Na escola, tínhamos todos os dias uma hora de almoço. Uma vez que a minha mãe não trabalhava e o nosso apartamento ficava perto, eu costumava ir a pé até casa, com quatro ou cinco outras crianças a reboque, todas nós a falarmos ininterruptamente, prontas para nos estendermos no chão da cozinha a jogar o jogo dos saquinhos e a assistir a um episódio da telenovela All My Children, enquanto a minha mãe distribuía sanduíches. Isso, para mim, foi o início de um hábito que tenho sustentado ao longo da vida: ter um grupo de amigas íntimas bem-dispostas, porto de abrigo de sabedoria feminina. No meu grupo da hora de almoço, dissecávamos o que quer que tivesse ocorrido nessa manhã na escola, qualquer animosidade que tivéssemos com os professores, os trabalhos de casa que considerássemos inúteis. As nossas opiniões eram em grande medida formuladas ao estilo de um comité. Idolatrávamos os The Jackson 5 e não sabíamos ao certo em que pé estávamos quanto aos Osmonds. Dera-se o Watergate, mas nenhuma de nós o compreendera. Parecia-nos um monte de velhos a falarem ao microfone em Washington, DC, que para nós era apenas uma cidade longínqua com muitos edifícios brancos e homens brancos.
A minha mãe, por sua vez, não se importava nada de nos servir o almoço. Isso dava-lhe acesso ao nosso mundo. Enquanto eu e as minhas amigas comíamos e mexericávamos, era frequente ela ficar por ali em silêncio, ocupada com as lides domésticas, sem esconder o facto de estar a ouvir cada palavra. Assim como assim, na minha família, connosco os quatro encafuados em menos de 85 metros quadrados, nunca tínhamos gozado de privacidade. A privacidade só era importante de vez em quando. O Craig, que desenvolvera um súbito interesse por raparigas, começara a falar ao telefone à porta fechada, na casa de banho, o cordão do telefone completamente esticado ao longo do corredor desde a base, na parede da cozinha.
No panorama das escolas de Chicago, a Bryn Mawr podia ser considerada algures entre uma má escola e uma boa escola. A triagem racial e económica no South Shore continuou durante os anos 70, o que significa que a população estudantil era mais negra e pobre a cada ano que passava. Houve, por uns tempos, um movimento de integração em toda a cidade que previa o transporte escolar das crianças até novos estabelecimentos de ensino, mas os pais dos alunos da Bryn Mawr haviam lutado contra a iniciativa e conseguido, argumentando que os fundos seriam mais bem aplicados em melhorias à própria escola. Como criança que era, não tinha uma verdadeira noção sobre se as instalações estavam velhas ou se importava para alguma coisa que quase já não houvesse alunos brancos. A escola compreendia da pré-primária ao oitavo ano, pelo que, chegada aos últimos anos, já conhecia todos os interruptores, todos os quadros de ardósia e todas as fendas no corredor. Conhecia quase todos os professores e a maioria dos alunos. Para mim, a Bryn Mawr era praticamente uma extensão da minha casa.
Estava eu a começar o sétimo ano quando o Chicago Defender, semanário que gozava de popularidade entre os leitores afro-americanos, publicou um incendiário artigo de opinião, onde se afirmava que a Bryn Mawr tinha passado, em poucos anos, de uma das melhores escolas públicas da cidade para uma “favela decrépita” governada por uma “mentalidade de gueto”. O diretor da nossa escola, o doutor Lavizzo, reagiu logo numa carta ao editor, defendendo os pais e os alunos da comunidade e considerando o artigo “uma mentira revoltante, que só parecia querer instigar sentimentos de fracasso e de abandono”.
O doutor Lavizzo era um homem gordo e bem-disposto, com um penteado afro que consistia em dois tufos de cabelo de cada lado da careca; passava a maior parte do tempo enfiado num escritório perto da entrada do edifício da escola. A sua carta mostra que compreendia exatamente aquilo com que se debatia. O fracasso é um sentimento muito antes de se tornar um resultado real. É a vulnerabilidade que se cruza com a insegurança e depois é exacerbada, muitas vezes deliberadamente, pelo medo. Aqueles “sentimentos de fracasso” que ele mencionava já estavam por toda a parte no meu bairro: eram pais que não conseguiam melhorar a sua situação financeira, filhos que começavam a suspeitar de que as suas vidas não iriam ser diferentes, famílias que viam os seus vizinhos com mais posses partirem para os subúrbios ou transferirem os seus filhos para as escolas católicas. Entretanto, havia agentes imobiliários predadores a rondarem o South Shore, sussurrando aos ouvidos dos proprietários que deviam vender as suas casas antes que fosse tarde demais, que eles os ajudariam a sair dali enquanto ainda podem. O que se podia ler nas entrelinhas era que o fracasso estava a caminho, que era inevitável, que até já tinha como que chegado. Podiam ficar presos no meio dos escombros ou podiam escapar-lhes. Os agentes imobiliários usavam o termo que toda a gente temia acima de tudo – “gueto” –, atirando-o para o ar como um fósforo aceso.
