De mãos dadas com a mulher, Brigitte, Emmanuel Macron sobe ao palco da imensa sala alugada domingo à noite, 23, para festejar a sua passagem à segunda volta das presidenciais francesas. Nunca antes um aspirante à chefia do Estado fizera tal coisa: incluir a mulher na ovação dos seus simpatizantes, como era o hábito de Barack Obama com Michelle. Há então quem tenha a impressão de ver concretizada a profecia do ensaísta Régis Debray, que ironizava há poucos anos, quando o partido conservador francês adotou o nome Os Republicanos: “Agora só falta criar Os Democratas e a França torna-se na América”. No palco, candidato atípico, Macron não consegue evitar uma daquelas suas posturas de tele-evangelista braços em cruz, cabeça deitada para trás, olhos postos algures acima dele que tanto irritam os seus adversários, e tanto suscitam o entusiasmo dos seus seguidores.
O ASTRO E OS ILETRADOS
Com apenas 39 anos, sem experiência política e apoiado num movimento, En marche, meio saída da cartola de prestidigitador no último verão, Macron está prestes a ocupar o Eliseu nos próximos cinco anos. A sua crença num destino fora do vulgar é sem falhas: Brigitte Macron telefonava há meses a Carla Bruni, mulher do ex-Presidente Nicolas Sarkozy, para lhe pedir conselhos sobre o seu futuro papel no Eliseu. Carla Bruni teria desligado o telefone.
Há dois anos, ninguém dava grande crédito à possibilidade de Emmanuel ter uma carreira política. Agora, a Europa suspira de alívio.
Nem de esquerda, nem de direita, como ele diz, pouco importa: é um pró-europeu convicto. E isso conta na União Europeia (UE).
A sua rival nas urnas da segunda volta, a 7 de maio, Marine Le Pen, promete um tsunami ao Velho Continente sob a forma de um Frexit (saída francesa da UE, à semelhança do Brexit no Reino Unido). Mas as sondagens, essas, garantem uma vitória esmagadora de Macron.
Bruxelas e o resto das chancelarias da UE têm talvez mais confiança em Macron do que os franceses. As ambiguidades do novo astro político não escapam aos eleitores. Enquanto choviam apelos de quase todos os quadrantes políticos para se “travar” a progressão da extrema-direita, nas redes sociais, como nos programas interativos dos medias, muitos franceses respondiam “não”. Dizem ser incapazes de votar em Emmanuel Macron. Duas Franças irreconciliáveis, reveladas pelo voto de domingo: de forma esquemática, Macron representa um país urbano, à vontade com as novas tecnologias, social e economicamente favorecido, mas desgarrado da população suburbana e rural, com um poder de compra cada vez mais reduzido e sem grandes perspetivas de futuro.
A paisagem política tornou-se um campo de ruínas com os dois principais partidos das últimas cinco décadas (socialistas e conservadores herdeiros de De Gaulle) eliminados logo na primeira volta. E que faz Macron logo nessa noite? Embarca com uma comitiva de vedetas políticas e do show-biz para um seleto restaurante de Paris, La Rotonde, num festejo triunfalista de velha França elitista.
As críticas não tardaram: parecia estar já a festejar a conquista do Eliseu, marimbando-se para o voto de 7 de maio e mais ou menos indiferente ao drama do seu país que vê a extrema-direita cada vez mais próximo do poder. Personagem aparentemente sem asperidades, o centrista tem deslizes destes. Quando era ministro da Economia no governo socialista, de 2014 a 2016, disse nas costas de operárias em greve, com quem até se mostrara muito simpático, que eram “iletradas”, numa inadvertida confissão de desprezo social. E a um jovem que discutia com ele na rua, e lhe dizia não ganhar nem de perto para comprar fatos como os seus, Macron respondeu num tom ríspido, que se “queria ter fatos”, tinha de trabalhar para os ganhar.
