Margaret Thatcher é vista por alguns como a coveira do consenso do pós-guerra e da social-democracia, na Europa. As teorias liberais foram afastadas por décadas, na sequência da Grande Depressão, mas ressurgem no Chile de Pinochet, a partir de 1973, sob influência da escola de Chicago. Quando Thatcher chega ao poder, a solução keynesiana parece esgotada, pelo menos na Grã-Bretanha: as greves paralisam o país, a inflação está descontrolada e a nação desmoralizada. O lixo acumula-se nas ruas. Indústrias decadentes agonizam. Margaret, desde os tempos de Oxford uma adepta do neoliberalismo, tem a solução: menos Estado, menos subsídios e impostos, mais ética de trabalho (contra a “subsidiodependência”). Desregulamentação, liberalização, patriotismo, ganância e austeridade, muita austeridade. Este individualismo exacerbado está bem patente na sua célebre frase “Não existe nada a que se possa chamar sociedade. Há indivíduos, homens e mulheres, e há famílias (…) [As pessoas] devem olhar por si próprias, em primeiro lugar (…).” Os pobres devem emancipar-se, tornar-se “responsáveis”. Não por caso, a sua primeira alcunha, enquanto ministra da Educação do Governo de Edward Heath, foi “ladra do leite” – pois acabou com a sua distribuição gratuita nas escolas. Mas, há que dizê-lo, o país tinha sido recentemente forçado a pedir um empréstimo ao… FMI.
Esta retórica – escreve, por exemplo, o historiador Tony Judt – “era muito sedutora para os jovens eleitores, sem experiência pessoal das consequências destrutivas de tais opiniões, da última vez que tinham sido aplicadas, meio século antes”, e, como resultado, “os discípulos políticos de Hayeck e Friedman conseguiram apoderar-se do controlo da política pública e infligir uma transformação radical ao país”. E isto antes de Ronald Reagan chegar ao poder, nos EUA, com uma ideologia muito semelhante. Thatcher seria, assim, a timoneira de uma transformação que se espalharia – e provavelmente ainda ouvimos ecos dela, nesta crise – por todo o planeta.
O capitalismo popular ou de casino
Durante dois anos, a sua política económica parecia falhar – o desemprego aumentava brutalmente, com a destruição das indústrias têxteis, naval e do carvão. Mas aos seus colegas conservadores que lhe pediam uma mudança respondeu: “Deem os senhores voltas, se quiserem. Esta senhora não é de voltas.” Uma das suas grandes jogadas foi a venda das habitações sociais aos seus ocupantes e outra o encorajamento para que a classe média investisse na bolsa (de 1980 a 1990, o número de detentores de ações, no Reino Unido, passou de 3 milhões para 11 milhões). A política fiscal trabalhista – que, então, podia chegar a levar 83% dos lucros – caminhava em direção “não só do socialismo como do comunismo”, afirma Thatcher. Assim, promove a descida do IRC e aumenta o IVA. Em 1986, promove a desregulamentação da City, o que fará dela o segundo maior centro financeiro do mundo, depois de Nova Iorque. No caminho, a indústria, que representava cerca de 25% do PIB, sofre contrações enormes. A economia passa a depender, cada vez mais, dos serviços, sobretudo financeiros. Mas, em 1987, a inflação está controlada, o desemprego diminui e o crescimento é, ou parece, sustentado. Há quem tenha chamado a esta política “capitalismo popular”. Outros, como a economista Susan Strange, apelidaram-na de “capitalismo de casino” – refletindo a noção de que a especulação e o trading financeiro não deveriam ser mais importantes do que a indústria.
