John Carlin, um jornalista premiado, amigo de Nelson Mandela, autor da obra que deu origem ao filme Invictus, escreve, no El País de 10 de agosto, um divertido conto. Nele, Donald Trump resolve invadir o México para “recuperar” os estados da Baixa Califórnia, Sonora, Chihuahua, Coahuila, Novo Leão e Taumapilas. Está-se em 2020, Jeremy Corbin e a sua boina marxista estão no poder no Reino Unido, Yanis Varoufakis e o seu cachecol Burberry comandam os destinos da Grécia, Pablo Iglésias reina em Espanha e Vladimir Putine continua à frente dos jogos políticos na Rússia. Os britânicos propõem nacionalizar todos os McDonalds europeus, os gregos ameaçam bombardear os EUA e Iglésias quer realizar um referendo digital para o povo decidir o que fazer. Mas Putine mantêm-se calado. Porquê? Simples. Por se ter entendido secretamente com o pragmático Trump, num acordo “realista” de interesse recíproco: o Presidente dos EUA terá carta branca para invadir toda a América Latina e do Sul, os russos controlarão finalmente uma Europa do Atlântico aos Urais.
Toda a história de Carlin é ficção. Toda menos um pormenor. Donald Trump já admitiu uma eventual invasão do México. Foi num evento organizado pela FOA – Friends of Abe (Lincoln) -uma organização secretista, fundada, entre outros nomes conhecidos, pelo realizador Clint Eastwood. A FOA, que se inspira na figura do primeiro presidente republicano dos EUA, reúne atores, produtores e executivos de Hollywood que simpatizam com a causa do partido do elefante. A pertença a esta sociedade é secreta, pois, afirmam, num ambiente liberal como o da indústria cinematográfica americana, a admissão de uma filiação de direita equivale a uma sentença de expulsão. Secreta e, sem dúvida discreta: a FOA já recebeu, sem que nada tivesse transpirado na altura, personalidades como Dick Cheney, o senador Ted Cruz ou Rush Limbaugh, o radialista preferido dos libertários de direita. A presença de Trump, no glamoroso hotel Luxe Sunset Blvd., foi a única que transpirou antes para a imprensa (e há um suspeito principal neste enredo: o próprio Trump, levado pela sua fixação pelos holofotes mediáticos).
Na segunda semana de julho, nesse hotel, o magnata do imobiliário norte-americano começou por criticar a invasão do Iraque por George W. Bush. Trump afirmou que esteve sempre contra a presença militar americana, que arriscava desestabilizar ainda mais o Médio Oriente, como veio a acontecer. Disse que o país, sob Saddam Hussein, funcionava como uma espécie de “tampão” ao crescimento da influência regional do Irão e que, portanto, não deveria ter sido invadido. Tudo coisas mais ou menos sensatas. Mas, depois, deixou cair a bomba: “Deveríamos, ao invés, ter invadido o México”. E arrancou uma salva de aplausos.
Não bastava ter começado a sua candidatura lançando o anátema generalizado a todos os mexicanos, que acusou de serem “violadores”, responsáveis por trazer “crime e droga” para os EUA. Não bastava a sua megalómana ideia de construir um muro de 3000 quilómetros ao longo de toda a fronteira sul dos EUA para impedir a emigração ou a garantia de que obrigará o Governo de Enrique Peña Nieto a pagar a sua construção. Não. Que um putativo presidente dos EUA em 2017 se refira de forma tão leviana à tomada do território de um estado vizinho e amigo pela força das armas, dá bem a ideia de até onde o ego, a fama e a riqueza de Trump o levaram: irresponsabilidade ou loucura?
Falso ‘self made man’
“Como regra geral, deve assumir-se que tudo o que Donald diz é mentira” – escreve a Salon. E não só no que diz respeito aos mexicanos – assunto em relação ao qual todos os estudos sérios desmentem as “fontes secretas” do milionário. A imigração para os EUA tem vindo a descer; e os imigrantes são menos dados a praticar crimes do que os próprios americanos. Por exemplo, o candidato gosta de dizer que transformou a empresa do pai num império imobiliário. É indispensável para a construção do mito Trump que ele seja um self made man que pegou numa firma que valia uns meros 200 mil dólares e a fez avançar para um conglomerado de empresas que vale oito mil milhões.
De facto, quando “The Donald” entrou para o negócio do pai, já a empresa possuía ou tinha construído nada menos de 14 mil apartamentos na cidade de Nova Iorque. A preços de hoje, isto equivale a dizer que, se Trump não tivesse feito nada, ele valeria efetivamente os oito mil milhões que diz valer. Tanto a Forbes como a Bloomberg avaliam a sua fortuna em menos de metade do que Trump diz. A avaliação que faz do seu próprio nome, a “marca” Trump, em três mil milhões, é tida como “particularmente tresloucada”.
Trump gosta de se apresentar como alguém que fez tudo a partir do zero. Mesmo que os seus fracassos sejam quase tão grandes como os seus feitos. É verdade que, como construtor civil, fez da Trump Tower, onde vive num triplex hiperluxuoso de 3 mil metros quadrados, um local de peregrinação turística de Nova Iorque, graças a uma ostentação de gosto duvidoso (mármores cor de rosa e cascatas interiores).
É verdade que recuperou todo um quarteirão da cidade, transformando o decrépito hotel Commodore num outro de grande sucesso, o Grand Hyatt, embora a troco de um perdão fiscal de 400 milhões. E é verdade que nos anos 80 envergonhou o então mayor da cidade, Ed Koch, recuperando em tempo recorde (quatro meses) e abaixo do orçamentado, um ringue de patinagem que o município tentava há quase uma década reconstruir.