A minha mãe não caía nesta conversa. Já vivia no South Shore havia dez anos e acabaria por lá permanecer mais quarenta. Não se deixava apanhar na rede de pavor que andava a ser tecida, mas, por outro lado, também parecia igualmente imune a qualquer tipo de idealismo utópico. Era, pura e simplesmente, uma pessoa realista, controlando o que podia controlar.
Programa para “dotados”
Tornou-se um dos membros mais ativos da Associação de Pais da Bryn Mawr, ajudando a angariar fundos para novos equipamentos para as salas de aula, organizando jantares em homenagem aos professores e exercendo pressão para se criar uma sala de aula especial, onde se atentasse às necessidades dos alunos com melhor desempenho, independentemente dos respetivos anos de escolaridade. Esta última ideia partira do doutor Lavizzo, que havia obtido o seu doutoramento em Educação em horário pós-laboral e estudara uma nova tendência de agrupar os alunos de acordo com as suas aptidões, em vez da idade – basicamente, pondo os melhores alunos todos juntos para que pudessem aprender a um ritmo mais acelerado.
Era uma ideia controversa, criticada como sendo antidemocrática, como todos os programas para “dotados” são sempre. Mas estava também a tornar-se um movimento com cada vez mais adeptos por todo o país, e, durante os meus últimos anos na Bryn Mawr, fui uma das beneficiárias. Juntei-me a um grupo de cerca de 20 alunos de diferentes anos, que ficava numa sala de aula completamente independente do resto da escola, com horários próprios para intervalos, almoço e aulas de Música e de Educação Física. Beneficiávamos de oportunidades especiais, nomeadamente de visitas semanais a uma escola comunitária local, para frequentar uma oficina de escrita avançada ou dissecar um rato no laboratório. Na nossa sala trabalhávamos autonomamente, definindo os nossos objetivos pessoais e avançando ao ritmo mais adequado para nós.
Foram-nos atribuídos professores dedicados, primeiro o senhor Martinez e depois o senhor Bennett, ambos afro-americanos gentis e bem-humorados, ambos profundamente interessados no que os alunos tinham para dizer. Existia uma clara noção de que a escola investira em nós, e acho que isso fez-nos todos esforçarmo-nos mais e sentirmo-nos melhor connosco próprios. O ambiente de aprendizagem autónoma apenas serviu para alimentar o meu lado competitivo. Eu devorava a matéria, sempre a comparar em segredo o ponto em que estava em relação aos meus colegas, à medida que íamos progredindo da divisão longa para a álgebra básica e do escrever só um parágrafo para o ter de entregar todo um trabalho escrito. Para mim, era como se fosse um jogo. E, como acontece em qualquer jogo e com praticamente qualquer criança, sentia-me mais feliz quando estava a ganhar.
Contava à minha mãe tudo o que se passava na escola. Ao ponto da situação que lhe fazia à hora de almoço, seguia-se uma atualização que partilhava à pressa mal entrava em casa à tarde, deixando cair a mochila no chão e partindo em busca de qualquer coisa para matar a fome. Tenho noção de que não sei exatamente o que a minha mãe fazia durante as horas que passávamos na escola, essencialmente porque, à boa maneira egocêntrica habitual em todas as crianças, nunca perguntei. Não sei em que ela pensava, o que achava de ter um papel tradicional como doméstica, em vez de trabalhar fora de casa. Sabia apenas que, quando chegasse a casa, haveria comida no frigorífico, e não apenas para mim, mas para as minhas amigas também. Sabia que, quando a minha turma tinha uma visita de estudo, a minha mãe voluntariava-se como acompanhante quase sempre, apresentando-se num vestido bonito e a usar batom de um tom escuro, para ir connosco no autocarro até à escola comunitária local ou ao jardim zoológico.
Em casa, vivíamos com o dinheiro contado, mas não costumávamos discutir que contas eram essas. A minha mãe encontrava formas de compensar. Ela é que arranjava as suas unhas e pintava o seu cabelo (uma vez, pintou-o acidentalmente de verde), e só tinha roupas novas quando o meu pai lhas comprava como presente de aniversário. Nunca seria rica, mas teria sempre umas mãos de fada. Quando éramos miúdos, ela como que por magia transformava meias velhas em fantoches que eram tal qual os Marretas. Fazia naperões em croché para pôr em cima das mesas. Fazia muitas das minhas roupas, pelo menos até eu andar no segundo ciclo, quando subitamente ter o cisne do logótipo da Gloria Vanderbilt no bolso da frente das calças de ganga era a coisa mais importante do mundo, e insisti que ela deixasse de costurar para mim.
Uma lareira a fingir
De vez em quando, alterava a decoração da nossa sala, com uma nova forra para o sofá ou trocando as fotografias e as estampas emolduradas que tínhamos penduradas nas paredes. Quando chegava o bom tempo, procedia ao seu ritual de limpezas da primavera, atacando em todas as frentes — aspirava a mobília, lavava os cortinados e removia das janelas todas as proteções contra tempestade, para poder lavar os vidros e esfregar os parapeitos, antes de trocar pelas janelas de rede, que deixavam entrar o ar primaveril no nosso minúsculo e abafado apartamento. Depois, era frequente vê-la descer até à casa da Robbie e do Terry, sobretudo à medida que eles foram ficando mais idosos e menos capazes, para a limpar também. É por causa da minha mãe que ainda hoje me basta sentir o cheiro dos detergentes Pine-Sol para me sentir automaticamente de bem com a vida.