A mulher que destruiu os sindicatos
Outra influência thatcherista duradoura foi a anulação dos sindicatos. A futura baronesa de Kesteven fez aprovar leis que limitavam a capacidade dos dirigentes de organizarem greves e, em 1984-85, esmagou o sindicato nacional dos mineiros, durante uma paralisação que lhe demorou um ano a vencer e em que ela comparou os grevistas aos invasores das Malvinas, chamando-lhes “o inimigo interno”. (O mesmo que fez, juntamente com Rupert Murdoch, seu aliado político, aos tipógrafos). Entre 1980 e 1988, faz aprovar leis que limitam em muito a ação dos sindicatos, acabando, por exemplo, com o sistema de closed shop, que obrigava a que, em certos setores, só operários sindicalizados fossem contratados. Isso valeu-lhe o ódio das classes trabalhadoras. Ainda num congresso sindical recente se vendiam T-shirts que diziam “dançaremos sobre a tumba” de Thatcher. Mas se, em 1979, se perdiam 29 milhões de dias de trabalho por ano, em 1990 perdiam-se apenas 2 milhões. Pelo caminho, reduziu a importância das organizações sindicais que viram fugir associados, um movimento que ainda está por estancar em toda a Europa.
Privatizações: os telefones do Governo
As privatizações não foram começadas pela “dama de ferro”, mas pelos trabalhistas, com a British Petroleum, em 1976, por ordem do FMI. Nem parecem ter sido uma opção ideológica, pelo menos não no primeiro mandato. Mas Thatcher era uma mulher pragmática e o dinheiro dava jeito: de 1984 a 1991, um terço do total do património estatal privatizado em todo o mundo pertencia à Grã-Bretanha. Mas, como nota Jonatham Fredland, no Guardian, as privatizações tiveram vantagens. “Quando ela tomou as rédeas, os telefones ainda diziam ‘propriedade dos Correios’ – isto é, do Governo.” Esperavam-se semanas para ter um. Pior, o aparelho estava pregado à parede e não podia ser mudado de sítio, sem autorização da companhia. Assim, foram tantas as privatizações que, quando John Major chegou ao poder, em 1990, já só pôde privatizar… os caminhos de ferro, uma decisão que ainda hoje os britânicos – muitos tories incluídos – lamentam.
Herança: um país dividido
Apesar de todas estas políticas, a despesa pública, em 1988, era praticamente igual à de 1978: 42,5% (contra 41,7%) do PIB. A razão? Os enormes gastos com o desemprego, que já atingia 3,5 milhões de pessoas. Os mais desfavorecidos tinham, agora, de se contentar com trabalhos mal pagos e a tempo parcial, sem benefícios, e eram incapazes de se sustentar e às suas famílias – uma situação que não pareceria estranha ao “filhos enjeitados” da Agenda 2010, de Gerhard Schröder, do SPD alemão. A parte da população mais desfavorecida empobreceu ainda mais, sob a governação de “dama de ferro”. O número de pessoas a viver abaixo do limiar de pobreza ultrapassou 20% quando, uns anos antes, se ficava por 8 por cento. O problema dos sem-abrigo – que o resto da Europa desenvolvida tinha resolvido havia décadas – ressurgia em força, em Londres: 80 mil, dez vezes mais do que antes da era Thatcher. Quando ela cai, em 1990, a economia estava forte, a inflação controlada e o desemprego já atingira o seu pico. Mas a fratura social, essa, continua ainda hoje..
O lado errado da História: Malvinas, Pinochet e Mandela
Em 1982, o exército argentino invade as Ilhas Malvinas mas a resposta incisiva de Thatchet será crucial para a manutenção do território do Atlântico Sul sob a Union Jack e, também, para a sua reeleição. Há quem diga que se não fosse o “espírito das Falkland” teria sido conhecida pelo cognome de “Margaret, a breve”. Mas todos os estadistas têm sorte. Será aqui que começa a sua boa relação com o ditador chileno Augusto Pinochet, que dá apoio à armada britânica, durante o conflito. Uma amizade que manterá, mesmo quando, em 1999, o general é detido, no Reino Unido, a mando do juiz espanhol Baltasar Garzón. “Estou consciente de que fostes vós quem trouxe a democracia ao Chile.” Thatcher ainda não sofria, talvez, do problema de demência que a sua filha revelaria ao mundo em 2005, mas, para o escritor chileno Ariel Dorfman, esta afirmação é tão “absurda” como dizer que “ela trouxe o socialismo à Grã-Bretanha”. Não seria a primeira vez que a baronesa se encontrava do lado errado da História. Afinal, chamara terrorista a Nelson Mandela e ao ANC e o seu Governo fez o que pôde para retardar a aplicação de sanções ao regime do apartheid.
