Faz este domingo 25 anos que o Muro de Berlim deixou de existir e que, um pouco por todos os países da Europa do Leste, grandes movimentos de massas derrubavam os governos pró-soviéticos e preparavam o terreno para a instalação de regimes democráticos segundo o modelo ocidental. Foi o fim da Guerra Fria, esse longo antagonismo entre os dois blocos – um liderado pelos EUA e outro pela URSS -, em que o mundo esteve dividido durante quase meio século, caracterizado por um permanente clima de medo, já que cada um deles vivia no receio de um ataque nuclear desencadeado pelo outro. Os problemas com que hoje nos confrontamos são de outra ordem, nada tendo que ver com os que nesse tempo atormentavam uma humanidade estruturalmente bipolar e as mais das vezes maniqueísta.
A noite mágica de 9 de Novembro
A festa de rua espontânea dos berlinenses naquela noite gélida foi seguida com estupefacção nas televisões de todo o planeta. Gorbachev dormia, Kohl estava ausente em Varsóvia, Bush pai assistiu pela televisão. Ninguém conseguira prever este momento. Às 9 da manhã de 9 de Novembro, na Mauerstrasse (Rua do Muro), em Berlim-Leste, reúne-se um grupo de trabalho da Stasi, a polícia política, e do Ministério do Interior, para prosseguir a avaliação das consequências da nova regulamentação de viagens.
Duplamente pressionados pelo governo da Checoslováquia, desassossegado com a possibilidade de a crise na RDA desestabilizar os países vizinhos e pela insatisfação popular com o carácter restritivo da lei de viagens apresentada a 6 de Novembro (400 mil pessoas protestaram em Leipzig, nessa noite contra a lei com faixas onde podia ler-se “A lei de viagens demonstra-o, reina o velho espírito”), os funcionários do partido procuram uma solução provisória para o problema.
A Abstimmung mit den Füssen, o êxodo em direcção ao Ocidente, era a verdade crua, a manifestação mais óbvia do descontentamento. O Politburo já havia calibrado cuidadosamente a política para garantir visitas de curta duração a familiares na RFA, e em 1989 criou mesmo um “quase direito” de emigrar. Direito que se tornou obsoleto quando a Hungria desmantelou a Cortina de Ferro. Os números são desmesurados: entre 1950 e o final de 1989, nada menos que 4,86 milhões de pessoas tinham trocado o “paraíso dos operários” pela RFA.
Após controversas discussões, o grupo de trabalho define que desde que os cidadãos da RDA disponham de um passaporte ou um visto privilégio de alguns não serão aplicadas restrições aos pedidos de emigração permanente ou a visitas a familiares. A emigração permanente seria autorizada em qualquer fronteira entre a RDA e a RFA, incluindo os checkpoints berlinenses, mas de uma forma ordenada. Estas medidas deveriam ser anunciadas a 10 de Novembro pela agência noticiosa oficial ADN. Ao meio-dia, o Politburo recebe as conclusões do grupo de trabalho. Egon Kranz, desde há três semanas secretário-geral do Sozialistischen Einheitspartei Deutschlands, SED, tinha como compromisso consigo próprio resolver nesse dia o problema da liberdade de viajar que extravasava fronteiras. Coube ao recentemente nomeado secretário do Comité Central para a Agitação e Propaganda, Günter Schabowski, apresentar o diploma. Schabowski, que se tornaria involuntariamente um dos protagonistas principais do 9 de Novembro, não esteve presente quando o Politburo discutiu a nova lei, limitando-se a percorrer o documento com os olhos, quando Krenz lho entregou cerca das 17 e 30.
A imprecisão de Schabowski
Pontualmente, às 18 horas, iniciou-se a conferência de imprensa, cujo final estava agendado para as 19 horas. A abertura do Politburo seria posta à prova pela transmissão ao vivo pela televisão da RDA.
Qualidade nova nesta conferência seria o facto de um membro do Politburo permitir a jornalistas alemães e a correspondentes estrangeiros que lhe colocassem perguntas, não filtradas, em directo. Durante quase 50 minutos, Schabowski dissertou sobre a demissão do Politburo e, como se quisesse espantar a modorra dos jornalistas com uma dose de soporíferos, houve ainda tempo para teorizar sobre a matriz constitutiva do socialismo. Poucos minutos antes das 19 horas, Riccardo Erhrmann, da agência noticiosa italiana ANSA, perguntou se a lei de viagens de 6 de Novembro havia sido um erro. Schabowski lançou um olhar às suas anotações e respondeu, citando a nova lei aprovada essa tarde e que deveria ser comunicada oficialmente no dia seguinte. “Decidimos uma regulamentação que possibilite a todos os cidadãos da RDA deixarem o país através de qualquer checkpoint, sem ser por países terceiros.” Sem passaporte? “Não, não.” Questionado sobre quando a nova lei entraria em vigor, Schabowski respondeu “imediatamente”, sem se aperceber das consequências das suas palavras. Passavam 54 segundos das 19 horas quando a conferência terminou.
Explicitando o implícito, os media não perderam tempo. Às 19 e 5 já a Associated Press escrevia: “A RDA abre as fronteiras.
