter criado com um amigo um canal no YouTube. Eram os M&M – e é quando reparamos que a sua cara não nos é completamente estranha: afinal, quando era mais novo, ele já dera um ar da sua graça no programa Chefs’ Academy Kids, ao qual se seguiu a estreia no grande ecrã (em A Breve História da Princesa X e ainda no À Noite Fazem-se Amigos, ambos de 2016). Nada, ainda assim, que se compare a uma residência artística num local daqueles, desafio que o pai, Pedro Nuno Neto, 45 anos, consultor económico no México, lhe lançou. Em breve, há de estar numa apresentação pública da banda da Escuelita, num hotel na vizinha Colón, e, desta vez, já não será na plateia.
Nos primeiros dias desta aventura, o recém-chegado conta com a ajuda de Manuel, 19 anos, que se inscreveu no projeto de música mal tinha feito oito. Manuel toca saxofone e quer ser advogado ou professor – “Ou político”, diz, a rir-se, sentado na esplanada que se ergue entre o mercado e a Aduana, o nome caribenho da antiga alfândega. Máximo está umas casinhas mais à frente, na segunda aula de percussão. Heraldo, 40 anos, que está a ensinar-lhe os truques dos tambores, não se faz rogado em tecer todos os elogios ao projeto. “A música é uma linguagem universal, não tem fronteiras. Mudou-nos a vida.”
Segue-se o primeiro ensaio de grupo, agora acompanhado por Abdiel Valdés, 40 anos. “Vá, mais uma vez…”, incentiva. Ao início da tarde, a maioria da miudagem entra pela escola adentro. Máximo começa por escrever, no quadro branco, os acordes de uma música da sua autoria. Com a ajuda do clarinete, do trombone, da guitarra elétrica e afins, cada um vai acrescentando um beat à composição – “para lhe dar um bocadinho de açúcar e de salero”, ri-se Mary Ann Ortiz, 20 anos, aluna da Escuelita desde os 12 e que, no ano passado, foi a estrela da companhia no Festival de Jazz do Panamá, ao ganhar o concurso que oferecia uma bolsa de estudo de seis semanas na Escola de Música de Berklee, em Boston, nos EUA. A população juntou-se num crowdfunding para ajudá-la a pagar as despesas de viagem e de alojamento, momento também apadrinhado pela embaixadora de Portugal no Panamá, Ana Pessoa e Costa, 57 anos, então presidente da Associação Diplomática, e uma fã aguerrida do projeto. “A Mary é incrível. Eles são incríveis.”
O mundo a seus pés?
Além da mulher do primeiro embaixador português naquele país, que até então tinha apenas um consulado, multiplicam-se aqueles que já se renderam ao projeto que cresce em Portobelo. É o caso de Janelle Davidson, atriz e produtora de espetáculos panamiana que, desde 2016, é a mulher que está à frente do Instituto Nacional de Cultura. Naquela manhã, atravessara o país para visitar a Escuelita e não conseguiu esconder o seu espanto quando se cruzou com Renée Craft, uma norte-americana que dá aulas no departamento da diáspora de África, na Universidade da Carolina do Norte, e que há 17 anos ruma àquele lugar na América Central.
Estamos novamente na Casa Congo, onde Renée recorda que descobriu que havia um paraíso assim na Terra à conta de uma apresentação que um professor da vizinha Colón fez na sua universidade. “Falou-nos das rotas do tráfico de escravos, e eu fiquei fascinada. Podiam ser os meus antepassados na América”, relata ela, que começou por fazer uma tese chamada Quando o diabo toca: a tradição dos Congos – política negra no Panamá do século XX e que hoje dirige a plataforma Portobelo Digital.org, na qual partilha o sentido de comunidade local: “Até o meu filho de sete anos já diz que Portobelo é dele.”
E porque não haveria de ser? Porque aqui todos gostam de apregoar alto e bom som que o projeto, que cruza as ruas, nasceu para todos, sobretudo para os mais novos se inspirarem em algo que não fosse um caminho cheio de equívocos, crentes nessa aventura que é aprender – e que sem aprendizagem não há aventura. Jairo, 24 anos, o professor de pasa pasa, dança que mistura o congo com o reggae jamaicano, e que também ensinou uns passos a Máximo, é só mais um a fazer questão de nos confirmar, orgulhoso, como as suas aulas também ajudaram a tirar miúdos da rua.
Será esse o espírito que Rui Dinis, diretor da Escuelita, conta levar na bagagem quando, em Lisboa, apresentar o projeto à Embaixada do Panamá em Portugal. Não há razões para não o fazer de peito cheio: conhecida em todo o país, La Escuelita del Ritmo também já tem o selo de aprovação de Harold Robinson, o coordenador residente das Nações Unidas no Panamá. “O nosso sonho é não só continuar a receber alunos para residências artísticas como levar outros daqui, para lhes mostrar o mundo.” Afinal, as utopias também se fazem de música e de salero. Ao ritmo do Caribe.
* A VISÃO viajou a convite da Fundação Bahia de Portobelo/La Escuelita del Ritmo