Antieuropeísmo: Jacques, senhor Jacques
Houve um tempo em que a dama de ferro parecia europeísta. Mas não demoraria muito até que fizesse o discurso do “queremos simplesmente o nosso dinheiro de volta”, em Fontainebleau, em 1984. A Europa que lhe parecia apropriada era a do mercado livre e das pátrias. Dava-se terrivelmente mal com o presidente da Comissão Europeia, o socialista Jacques Dellors, a quem tratava por senhor, para lhe fazer compreender que não passava de um funcionário – alto funcionário, sim, mas funcionário. Chegou a chamar ao projeto europeu “a maior loucura da época moderna”, um produto da “vaidade intelectual” dos seus criadores. Temia a criação de um “superestado” burocrata e hiper-regulado. A sua herança está ainda patente no referendo que David Cameron aceitou realizar sobre a permanência do país na UE.
Cultura: detestada pela cena Pop
Uma anedota, na popular série de TV dos anos 80 Spitting Image, ilustra o quanto a filha de um merceeiro de Lincolnshire era vista, nos meios culturais, como uma mulher autoritária e antipática (é dela a frase: “Não me importo que os meus ministros falem demais desde que façam como eu quero.”) No sketch, Thatcher e os seus ministros reúnem-se para jantar e ela pede um bife. “E quanto aos vegetais?”, pergunta-lhe o empregado. “Eles comem o mesmo que eu…”
Thatcher é mesmo odiada pela cena musical britânica, a ponto de, horas depois da sua morte, o ex-vocalista dos Smiths, Morrissey, escrever que se tratava de uma “bárbara”. Como quer que seja, sem ela, os Iron Maiden teriam, provavelmente, de arranjar outro nome (trata-se de um trocadilho entre um instrumento de tortura e a alcunha de “dama de ferro”), Roger Waters, dos Pink Floyd, não teria começado uma música perguntando “Oh Maggie what have we done?” e filmes como Trainspotting, Billy Elliot ou Raining Stones teriam de ser reescritos.
Guerra Fria
Com Ronald Reagan e João Paulo II é-lhe atribuída uma contribuição essencial – esta semana reconhecida por Angela Merkel – para a queda do Muro de Berlim e da URSS. Sob sua tutela, o Reino Unido promoveu o boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo, permitiu a instalação de mísseis nucleares no seu território, renovou a frota atómica e aumentou o orçamento da Defesa em 21,3%, entre 1979 e 1985. Mas recebeu a Glasnost de Gorbachev de braços abertos, ainda que o resultado final, a reunificação da Alemanha, não fosse do seu agrado.
A Terceira Via
Margaret Thatcher anulou o Labour por mais de uma década. Os trabalhistas só conseguiram voltar ao poder quando Tony Blair os convenceu a desistir da sua política de reverter as privatizações e, ao mesmo tempo, reparar os danos ao setor público da era Thatcher com injeções de dinheiro nas áreas sociais. No fundo, nota a Economist, a baronesa “recentrou a política dramaticamente à direita”, de forma que “os novos trabalhistas dos anos 90 concluíram que só poderiam salvar o partido da sua ruína, adotando as fundações centrais do thatcherismo”. Foi assim que nasceu o socialismo da Terceira Via, que, depois, se espalhou pelo Velho Continente. Reza a lenda que, uma vez, interrogada sobre qual tinha sido o seu maior feito, Maggie terá respondido com um sorriso: “Tony Blair.”