O homem que desde junho preside ao Conselho Municipal de Genebra não se cansa de repetir que é um político suíço. Mas só se percebe a sua forma de estar e de agir quando se sabe de onde vem. Carlos Medeiros é um lisboeta. Do Bairro Alto. A visita oficial que o trouxe esta semana a Lisboa tem uma carga simbólica: o primeiro português a ocupar um cargo desta importância na política suíça é recebido nos Paços do Concelho da cidade onde nasceu e cresceu.
Chegou à Suíça em 1987, com 21 anos. Conquistou com teimosia um lugar no meio empresarial genebrino e entrou com a mesma determinação na política local – aderiu em 2008 ao Movimento de Cidadãos Genebrinos (MCG), ascendendo rapidamente a uma posição de topo naquele que é hoje o segundo maior partido do cantão, com cerca de 1400 militantes.
A veia política vinha de trás, dos tempos de liceu, no Passos Manuel. “Fiz o meu estágio político na rua. E fui quase comunista, porque andei atrás de uma miúda da UEC, mas acabei por me ligar ao CDS, por influência do meu irmão, sete anos mais velho.”
Comporta-se frequentemente como elefante em loja de porcelana, incendeia com frequência a cena política com declarações irreverentes e controversas que publica nas redes sociais. Os adversários não lhe poupam mimos: tem sido acusado de racista, homofóbico, xenófobo, salazarista. Rebate tudo – não é homofóbico, “porque até tem grandes amigos gays”, racista muito menos, é uma acusação que lhe lançaram depois de ter comentado no Facebook a notícia de que havia ciganos romenos que fingiam ser deficientes físicos para mendigar na rua, porque “não consigo aceitar que façam disso um modo de vida e usem crianças para mendigar”. Nostálgico de Salazar? “Nunca! O salazarismo condenou Portugal a um atraso de 30 anos em relação ao resto da Europa”, foi acusado de simpatizar com Salazar por ter dito um dia que “é possível encontrar aspetos favoráveis aos mais desfavorecidos em todos os sistemas totalitários, sejam de direita ou de esquerda”. Avança exemplos: no tempo da ditadura em Portugal, famílias de operários como o pai, que trabalhava na Câmara de Lisboa a varrer as ruas, tinham acesso a atividades como o hipismo.
Não se deixa comer por parvo
Não gosta que o encaixem em rótulos. Diz que não poderia ser de esquerda porque defende um sistema que recompense o mérito, mas não poupa críticas ao capitalismo selvagem “à americana” e sublinha que não hesita em votar com a esquerda em questões sociais. “Nunca me esqueço de onde venho”, lança em tom solene, com o indicador no ar. “Quando Esther Alder, do partido dos verdes, atual presidente da Câmara de Genebra, lançou a ideia de um subsídio de entrada escolar de apoio às famílias, eu defendi o projeto apesar de no meu partido ter havido quem criticasse dizendo que era uma ideia esquerdista.
E disse à senhora: ‘Você não me come por parvo, sei bem que é uma proposta eleitoralista, mas apoio porque quando levo os meus filhos à escola vejo crianças com uma sande envergonhada dentro de um guardanapo de papel e sei o que isso é.’ Pela mesma razão votei com a esquerda também o Plano de Utilização do Solo para proteger o pequeno comércio no centro de Genebra.”
Faz questão de explicar que o MCG tem como fundamento a prioridade aos residentes e não aos cidadãos suíços, “o que nos distingue do UDC (União Democrática do Centro), que é um partido de direita”. Renova apelos aos empresários suíços “para que deixem de jogar o jogo liberal, pois se continuarmos a empregar uma secretária que vem do outro lado da fronteira com cinco línguas, cursos superiores e estágios nos EUA e em Inglaterra, em vez de pagar o mesmo a uma residente, bem podemos já inscrever os nossos filhos no desemprego”. Lembra que a comunidade portuguesa é uma das mais afetadas pelo desemprego e “não é porque não queiram trabalhar, é porque a pressão do outro lado é enorme, enfrentamos um ‘dumping’ de competências”. Para Carlos
Medeiros, trata-se de bom senso. Reconhece que “precisamos de mão de obra estrangeira, temos cerca de 180 mil cidadãos ativos para cerca de 240 mil empregos”, mas insiste que a solução é uma política de imigração “seletiva, como existe nos EUA, no Canadá, na Austrália”.
Defende igualmente uma política económica forte para um apoio social eficaz: “Tens de me deixar ganhar dinheiro para eu pagar impostos e que esses impostos sirvam para ajudar os mais fracos. Não concordo com a direita liberal quando diz que é cada um por si.” Para o homem-forte do MCG, “o Estado tem um papel fundamental de moderador a cumprir, pois a cultura, a saúde, o desporto, não são áreas de negócio como outras”. Bate-se por isto: “Tenho-me oposto a negociações, que têm estado a decorrer nos bastidores aqui em Genebra, que pretendem a liberalização total dos serviços públicos, para que passe a ser tudo mercado e não fique nenhuma soberania do Estado.”
