Vicenç diz que deixou de ser espanhol a partir de 28 de junho de 2010. Até essa altura, este funcionário de uma câmara municipal da área de Barcelona era nacionalista, mas não independentista. Acreditava que o seu país, a Catalunha, a que ele nunca chamaria região, devia continuar a fazer parte de Espanha, mas de uma Espanha que reconhecesse a existência da nação catalã, melhorasse o financiamento do seu governo autónomo, investisse mais nas suas infraestruturas, fizesse uma blindagem das suas competências e assegurasse para a língua catalã um estatuto jurídico igual ao do castelhano. Nesse mesmo dia, enquanto o Sul da Europa tremia com o primeiro resgate grego – José Sócrates afirmava que o “mundo tinha mudado” e os governos socialistas de Espanha e de Portugal começaram a cortar a eito nas despesas –, Vicenç e muitos outros milhares de cidadãos da Catalunha não só sentiram que os seus sonhos eram impossíveis mas também se sentiram humilhados. Emocionalmente começaram a ir embora, para fora de Espanha. Assim se iniciou o processo, “el procès” em catalão, que levou à maior crise territorial e, se calhar, política desde que em 1977 nuestros hermanos recuperaram a democracia.
“Não precisei que nenhum Tribunal Constitucional me dissesse que a Catalunha tem de ser independente. Já sabia muito bem que em Espanha não havia solução para nós e que podemos ser um país normal, como qualquer outro, que seja dono do seu destino, sem que a nossa língua e a nossa economia estejam em perigo por culpa de um Estado que não nos respeita”, diz Mireia, companheira de Vicenç, em relação ao que se passou nessa inesquecível data de 2010. Nesse dia, o Tribunal Constitucional publicou a sentença sobre o recurso interposto pelo Partido Popular, então na oposição espanhola, contra o novo Estatuto de Autonomia da Catalunha. O acórdão suprimia partes fundamentais do texto que tinha sido aprovado em referendo pelos catalães quatro anos antes, a 16 de junho de 2006, com 72,4% de votos a favor e uma baixa participação de 49,6% do corpo eleitoral. Era uma versão já cortada da que tinha saído de Barcelona para Madrid no dia 30 de setembro de 2005, com o apoio de 120 dos 135 deputados do parlamento catalão.
“No próximo domingo iremos votar ‘sim’ à independência e se calhar acabaremos todos na prisão, mas votaremos”, anunciam, sorridentes, Mireia e Vicenç sobre a consulta da secessão convocada pelo governo catalão (Generalitat), presidido por Carles Puigdemont. Uma consulta que o Tribunal Constitucional declarou suspensa, embora essa decisão não tenha parado os preparativos do referendo, ainda que estejam enfraquecidos pelas operações policiais. Já muito antes da sentença do Estatuto, Mireia, jornalista de profissão, fazia parte de, no máximo, 20% da população que se declarava independentista. Vicenç entrou nesse clube a partir de 2010. A secessão superou, em alguns momentos, 50% nas sondagens semestrais que faz o governo catalão, embora na última só 41% estivesse a favor da separação e 49% contra. Os dois sentem que “Espanha não quer os catalães e os menospreza”.
Os novos “indepe”
Esse fator emocional foi o que pesou na conversão em “indepe”, como se diz na Catalunha, de Pere, um até então eleitor do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). “Foi no casamento da minha irmã em Navarra. Na minha mesa estava um deputado regional do PP que, com toda a naturalidade e a alegria da festa e do vinho, me confessou que atacavam os catalães porque no resto de Espanha lhes dava votos, enquanto não se importavam com o que lhes acontecesse na Catalunha, onde sempre foram insignificantes. Fiquei tão zangado que, sem ter sido nunca nacionalista, acho que foi quando comecei a me fazer independentista”, relata Pere, especialista em relações internacionais.
“A maior parte dos que desejam sair de Espanha é, digamos, de aluvião, somou-se nesta década”, explica à VISÃO o gestor de uma das principais empresas da Catalunha, que preferiu o anonimato. Nesse segmento “há muita gente recuperável, que poderia deixar de querer a secessão, mas para isso o Governo tem de fazer o que não faz, oferecer alguma coisa, uma reforma da estrutura territorial de Espanha”. Como outras muitas vozes da Catalunha, nos últimos anos este gestor tem tentado transmitir em Madrid a ideia de que era necessário agir o mais rápido possível. Porém, como todos os demais que o tentaram, fracassou.
No passado dia 21, numa nada habitual comunicação ao país na hora do telejornal da noite, após a intervenção da Guarda Civil para deter uma parte dos organizadores do referendo, o presidente do Governo espanhol e líder do PP, Mariano Rajoy, afirmou que fez tudo para resolver os “problemas da Generalitat”. Sem reconhecer a existência de um verdadeiro problema catalão, assegurou que no domingo não se vai poder votar sobre a secessão.
Os argumentos unionistas
No dia seguinte, após as manifestações de protesto nas ruas, o jornalista Enric Juliana escrevia no La Vanguardia que “a Catalunha pode estar a entrar no ciclo histórico da sua separação de Espanha perante o insensato aplauso dos comentadores madrilenos”. Juliana punha os holofotes sobre os media da capital espanhola, sobretudo de direita, que se opuseram primeiro ao Estatuto e depois negaram a existência de um conflito real, enquanto não deixavam de alimentá-lo ao provocar a reação dos independentistas, que por sua vez dão todos os dias munição a esses jornalistas nostálgicos do império espanhol, num círculo vicioso infernal.