Mas também é verdade que durante a sua carreira de “pato bravo” foi várias vezes acusado de depender da máfia para os seus negócios imobiliários. São conhecidas e provadas as suas ligações económicas a figuras do submundo como Anthony “Fat Tony” Salermo, Costantino “Big Paul” Castellano e Nicodemo “Litlle Nicky” Scarfo, todos grandes padrinhos da “Cosa Nostra”.
Menos conhecido é o facto de já ter estado pessoalmente falido, nos anos 90, quando foi salvo pela banca e pelos seus irmãos. Várias das suas empresas já se viram forçadas a recorrer à proteção contra credores ou, para usarmos uma palavra que destesta e o irrita, à “bancarrota”. Entre os falhanços de Donald Trump – em tempos listados pela revista Time e entre os quais figura talvez o maior deles todos, o cabelo (ver infografia) – estão o casino Taj Mahal, as linhas aéreas Trump, o vodka Trump, a companhia financeira Trump, a (falsa) Universidade Trump e até o jogo de tabuleiro Trump.
Guerra: tenho um problema no pé
O milionário, que criticou John McCain por se ter deixado apanhar pelo inimigo durante a guerra do Vietname – “ele não é um herói; heróis são os que não se deixaram apanhar” – “safou-se” à tropa graças a adiamentos sucessivos. Primeiro conseguiu os adiamentos por causa do bacharelato em economia, depois por causa de um misterioso problema de saúde num pé – aliás tão misterioso que o próprio Trump já não se lembra em que pé foi.
Na sua vida pessoal já conta com dois divórcios, e nenhum amigo – como o próprio Trump admitiu à Newsweek, em 1987, os seus únicos “amigos verdadeiros” são a família). A misoginia que demonstrou no recente episódio com a pivot da Fox News, Megyn Kelly, que insinuou que o confrontava por estar menstruada, vem de longe. Humilhou em público a sua primeira mulher, Ivana, que trabalhava com ele na Trump Organization, quando afirmou que lhe pagava um dólar “e todos os vestidos que ela queira comprar” como salário. Ivana Trump chegou a acusá-lo de violação, num feio processo de divórcio, uma acusação entretanto retirada. Mas para a posteridade fica a resposta dada recentemente aos media pelo seu advogado, Michael Cohen, quando chamado a justificar o caso: “Não se pode violar a própria esposa”.
À vez, ao longo dos anos, Trump chamou a diferentes mulheres “porcas”, “gordas”, “patetas”, “degeneradas” e “nojentas”. Sobre Hillary Clinton afirmou: “Se ela não consegue satisfazer o marido, o que a faz pensar que consegue satisfazer a América?”, numa alusão ao caso Monica Lewinsky. E a uma concorrente do Apprentice, o reality show que lhe deu fama global e convenceu os republicanos com menos estudos (a sua grande base de apoio) de que ele é um líder a sério, disse que ela “ficaria muito bonita de joelhos”.
Trump, um descendente de emigrantes recentes (a mãe era escocesa, e o avô paterno Friedrich Drumpf, de origem alemã), também é dado às teorias da conspiração. Durante longo tempo, foi o mais radical promotor da tese que negava que o presidente Obama tivesse nascido nos Estados Unidos. Tão radical que achava, até, mentira a sua formação em Harvard. Entende que existe uma espécie de “plano secreto” do México para deitar o seu “lixo” – os tais criminosos e violadores – nos EUA, que a vacinação de crianças provoca autismo e que as alterações climáticas são uma invenção para sacar dinheiro aos contribuintes.
Outra característica que lhe é apontada pelos seus críticos é a inconstância política. “The Donald” – nome que se lhe colou após uma gaffe de Ivana – já foi tudo e o seu contrário. Já foi pró-aborto e contra o aborto. Já foi republicano, independente, democrata e republicano. Já foi a favor de uma saúde universal, à europeia, e hoje é contra. Já foi a favor de taxar os milionários e agora é a favor de baixar em muito os impostos desses mesmos milionários. Já foi contra a guerra do Iraque, e agora é a favor de uma presença americana no Iraque.
Há uma única coisa em que Trump é realmente o que aparenta: implacável. A famosa frase que se tornou a sua imagem de marca no reality show da NBC, “you’re fired” (“estás despedido”) é apenas um exemplo. Dele se conta que, no início da carreira, quando criou o Grand Hyatt, com a família Pritzker, nos anos 70, estava acordado que quaisquer divergências que pudessem surgir entre ele e o seu sócio, Jay Pritzker, teriam um prazo arbitral de dez dias antes de recorrerem aos advogados. Pois Trump – num episódio que o próprio não se inibe de contar num dos seus livros – esperou que Jay estivesse dentro de um avião, de partida para umas férias onde estaria incomunicável, para lhe telefonar. E depois, quando Jay voltou e já nada poderia fazer, disse-lhe: “Eu tentei ligar-te, mas estavas de férias”. Noutra ocasião, nos anos 90, quando os seus casinos de Atlantic City começaram a não fazer dinheiro suficiente para pagar os juros dos gigantescos empréstimos contraídos, Trump chegou a expulsar um jogador da sala de jogo. A razão? O japonês tinha ganho milhões de dólares.
Desleal, mitómano, misógino, maldoso, paranoico, irresponsável e inconstante eis Donald Trump. Depois de ter alienado os 55 milhões de latinos que vivem nos EUA, resolveu fazer o mesmo a 158 milhões de mulheres americanas. Hillary Clinton deve estar a rir-se: “Continua idiota!”