O que levará um chefe de Estado a furar todas as regras do protocolo, da diplomacia e da educação para insultar um homólogo com o tipo de expressão que, nos estádios de futebol, os árbitros estão habituados a ver aplicado às suas mães? Ainda há dias, assistimos a um incidente protagonizado pelo Presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, e que levou o seu homólogo dos EUA, Barack Obama, a cancelar um encontro bilateral com ele e a abandonar a cimeira da Associação das Nações do Sudeste Asiático sem lhe apertar a mão. Duterte fora criticado por Obama por combater a criminalidade recorrendo a violações dos direitos humanos. E o filipino fez um reparo truculento: “Tens de me respeitar. Não me venhas atirar com questões e declarações. Rogo-te uma praga, filho da puta.”
A sensibilidade diplomática de Duterte é a de um elefante enfurecido – esmaga tudo à volta. E, quando os diplomatas dos dois países tentavam sanar a situação, voltou a não ter, uma vez mais, tento na língua: “Estou a lutar com o embaixador dele. O seu embaixador gay, o filho da puta. Chateou-me.”
A política mundial anda animada. E os incidentes e inconfidências têm ocorrido a um ritmo avassalador. É o preço da fibra ótica, dos satélites e da globalização.
Por cá, em Portugal, tendo em conta os brandos costumes, somos comedidos. Não havendo campanhas eleitorais a decorrer, dificilmente se repetirão as cenas da última corrida ao palácio presidencial em que vimos Marcelo Rebelo de Sousa acusar Maria de Belém de se armar em psicóloga, de ter duas caras, de intrigar e de mentir, ao passo que ela lhe chamou cata-vento político e campeão da intriga.
O caso do Presidente das Filipinas poderá ser apenas de inépcia patológica ou de simples boçalidade.
O carisma, a capacidade para inspirar, a faculdade de persuadir os outros, a vontade de correr riscos, aspirações de grandeza e uma autoconfiança absoluta – características que o médico e antigo ministro britânico dos Negócios Estrangeiros britânico David Owen diz estarem associadas a uma liderança bem sucedida. Contudo, no seu livro The Hubris Syndrome: Bush, Blair & the Intoxication of Power, o clínico diz que aquelas mesmas qualidades podem ser também marcadas pela impetuosidade, a recusa de ouvir os outros, uma forma própria de incompetência, quando a impulsividade, o atrevimento e a desatenção aos pormenores predominam.
O insulto pode ser fruto da falta de autocontrolo. De uma explosão emocional espontânea ou premeditada, quando não há outros argumentos. Segundo a psiquiatra Maria Antónia Frasquilho, antiga diretora do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, nunca se deve presumir que funcione como tratamento para alguém carregado de tensão. “É um destratamento”, afirma. “Ao descarregar a pressão, quem insulta não resolve um problema. Está a criar outro: o abuso moral sobre a vítima.” “A política está cheia de insultos, mesmo quando se usa uma linguagem normalíssima”, acrescenta o politólogo José Adelino Maltês.
No seu livro Stick and Stones – The Philosophy of Insults, Jerome Neu, professor na Universidade da Califórnia, define o insulto como a declaração ou assunção de domínio, quer reivindicando superioridade quer revelando falta de consideração. E, escreve, ser insultado é sofrer um choque, a disrupção do nosso sentido de nós mesmos e do nosso lugar no mundo. É que quem o insulta fá-lo com esse objetivo. Quer remeter o alvo ao desprezo, desvalorizá-lo, realçando os seus pontos fracos, apoucá-lo e desumanizá-lo. Segundo o escritor irlandês Oscar Wilde, “um cavalheiro nunca insulta sem intenção”. “É uma arma retórica”, afirma José Adelino Maltês. E isso desde os tempos mais remotos. Antes da mediatização das diatribes de Donald Trump, Vladimir Putin ou Boris Johnson, já existiram outros populistas arruaceiros, com discursos igualmente agressivos.