” A sensação era perfeita. Minutos mais tarde, o Tagesschau, principal jornal da televisão ARD, canal público da RFA, destacava o decreto que possibilitava viajar para o Ocidente sem restrições.
Menos de duas horas depois, os postos fronteiriços berlinenses estavam inundados de gente. Havia filas de quilómetros de Trabants e Wartburgs. “Abrir as fronteiras não era uma decisão humanista, mas sim táctica, tomada sob a pressão da população. A existência da RDA estava em perigo. Entre 300 e 500 pessoas fugiam diariamente, era uma hemorragia. Nós tínhamos de fazer alguma coisa para nos tornarmos populares”, reconheceu 20 anos mais tarde Günter Schabwoski.
A situação nos postos fronteiriços arriscava-se a ficar fora de controlo. “Abram as cancelas”, grita a multidão. Instala-se o caos. Ninguém sabe se é uma decisão real, um erro ou um boato. Os Vopos (polícia) não estão devidamente informados e não têm instruções, pois a regulamentação só deveria ser oficialmente divulgada a 10 de Novembro. Acabam por ceder à pressão popular. O Muro abriu-se.
Repressão, sim ou não?
Nessa noite, a repressão violenta esteve quase a acontecer. As Forças Armadas da RDA (NVA) consideraram a possibilidade de encerrar as fronteiras, recorrendo a uma intervenção militar. Várias unidades foram colocadas em alerta máximo. Mas, por um acaso benévolo, nessa noite a reunião do Comité Central do SED prolongou-se até perto das 21 horas em vez de acabar com pontualidade kantiana às 18 horas.
À reunião seguiu-se um encontro de trabalho no Ministério da Defesa. No momento histórico em que os cidadãos escreviam a certidão de óbito de um país-espectro saído do tubo de ensaio de Moscovo, a cadeia de comando da RDA debatia.
Pouco antes da meia-noite as fronteiras em Berlim estavam abertas. E é então que Egon Krenz, num momento de lucidez, ordena que não se use a violência.
Na Porta de Brandeburgo, milhares de pessoas dançam sobre o Muro, abrem garrafas de champanhe, choram, cantam, abraçam-se. Os primeiros Mauerspechte, pica-paus do muro, começam a demoli-lo a golpes de martelo e cinzel.
Helmut Kohl, o chanceler da RFA, foi apanhado de surpresa em Varsóvia. A visita de Estado do democrata-cristão à Polónia revestia-se do mais alto simbolismo. Tinha começado a 9 de Novembro e deveria prolongar-se por mais cinco dias. Num encontro com o líder do Solidariedade, Lech Walesa, o polaco disse que “o Muro em duas ou três semanas já não estará de pé, mas o que acontecerá a seguir?”. Nessa altura já Kohl havia sido informado da conferência de imprensa de Schabowski, mas não das reacções que suscitara.
Durante o banquete oficial, Kohl recebe um telefonema urgente de Bona. Do outro lado da linha está o seu chefe de gabinete, Eduard Ackermann. “Segure-se bem, o Muro está aberto.” “Tem a certeza?”, pergunta Kohl . A resposta é gritada: “A televisão está a transmitir em directo de Berlim, estou a ver com os meus próprios olhos!” “Isso é incrível”, replica Kohl.
Ainda em Varsóvia, o chanceler reage aos acontecimentos de Berlim. Questionado pelos jornalistas sobre “quando se concretizará a reunificação?”, o político, historiador de formação, usa de cautela.
“Acredito que a unificação da Alemanha um dia se tornará realidade. Leste e Ocidente observam cuidadosamente se a Alemanha aprendeu com a História. Este é o momento de reagir com serenidade. Está a escrever-se História Mundial. Ninguém pode apontar uma data para a reunificação da Alemanha, mas a roda da História está a girar mais depressa.” Na manhã seguinte, a viagem oficial do chanceler seria interrompida para regressar à Alemanha.
A comoção de Willy Brandt
Eram cerca de 21 horas quando, durante uma sessão parlamentar no Bundestag, em Bona, foi dada a notícia. Espontaneamente, a bancada democrata-cristã e liberal ergueu-se e entoou o hino nacional alemão.
Ao coro juntaram-se alguns ecologistas e social-democratas. O chanceler da Ostpolitik, a abertura a Leste, Willy Brandt, de pé na primeira fila, tinha os olhos rasos de lágrimas. Terminara o tempo da política dos pequenos passos.
A milhares de quilómetros da capital alemã, Mickhail Gorbachev dormia tranquilamente quando os berlinenses derrubavam o Muro. A Embaixada de Moscovo em Berlim-Leste não se incomodou a informar o secretário-geral do PCUS. Na avaliação diplomática, os acontecimentos dessa noite não constituíam uma ameaça grave para a estabilidade da URSS, eram um assunto interno da RDA. Não intervir foi a posição de Gorbachev. Com isso, o sétimo líder soviético na linhagem de Lenine demonstrou que pertencia a uma geração diferente da dos dirigentes cujos espíritos tinham sido vergados por Estaline. Os tanques ficaram nos quartéis. O mundo ocidental soltou um suspiro de alívio.