“Não é certo que tudo tenha começado com a sentença do Estatuto. Vem de muito mais atrás, dos 40 anos que o Estado espanhol leva desaparecido da Catalunha, deixando que os nacionalistas fizessem o que queriam, com os corruptos governos de Jordi Pujol, que lavaram o cérebro à gente nas escolas e através dos media públicos e privados subvencionados”, opina Esperanza, diretora de uma média empresa. Para ela, o problema mais recente vem do que o então líder do PSOE e depois presidente do Governo, José Luis Rodríguez Zapatero, prometeu num comício em Barcelona em 2003: que os socialistas apoiariam o novo Estatuto, independentemente do seu conteúdo. Desta maneira chegou a Madrid um texto inconstitucional, que, afirma, ainda que fosse alterado, nem o PP podia deixar de recorrer para o Constitucional nem este o podia deixar passar. “Assim se chegou ao ponto em que a sentença se misturou com a crise financeira e os independentistas aproveitaram para culpar Espanha. Por isso ganharam terreno e agora, com a retoma, estão a perdê-lo”, afirma Esperanza.
Natural da Galiza, mas há muitos anos a viver na Catalunha, esta economista pertence ao grupo dos que mais rejeitam a independência, o dos nascidos no resto de Espanha – destes, 82% não querem a separação, frente a 53% que, sim, a deseja entre os que nasceram em território catalão. O seu marido, Jorge, faz parte de outro dos setores mais contrários à separação, o dos imigrantes das antigas colónias espanholas da América. Esperanza vota no PP e Jorge em Ciudadanos, o partido mais radical na defesa da unidade da Espanha, que nasceu como uma força catalã, mas, sob a liderança de Albert Rivera, tornou-se na quarta formação espanhola, com 32 deputados em Madrid.
A terceira via na Catalunha
Enquanto os “indepes” Mireia e Vicenç atacam os media de Madrid, por chamarem totalitários e fascistas aos secessionistas que tentam simplesmente exercer o direito de autodeterminação, como na Escócia, os “unionistas” Esperanza e Jorge têm como alvo os media da Catalunha, que falam do referendo do 1 de outubro como se não estivesse suspenso pelo Tribunal Constitucional e denunciam a falta de democracia em Espanha. Tudo está envolto numa linguagem bélica que contrasta com as pacíficas manifestações, algumas com mais de um milhão de pessoas, que há na Catalunha desde 2010.
Mas também há momentos caricatos, como o dos políticos separatistas, que de manhã proclamam que já não estão sujeitos à legalidade espanhola e à tarde se queixam que o Estado espanhol não cumpre essas mesmas leis. Ou como o do envio do cruzeiro temático, decorado com imagens de Piu-Piu e Silvestre, para ser o quartel dos reforços policiais na Catalunha, tal é o receio de Madrid que a polícia principal, os Mossos de Esquadra, esteja controlada pelos “indepes”. No domingo 24, depois de milhares de tweets jocosos, a polícia cobriu com uma lona o desenho do Piu-Piu da Looney Tunes. E as reações jocosas multiplicaram-se ainda mais nas redes sociais. Na segunda, a lona desapareceu.

Jon Nazca / Reuters
Os episódios divertidos aliviam um pouco a angústia de Montse, funcionária de um museu, e Albert, empregado na indústria editorial. Sentem-se emparedados numa sanduíche diabólica entre os “indepes” e os “unionistas”. Montse e Albert são federalistas, querem que a Catalunha continue em Espanha, mas em outra Espanha, plurinacional. Chegados a este ponto, não veem uma outra saída que não seja um referendo em que o sim perca. “A Catalunha está falida e o nosso presidente, Puigdemont, em vez de governar para resolver os muito graves problemas sociais, parece tentar que o levem preso, para se tornar no mártir que conduz o independentismo à vitória. É irresponsável”, denunciam. Mas também contam o que sofreram nas férias, em Valência, na povoação da família dela, quando perceberam que o sentimento anticatalanista no resto da Espanha é mais forte que nunca. Ou quando escutam as asneiras que se dizem da Catalunha na parte mais extremista dos media de Madrid, que classificam os catalães de fascistas.
Futuro catalão em três cenários
A Catalunha vive dias imprevisíveis, ainda que haja a impressão, reconhecida por muitos “indepes”, que o referendo de domingo pode ficar simplesmente numa grande mobilização a favor do direito à autodeterminação. Assim, há três cenários de futuro: o de manter o estatuto atual, cada vez mais difícil para Espanha sem aplicar outras medidas repressivas que só aumentam o secessionismo; uma reforma constitucional para atender às reivindicações catalãs, opção muito difícil nesta altura; ou um referendo acordado entre Barcelona e Madrid. É o que deseja a grande maioria dos catalães, não só os que pedem a independência. Mas é uma opção de que Rajoy e os principais partidos espanhóis não querem nem ouvir falar.
(Artigo publicado na VISÃO 1282, de 28 de setembro de 2017)