Opôs-se ao salário mínimo nacional, mas defende acordos setoriais entre os parceiros sociais: “Fui membro do sindicato no SIT (Sindicato Interprofissional dos Trabalhadores) durante mais de vinte anos, quando arranquei com negócios em 1992 continuei a pagar quotas, até ser expulso por pertencer a um partido que era contra a Internacional dos Trabalhadores, uma decisão que foi criticada por personalidades de esquerda.”
Boémio que desafia tudo e todos
Numa paisagem suíça muito contida, formal, Carlos Medeiros aparece como uma ave exótica. Um dos aspetos que “choca” é o seu gosto assumido pela festa. “É quase uma mancha”, diz, divertido com a ideia – “Toda a gente sabe que eu tenho um lado da noite, que sou um dos poucos políticos que sai à noite. Sempre fui assim, sou um lisboeta do Bairro Alto, cresci nas Mercês, Praça das Flores.” É todo “Bairro Alto” também quando cultiva a pose irreverente. Assume sem rodeios uma “postura política agressiva”, apesar de estar consciente do risco de se tornar prisioneiro de uma imagem que por vezes lhe dificulta o trabalho no Conselho Municipal.
Destoa de grande parte da população residente portuguesa: com cerca de 40 mil pessoas, trinta e tal mil das quais habilitadas a votar, é a comunidade estrangeira que regista a maior abstenção. “O português chegou à Suíça com a ideia de regressar depois de pouco tempo e manteve-se à margem da participação política, apesar de acabar por ficar cá vinte e trinta anos”, lamenta.
Já conseguiu criar animosidades no meio lusófono, por não ter apoiado a proposta de duas associações portuguesas, que queriam o ensino da língua de Camões como opção nas escolas. Argumentavam que a comunidade portuguesa representa 10% da população. Para Carlos Medeiros, o argumento não é válido:
“Vivemos num cantão onde 49% da população é de origem estrangeira. Que vamos depois dizer aos 28 mil de origem turca? E onde vamos buscar o dinheiro para pagar a professores, com uma dívida de 13 mil milhões, com um buraco de 500 milhões de francos por ano na caixa pública das reformas?” O presidente do Conselho Municipal não agrada sempre aos portugueses quando põe os pontos nos is: “Eu sou deputado suíço, não sou deputado português. Candidatei-me a este cargo num sistema de eleição nominal, onde se vota no partido mas também na pessoa, para assumir responsabilidades na Suíça. Tenho origens portuguesas, mas assumo a minha naturalização suíça.”
Eletrão livre e radical
No seio do MCG faz também mossa. Diz que é um “eletrão livre” dentro do partido: “Não recebo ordens de ninguém, mesmo se há sempre aqueles que vêm dizer-me que tenha cuidado com a imagem pública, interessa-me só ser honesto comigo próprio e com o meu eleitorado.” Compreende que haja quem o deteste, pois “é próprio da minha natureza polarizar o debate, primeiro atiro uma granada e só depois vou discutir o assunto”. As eleições têm-lhe dado razão, com uma base de apoio forte, mas anunciou já que este ano vai deixar o cargo no Conselho Municipal, para expandir a atividade empresarial.
Um partido que aparece fora do establishment atrai também alguns loucos e Medeiros sublinha que esteve sempre atento à infiltração de extremistas: “Quando entrei para o MCG virei-me para a direção do partido e disse-lhes que nunca pactuarei com neonazis. Até porque aparecemos na mesma altura que o Jörg Haider na Áustria e houve quem pensasse que éramos de extrema-direita”.
Carlos Medeiros é a favor da saída da Suíça de Schengen. Explica que durante o período noturno há duas patrulhas a vigiar os 140 quilómetros de fronteira com a França “porque somos obrigados a concentrar os nossos efetivos no aeroporto, no controlo das fronteiras externas do Espaço Schengen, enquanto a pequena criminalidade que origina o sentimento de insegurança da população vem de França”. Critica a União Europeia, “que pouco mais representa do que interesses económicos e esqueceu as pessoas simples”. Considera grave que países como Portugal tenham perdido “um instrumento de regulação muito importante que era a moeda nacional, o que nos fez perder competitividade e aumentou o desemprego”. Diz que quem ganha com a UE são os países economicamente mais fortes, como a Alemanha, “beneficiários do círculo vicioso que mantém os mais fracos dependentes e reféns de um aparelho burocrático apostado em implementar uma armadilha económica da globalização que não serve as populações”.
Não tem palavras doces para falar da cena política portuguesa. Diz-se chocado com a corrupção presente em todos os setores políticos e a promiscuidade entre os maiores partidos e o poder financeiro e a banca, que “cria um vazio político aproveitável pelos extremistas”. E remata que “são urgentes em Portugal reformas estruturais profundas, mas não vejo que governo teria a capacidade de as levar a cabo”.
Texto: Nélson Pereira, em genebra