Devido à diferença de fuso, a queda do Muro foi transmitida em horário nobre nos EUA. Nessa noite, George Bush (pai) e o secretário de Estado, James Baker, ficaram a saber mais sobre a situação pela televisão do que pela CIA. Como primeira reacção, Bush mostrou-se “muito satisfeito”, mas não escondeu a perplexidade: “Não se pode dizer que tenhamos previsto este desenvolvimento.” Até 1991, Gorbachev foi considerado em Washington parceiro na construção de uma nova ordem mundial, de tal forma que após ter obtido, a 9 de Novembro, a garantia do lado soviético de que não haveria uma acção militar, Bush refreou o entusiasmo “Don’t dance on the Wall!”, “Não dancem sobre o Muro”, era a injunção ouvida nos corredores da Casa Branca e no Departamento de Estado e esperou quatro semanas antes de se encontrar com o líder do Kremlin para debater as mudanças na Europa Central e do Leste.
Um estado à beira do abismo
O ano de 1989 começara na RDA de forma trivial. Em Janeiro, referindo-se ao Muro, Erich Honecker afirmara que “esse dique de defesa antifascista ficará de pé até que se alterem as condições que levaram à sua construção; se for preciso, ainda estará de pé daqui a 50 ou cem anos”. Nenhum político ocidental ou analista esperava uma mudança espectacular. Mas os sinais de convulsão social avolumavam-se. A visita de Gorbachev a Berlim-Leste, a 7 de Outubro, para comemorar os 40 anos da fundação da RDA, e pelo caminho incitar Honecker a enveredar pelas reformas, acabaria por agravar a tensão interna no estado-satélite. Os dissidentes estavam dispostos a tirar ilações da Perestroika de Moscovo e, nas manifestações organizadas em torno do Forum Marx-Engels, escutavam-se gritos de “Gorby! Gorby! Ajuda-nos! Liberdade! Liberdade!”.
A juventude do líder soviético, de 58 anos, contrastava com a média de idades, 67 anos, do Politburo do SED. O desconforto de Erich Honecker com as fases inicias da Perestroika (reestruturação económica) e da Glasnost (liberalização política) evoluiu para hostilidade. Também o abandono sem ambiguidades da Doutrina Brejnev e a adopção da Doutrina Sinatra na Europa do Leste foi recebido com desagrado pelos gerontes do SED. Para Honecker, a liberalização era incompatível com o socialismo e ele estava determinado a evitar o alastramento do vírus da reforma na RDA, a que ele chamava Katastroika (de Katastrophe, ‘catástrofe’). Honecker ainda tentou um levantamento contra Gorbachev, aliando-se à Roménia e à Checoslováquia, mas sem sucesso. Seria ele o sacrificado. Falência económica, pesadelo ambiental e os cidadãos ainda deveriam acreditar na vitória última do socialismo? A emigração por um lado e manifestações nas principais cidades por outro eram uma pedra no sapato do SED. O partido não podia ficar imune à crise na sociedade, apesar de Honecker afirmar em Outubro que “o socialismo continuaria a brilhar nas cores da RDA”. O descontentamento popular tornou-se mais concreto com a abertura da fronteira austro-húngara e devido à aberta simpatia demonstrada pelos líderes da RDA pela repressão sangrenta do movimento estudantil na Praça de Tiananmen, em Pequim. Quase todos os membros do Politburo fizeram visitas de solidariedade à China, que deviam ser lidas como um aviso aos dissidentes da RDA. Todavia, um ponto de viragem aconteceu em Leipzig , a 9 de Outubro, quando uma versão alemã dos acontecimentos de Tiananmen foi evitada. Mais tarde, meio milhão de pessoas sairia à rua a exigir reformas. Tornava-se imperativo o derrube de Honecker, aos olhos do SED.
Mesmo quando o monolítico SED começou a dar sinais de erosão, Bona movimentou-se com cautela, ansiosa por evitar exacerbar a situação. Na sua carta a Honecker, em Agosto, Helmut Kohl reassegurava que tencionava manter as relações de uma “forma racional e sensível”. Kohl e o ministro dos Estrangeiros, Hans-Dietrich Genscher, não estavam interessados em precipitar uma crise que podia pôr em causa a estabilidade europeia, hostilizar a URSS e reverter o processo de reforma no Leste. Apesar de Kohl nunca ter abandonado o objectivo da reunificação, o seu empenho político e emocional só se transformou em acção após a queda do Muro.
Nas ruas da RDA, ao “Wir sind das Volk” (‘nós somos o povo’), sucedeu-se o “Wir sind ein Volk” (‘nós somos um povo’).
A 21 de Novembro, um membro do CC do PCUS, Nikolai Portugalov, informava Bona de que a URSS poderia estar disposta a dar luz verde a médio prazo a uma confederação alemã. Bush disse em Outubro que estaria preparado para aceitar a unificação; o único senão era quando e como. Esta aconteceria 11 meses depois, mais depressa do que seria de pensar.
Acabava o século XX e nascia a nova Europa.