Não é uma novidade deste primeiro quartel do século XXI. Os humanos sempre se deliciaram com esse prazer malicioso e antigo. Na política, serve para arregimentar hostes e captar apoios, desde a antiguidade mais remota. Os registos históricos que melhor se preservaram até hoje são do período romano. No total, 14 discursos proferidos e escritos, entre 44 a.C. e 43 a.C, pelo político, jurista e historiador romano, Caio Túlio Cícero – as peças retóricas chamadas Philippicae ou Filípicas, que podem ser consultadas na livraria digital Perseus (www.perseus.tufts.edu).
A vítima desses discursos é Marco António. Simpatizante da conspiração, que a 15 de março de 44 a.C. vitimou Júlio César (ditador vitalício da República Romana), Cícero foi um importante líder de fação nos tempos conturbados que se seguiram ao assassinato e incompatibilizou-se com Marco António, que ambicionava suceder a César – ou entrar num esquema de partilha do poder.
Imbecil, patife, acéfalo e prostituto
A retórica de Cícero incluía subtilezas, mas também a artilharia pesada para minar a reputação e o ethos do adversário. Chamou nomes a Marco António. Realçou-lhe o gosto pelo vinho e pelo deboche sexual, bem como a sua incompetência oratória. “Carneiro” e “tolo” foram dos rótulos mais suaves que colou a Marco
António, pois o repertório incluiu também “imbecil”, “patife”, “acéfalo”, “prostituto” entre outros.
Quando pronunciou a sua primeira Filípica no Senado, a 2 de setembro de 44 a.C., Cícero ainda se conteve. Mas recebeu uma reação violenta de Marco António, que “parecia mais estar a vomitar do que a falar”. Pronunciados em pleno Senado, esses insultos de Cícero transformaram-se em gládios mortíferos. Mas foi Cícero quem morreu, assassinado por homens de Marco António. Mas este ficou irremediavelmente marcado e desacreditado perante a opinião pública romana.
Voltando ao Portugal do século XX, em 1982 as farpas da poetisa Natália Correia (então deputada do PSD) não mataram mas deixaram uma marca profunda na carreira política do seu colega do CDS João Morgado, que depois de um ataque mordaz dela ficou com a alcunha de “deputado truca-truca”.
Natália foi arrasadora naquele outono em que se debateu a interrupção voluntária da gravidez, depois de Morgado ter defendido que o único propósito do ato sexual seria a procriação. Natália respondeu-lhe com um poema, escrito ali na hora: “Já o coito – diz Morgado –/ tem como fim cristalino/ preciso e imaculado/ fazer menino ou menina;/ e cada vez que o varão/ sexual petisco manduca/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca/ Sendo pai só de um rebento/ lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou – parca ração! –/ uma vez. E se a função/ faz o órgão – diz o ditado –/ consumada essa excepção,/ ficou capado o Morgado.”
A subtileza e sentido de humor de Natália Correia foi o que faltou, durante a Reforma Protestante do século XVI, a Martinho Lutero, conhecido por deixar fluir livremente verborreia biliosa nos ataque à Igreja Católica: “Sois a alcoviteira do bordel e a filha do diabo no inferno.” E dirigindo-se ao papado de Roma, Lutero declarou: “Um burro, que carrega as sacas para o moinho e come cardos, pode julgar-vos – aliás, todas as criaturas o podem fazer. Porque um burro sabe que é um burro e não uma vaca. Uma pedra sabe que é uma pedra; a água é água, e, assim, todas as criaturas. Mas vós estúpidos imbecis não sabeis que sois imbecis.”
Lutero era de uma acidez mais corrosiva que a do português que mereceria ter entrado para a galeria dos políticos portugueses mais sarcásticos do regime democrático. O dirigente socialista de Aveiro Carlos Candal, atirou-se, durante a campanha eleitoral de 1995, a Paulo Portas, o cabeça de lista do CDS/PP que lhe andava a disputar os votos no seu distrito.
