É um mar conturbado com vários navios em apuros. Os desconfinamentos dispararam a procura de matéria-prima, e a produção, adormecida na pandemia, tem dificuldade em responder. O aumento dos custos com energia, combustíveis e transportes pioraram ainda mais a fatura. Agora também o papel, em particular para jornais e revistas, começa a sofrer os efeitos dos preços mais altos. Todos reconhecem os aumentos e a dificuldade em lidar com eles, mas ninguém arrisca um desfecho.
O presidente da Associação Portuguesa de Imprensa tem os números na ponta da língua. Por ano, Portugal consome 80 mil toneladas de papel para jornal e pouco mais de 110 mil para revista. “Mas nem um grama é produzido no País. Os eucaliptos plantados cá não servem para papel de jornal e uma máquina pequena produz 300 mil toneladas por ano. Não há forma de sermos interessantes para quem tem este negócio”, lamenta João Palmeiro.
Há cerca de cinco anos, recorda, o preço do papel começou a descer subitamente. Os produtores anteciparam a procura de cartão, acumularam inventários para a Imprensa e transferiram capacidade de produção para o cartão de embalagem, requisitado pelo comércio online. Enquanto se consumiam os stocks de papel de jornal e a procura se ajustava à produção, os preços voltaram a subir. Até que veio a pandemia, que reduziu a procura e as tiragens e afundou o valor do papel para mínimos.
Se isto permitiu aos jornais aguentar o embate da crise, o reatar da procura com os desconfinamentos voltou a pressionar os stocks. Dados da Euro-Graph, associação dos produtores europeus de papel para uso gráfico, mostram as encomendas na Europa a cair até maio e a inverter a tendência no mês seguinte. A partir daí, não parou. Agosto teve um disparo de 11% na procura, sobretudo nos jornais. Nos últimos três meses, os preços de papel para revista dispararam de forma inédita, concluía recentemente a Fastmarkets, especialista em commodities.
Pelas estimativas de João Palmeiro, o custo do papel de jornal sofre aumentos de 40% a 50%, a que se juntam 15% a 20% para transporte e armazenamento, podendo levar o preço por tonelada aos €750 em 2022. Nas revistas, as subidas “serão menos selvagens, porque não houve o mesmo problema de stock versus a falta de papel”.
O setor já começou a acomodar as altas, mas elas podem ser, nas palavras de Palmeiro, uma “machadada final”. Os efeitos podem ir do aumento dos preços de venda ao público à alteração da periodicidade ou à redução de páginas. Mas o risco de fecho de títulos não está afastado, sobretudo nos mais pequenos e com menor capacidade de reação. Uma situação que “arrastará postos de trabalho”. “Este momento devia ser fundamental para que as pessoas sentissem confiança, para terem informação verdadeira”, lamenta.
Indústria evita falar em preços, mas os ajustamentos são “naturais”
Algumas consequências chegam em breve a outras prateleiras. A partir de 1 de dezembro, a Navigator vai subir 8% a 10% os preços do papel tissue (usado em guardanapos ou papel higiénico) no mercado ibérico. Além da eletricidade quatro vezes mais cara e do gás natural seis vezes mais dispendioso do que em 2020, a empresa frisa que o índice desta pasta de papel disparou 78% desde janeiro.
Entre setembro e novembro, os preços do papel para revista dispararam de forma inédita na Europa, segundo a Fastmarkets
Porém, a indústria papeleira nacional é parca em comentários sobre preços. A Celpa, principal associação do setor, diz que este é um critério definido por cada membro, em concorrência. Mas o diretor-geral da associação reconhece que, com o aumento dos custos a montante, os problemas logísticos e os investimentos “significativos” das empresas na descarbonização, “é natural que se assista a ajustamentos dos preços dos diversos produtos fabricados a partir da madeira e da celulose”.
Francisco Gomes da Silva sublinha ainda que este é um mercado global e que não há relação direta obrigatória entre a pasta e o papel produzidos e consumidos no País. Na última década, exemplifica, 92% das vendas de pasta para papel e 90% das de papel e cartão foram feitas no estrangeiro.
Livros com Natal tranquilo. Depois, não se sabe
As atempadas planificações editoriais e a alocação de papel – porque, como explica Pedro Sobral, “os livros não se fazem de um dia para o outro” – permitem que os lançamentos de livros até ao final do ano, nomeadamente no Natal, época forte para o negócio, não sofram com esta ameaça, confia o vice-presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL).
“Há problemas no fornecimento e menos variedade. Os preços de alguns papéis e cartolinas subiram 35% a 50%. Temos de esperar pelo primeiro trimestre ou semestre para saber se isto põe em causa os preços que estavam previstos”, acrescenta o vice-presidente.
No setor, as dificuldades extravasam o papel. Pela Europa, os constrangimentos vão das tintas às colas. Cá, as gráficas e transformadoras de papel, que importam a matéria-prima, também notaram “aumentos substanciais” em tintas e chapas de alumínio. Após meses parados, os fornecedores asiáticos não têm mãos para as encomendas.
“Quando se está na subcave do problema, chegar ao rés do chão já é uma vitória. Ou seja: se as empresas estão paradas e, de repente, têm alguma coisa para fazer, é natural que elas não consigam responder”, argumenta Paulo Dourado, diretor de comunicação da Apigraf, associação que congrega 370 empresas. Este responsável também admite a “pressão enorme” para que o aumento de matérias-primas venha a refletir-se no consumidor final – o que, pelas informações que tem, ainda não aconteceu. Por outro lado, os custos do setor com eletricidade estão controlados. Até maio, a compra em grupo a um operador permitiu contratar um valor fixo e escapar às oscilações das últimas semanas. Depois, não se sabe.
“Não é uma questão específica do nosso setor; não é só o papel que está a aumentar”, diz Paulo Dourado. “Tivemos algumas empresas nas embalagens que respiram saúde por influência destas novas formas de comprar que surgiram. E o papel para livros também continua a ter a preferência do consumidor.”
Na área livreira, o “caldo perfeito”, como lhe chama Pedro Sobral, sofre das mesmas dores do que as revistas e os jornais. Para já, o setor não dá sinais de querer aumentar os preços e acredita que o estrangulamento no fornecimento de matéria-prima será temporário, estabilizando na primeira metade de 2022. Ainda assim, mantendo-se o cenário atual – energia cara e incertezas nas cadeias de fornecimento globais –, o vice-presidente da APEL acredita “que o preço do papel não voltará aos valores anteriores”.
Enquanto isso, do lado da Imprensa, já começaram os contactos com o Governo para se encontrar uma solução que minore o impacto. Sem detalhar, João Palmeiro diz que a associação está a falar com o Ministério da Economia e a recolher dados “para ter uma conversa mais profícua”. A VISÃO contactou o ministério que, até ao fecho desta edição, não respondeu.
“Do Governo nunca espero nada. É o preço da nossa independência e autonomia. Mas há outra coisa: a democracia precisa de nós. Nunca, em nenhum lado do mundo, a Imprensa soçobrou por causa de questões industriais. Os que são indispensáveis – que são todos – vão ficar”, afiança João Palmeiro.