ASCENSÃO E CONSPIRAÇÕES
Nascido numa família privilegiada de província, o menino bonito gostava de ler e de escrever poemas, passatempos que muito o ajudaram a seduzir, reza a lenda, a sua professora de francês, no liceu jesuíta de Amiens: Brigitte, 24 anos mais velha, casada e com três filhos. Os pais querem separá-lo da professora e desterram-no para Paris aos 16 anos, para o selecto liceu Henri IV. A sua vida muda para sempre. Não só prossegue a relação com Brigitte, entretanto divorciada, como envereda pela via nobre da alta administração pública, com um diploma da prestigiada escola ENA. Nessa altura, terá dado nas vistas e impressionado alguns altos funcionários conhecidos como Les Gracques, um grupo que ambicionava reformar social e economicamente a França.
Mais uma daquelas associações elitistas que pululam em França desde o século das Luzes, sempre convencidas de que é pelo topo, sem prevenir o povo, que se muda um país.
“Ele é meigo, caloroso, sedutor e ao mesmo tempo muito determinado”, explica então o seu mentor, Jacques Attali, o socialista que foi conselheiro especial de François Mitterrand.
O jornal Le Monde e a revista Vanity Fair fizeram algumas investigações sobre a relação entre Macron e os Gracques. Nada de provas cabais, mas fortes suspeitas de que o misterioso grupo está por detrás da meteórica ascensão de Macron. Por exemplo, os seus membros teriam facilitado a passagem do alto funcionário para o banco Rothschild em 2008, e depois para o Eliseu, em 2012, como secretário-geral adjunto do recém-eleito François Hollande. O novo chefe de Estado vê nele o seu filho espiritual e promove-o a ministro da Economia em 2014, sem sequer imaginar que dois anos depois o jovem “meigo” o vai apunhalar.
Macron empreende uma série de reformas para liberalizar a economia, que vão da extensão do trabalho ao domingo à criação de uma rede de transportes por autocarros em todo o país. As reformas irritam a bancada socialista no Parlamento e só serão aprovadas depois de um duro e prolongado braço de ferro com o Governo. Macron começa então a rever o Código do Trabalho. Mas esta lei será açambarcada pelo primeiro-ministro Manuel Valls, que vê nela a forma emblemática de se demarcar da ala esquerdista do Partido Socialista.
Há males que vêm por bem: Valls fica entalado em meses de contestação violenta contra a reforma, e Macron ganha as mãos livres para preparar o enterro político de Hollande. O Presidente, muito impopular, vê vedada a última nesga para uma recandidatura quando o seu filho espiritual começa a pôr a sua própria candidatura em órbita.
Aparece primeiro um misterioso grupo na internet, Os jovens com Macron, que juram, de mão no coração, que não estão ligados ao ministro. Estamos em 2015, e os atentados de 13 de novembro obrigam Emmanuel a retardar os seus projetos. Em agosto de 2016, demite-se do Executivo para criar o En Marche (propositadamente, tem as iniciais do seu nome, num traço que alguns interpretam como culto da personalidade). Nessa altura, os socialistas ainda gozam com ele: “Está a fazer de conta, não tem espaço político para agir”, preconiza a direção do velho partido.
Em poucas semanas, En marche torna-se uma máquina eleitoral bem rodada. “A ascensão de Macron tem todos os sinais de uma operação clandestina típica da ENA(.) daquelas para que os altos funcionários são cinicamente treinados”, frisa o jornal conservador britânico The Spectator, invocando os Gracques. A partir daí, os seus apoios dentro do PS dão a cara, como o autarca de Lyon Gérard Collomb, e astros mortos da direita, como o antigo primeiro-ministro Dominique de Villepin, aderem ao novo fenómeno, imparável. Mas a personalidade de Macron continua sem convencer. “Alguém o imagina a enfrentar Putin numa crise?”, perguntava recentemente um diplomata da Europa de Leste num jantar em Paris. Os talheres pararam no ar. Resposta num futuro próximo.
Artigo publicado na VISÃO 1260 de 27 de abril