Candal escreveu um texto intitulado “manifesto anti-Portas em Português Suave”, um documento eloquente que transpirava sarcasmo, que aproveitou para ler na presença das câmaras de televisão que andavam a fazer a cobertura da campanha. Candal atirava-se a Portas, mas também a Pacheco Pereira (candidato em Aveiro pelo PSD). E no seu escrito falava da crescente influência do “lóbi gay” mas também do Opus Dei em Portugal. Portas não gostou e ameaçou dar umas bengaladas ao socialista. Este ripostou dizendo: “Não lhe dei umas bofetadas, porque não tem onde as apanhar.”
Bengaladas, bofetadas e cenas de pugilato fizeram parte do quotidiano parlamentar português durante a primeira República. No seu livro, Estes Políticos devem estar Loucos (Esfera dos Livros), a jornalista da VISÃO Márcia Galrão descreve algumas dessas tardes animadas no hemiciclo. Há o registo de duelos e tudo. Um destes foi disputado com espadas entre Egas Moniz (Prémio Nobel da Medicina de 1949) e Norton de Matos. Ambos os deputados saíram feridos.
“Atualmente, a vida política portuguesa está muito cordata”, diz José Adelino Maltês. Segundo o cientista político, nota-se racionalidade no uso das palavras.
“É um bom sinal, significa que há estabilidade educativa.”
Mas isso não significa que não tenham existido exceções nos últimos anos, como aquela, ocorrida em 2009 envolvendo o social-democrata José Eduardo Martins e Afonso Candal, do PS (filho de Carlos Candal). Pegaram-se durante um debate, e Martins recorreu a um recurso do vernáculo para o mandar, duas vezes, prò… Para um certo sítio.
Há circo em São Bento?
Nesse que foi um dos anos mais animados em termos de troca de piropos entre bancadas parlamentares. Registar-se-ia ainda o caso do “palhaço” envolvendo Maria José Nogueira Pinto (PSD). Numa comissão parlamentar, a deputada sentiu-se incomodada com os apartes que o socialista Ricardo Gonçalves fazia enquanto ela tentava expor o seu raciocínio. A dada altura, Nogueira Pinto, interrompeu a sua linha de pensamento e desancou o colega. “Gostava de perguntar de onde é que saiu este palhaço que é o senhor.(…) nunca tinha visto um palhaço permanente numa comissão”, disse. “Mas acho que o devem ter eleito para nos animar”, concluiu. Gonçalves não se deixou ficar: “A sr.ª dr.ª não domina esta área, veio de uma área diferente, de outro partido, está sempre a mudar de partido, nunca está em lado nenhum. Vende-se por qualquer preço para ser eleita por qualquer partido e faz estes papéis com muita facilidade.” O presidente da comissão ainda tentou por água na fervura para não deixar alastrar a troca de galhardetes. Mas a deputada não se deixou ficar. Tinha de ter a última palavra: “O senhor é um inimputável e, por isso, não tenho mais nada a dizer.”
Palhaço, sem desprimor para a classe profissional, é talvez o insulto mais utilizado no Parlamento.
No período desta terceira república, aparece cerca de duas dezenas de vezes. A expressão não surge nos registos das sessões até ao verão de 1979, quando Vital Moreira (PCP) se envolveu num pugilato verbal com Pedro Roseta, do PSD. Este qualificou a discussão de “palhaçada pura” ao que Vital Moreira retorquiu: “Deixe-se de matéria de palhaços sr. deputado. Se há alguma coisa em que o sr. deputado não admite contestação é nessa matéria e aí eu não vou competir consigo.”
Segundo Maria Antónia Frasquilho, a política ficaria sensaborona sem uma pitada de condimento retórico. Também para José Adelino Maltês, a democracia precisa do insulto. “A política não pode ser assexuada. Tem de ter paixão e a paixão tem estes arrebatamentos.”
Ambos olham para o insulto como recurso retórico da luta política. Mas deve ser usado com elevação e inteligência. Devem evitar-se os insultos relacionados com doenças mentais, como “bipolar” ou “esquizofrénico” ou com género e orientação sexual. “Seria um acordo social miserável”, afirma a médica. É que ao usar estigmas que queremos combater para apoucar os outros, os políticos estariam a criar uma agressividade que serviria de modelo para a sociedade.
*Com Filipe Fialho