Na época natalícia, a minha mãe tornava-se particularmente criativa. Houve um ano em que descobriu como tapar o nosso radiador quadrangular metálico com um cartão prensado que tinha uma estampagem de tijolos, agrafando todas as partes, para que tivéssemos uma chaminé falsa de alto a baixo e uma lareira a fingir, a que não faltava uma prateleira. Recrutou então o meu pai – o nosso artista residente – para pintar labaredas cor de laranja em pedaços de papel de arroz muito fino, as quais, com uma luz a incidir por trás, quase pareciam verdadeiras. Na véspera de Ano Novo, por uma questão de tradição, comprava um cabaz especial só de entradas, daqueles que incluíam vários queijos em bloco, uma lata de ostras fumadas e diferentes tipos de enchidos. Convidava a Francesca, a irmã do meu pai, para jogar jogos de tabuleiro connosco. Encomendávamos uma pizza para o jantar e depois íamos petiscando elegantemente ao longo do serão, com a minha mãe a fazer circular travessas com folhados de salsicha, camarão salteado e um queijo-creme especial derretido sobre bolachas de água e sal. Quando chegava a meia-noite, bebíamos todos um pouco de champanhe.
A minha mãe tinha o tipo de mentalidade parental que hoje reconheço como brilhante e quase impossível de imitar: uma espécie de neutralidade zen imperturbável. Via algumas mães de amigas minhas viverem os altos e baixos das vidas das filhas como se fossem os seus e conhecia muitas outras crianças cujos pais se sentiam demasiado assoberbados pelos seus próprios desafios pessoais para estarem propriamente presentes. A minha mãe era pura e simplesmente equilibrada. Não emitia juízos de valor imediatos e não era de se intrometer. O que fazia era estar sempre atenta aos nossos humores e servir de testemunha benevolente de quaisquer esforços ou triunfos que o dia acarretava. Quando tudo ia mal, dava-nos a sua compaixão, mas em pequenas doses. Quando nos saíamos muito bem com alguma coisa, elogiava-nos apenas o suficiente para que soubéssemos que estava feliz connosco, e nunca a ponto de isso se tornar a motivação por detrás do que tínhamos feito.
Pouco sentimental
Os seus conselhos, quando os oferecia, tendiam a ser pragmáticos e pouco sentimentais. “Não tens de gostar da tua professora”, disse-me certo dia em que cheguei a casa e me pus a fazer queixas. “Mas aquela mulher tem na cabeça dela a matemática que tu precisas de ter na tua. Concentra-te nisso e ignora tudo o resto.”
Ela amava-nos, a mim e ao Craig, consistentemente, mas não andava sempre em cima de nós. O seu objetivo era que nos fizéssemos à vida. “Não estou a criar bebés, estou a criar adultos”, dizia-nos. Tanto ela como o meu pai davam diretrizes em vez de regras. Isso significa que, na nossa adolescência, não tínhamos hora de recolher obrigatório. Em vez disso, perguntar-nos-iam “A que horas prevês chegares a casa?”, e depois confiavam que cumpriríamos a nossa palavra.
O Craig conta a história de uma rapariga de quem ele gostava, quando andava no oitavo ano, que um dia lhe fez uma espécie de proposta indecente, convidando-o a ir a casa dela depois de deixar bem claro que os seus pais não estariam e que ninguém os iria perturbar.
Para o meu irmão, fora uma verdadeira agonia decidir se ia ou não – tão tentado se sentia pela oportunidade, ao mesmo tempo que sabia ser traiçoeiro e desonroso da sua parte, o tipo de comportamento que os meus pais nunca aprovariam. No entanto, isso não o impediu de começar por contar à minha mãe uma meia-verdade, mencionando a rapariga, mas dizendo que se iam encontrar num parque.
Cheio de remorsos antes sequer de o fazer, cheio de remorsos por ter sequer pensado em fazê-lo, o Craig confessou por fim todo aquele plano de ficarem sozinhos em casa, à espera, ou talvez apenas com a esperança, de que a minha mãe perdesse as estribeiras e o proibisse de ir.
Mas ela não o fez. Não o faria. Não era assim que funcionava. Ouviu-o, mas não o absolveu da escolha que ele tinha diante de si. Pelo contrário, deixou-o entregue à sua agonia com um encolher de ombros displicente. “Faz o que achares melhor”, disse-lhe, antes de voltar a dar atenção à loiça por lavar ou ao monte de roupa lavada por dobrar.
Foi mais um pequeno empurrão para o mundo lá fora. Tenho a certeza de que, por dentro, a minha mãe já sabia que ele faria a escolha certa. Percebo hoje que cada jogada que fazia assentava numa confiança serena de nos ter criado para sermos adultos. As nossas decisões cabiam-nos a nós. Tratava-se da nossa vida, não da dela, e assim seria sempre.