Se lhe sugerissem ser sócio de uma empresa que nunca deu lucro, talvez pensasse duas vezes antes de arriscar dinheiro nesse negócio. Mas isso não parece ser grande preocupação para os investidores de Wall Street. Mais de 80% das empresas que se estrearam na bolsa norte-americana em 2018 tiveram prejuízos no ano anterior à ida para o mercado de capitais, um número que faz lembrar a febre que aconteceu na bolha das dotcom no início do milénio. Há mesmo empresas que são avaliadas em dezenas de milhares de milhões de dólares, apesar de terem prejuízos crónicos, como a Uber, a Tesla ou a Spotify.
No entanto, no passado recente, houve casos de tecnológicas que depois de largos períodos de prejuízos conseguiram dar a volta para se tornarem as empresas mais valiosas do mundo, recompensando os seus investidores iniciais com ganhos avultados. E, em Wall Street, são poucos os que querem agora correr o risco de perder a oportunidade de investir na próxima Amazon ou no próximo Facebook, o que ajuda a explicar que em cada dez empresas que chegam ao mercado, cerca de oito não têm resultados positivos para mostrar, segundo dados coligidos por Jay R. Ritter, professor de Finanças da Universidade da Flórida. É a proporção mais alta desde 2000 e é cerca do dobro do verificado em anos como 2010 e 2012.
Filipe Garcia encontra dois possíveis motivos que podem ajudar a explicar esta atração dos investidores por empresas que ainda não conseguiram provar que são rentáveis. O economista da IMF afirma à VISÃO que “parece estar a chegar-se a um final de ciclo na bolsa, semelhante ao de 1999 e 2000, com tentativas de muitos investidores em acertar na lotaria ao encontrar a nova Google ou o novo Facebook”. Mas, além desse indicador de que os bons tempos nas bolsa podem estar a aproximar-se do fim, Filipe Garcia observa que há uma nova forma de fazer negócios que pressupõe estar bastante tempo sem se ter lucro: “Há uma preferência por modelos globais em que os utilizadores ou não pagam ou têm custos muito baixos e em que se tem de angariar uma grande base de clientes antes de se começar a cobrar. E, para se jogar este jogo, tem de haver uma predisposição para se ter perdas durante mais tempo. Para se ter hipóteses de sucesso tem de se investir, investir e investir.”
Do lado dos investidores é dado o desconto a estas empresas, na esperança de que se afirmem eventualmente como gigantes. João Queiroz, diretor da negociação eletrónica do Banco Carregosa, explica que “como se encontram em início de ciclo de crescimento das receitas e se enquadram no setor tecnológico, os investidores tendem a olhar com complacência para a sua capacidade em gerar resultados. Acreditam que, num futuro previsível, as mesmas consigam atingir resultados operacionais e adquiram capacidade de se tornarem autofinanciáveis”.
O padrão Amazon
Se, numa outra era, investidores famosos como Warren Buffett e seus discípulos procuravam empresas com negócios simples, apertado controlo de custos, boas margens, lucros rápidos e bons dividendos, agora a história é bem diferente. Depois da valorização em flecha das grandes tecnológicas com presença global, os grandes investidores renderam-se a estas estratégias corporativas de apostar as fichas todas num crescimento exponencial e na disrupção de setores tradicionais, independentemente da falta de rentabilidade.
Nuno Caetano explica a busca por este tipo de empresas sem lucros mas com planos acelerados de expansão com o “padrão Amazon”. O analista da corretora Infinox observa que a cotada fundada por Jeff Bezos é a “inspiração de muitos destes modelos de negócio”. E serve como o exemplo de que se pode estar bastante tempo sem lucros e vir a ser um caso de sucesso. “Depois de abrir o seu capital em 1997, a gigante do ecommerce levou 24 trimestres para registar o primeiro de lucro”, contabiliza. Mas, apesar dessa travessia no deserto, para os investidores iniciais foi como acertar várias vezes seguidas nos números da roleta. Quem tivesse investido 100 dólares na Amazon aquando da entrada em bolsa, teria agora ações avaliadas em quase cem mil dólares. A empresa já chegou a ser a mais valiosa do mundo e a superar a fasquia do bilião (milhão de milhões) de dólares. Revolucionou o setor do retalho e promete fazer o mesmo no entretenimento e até nos serviços financeiros.
Jeff Bezos estabeleceu o padrão da corrida que faz mover investidores, empreendedores e gestores. Um exemplo? A forma como a Uber tentou seduzir investidores para participarem na sua oferta pública de venda. A plataforma eletrónica de transportes foi para bolsa avaliada em 82 mil milhões de dólares no passado mês de maio, apesar das perdas acumuladas de 7,9 mil milhões de dólares desde 2009, quando foi criada, até ao final de 2018. Para dissipar o ceticismo dos investidores e garantir o sucesso da operação, um dos argumentos utilizados pela gestão da Uber nas reuniões com investidores era o de que a empresa seria a nova Amazon, segundo informações avançadas pelo New York Times.
Já depois da ida para o mercado, essa ideia foi reforçada pelo líder da empresa. Dara Khosrowshahi disse, numa conferência da revista Fortune, em julho, que “os carros estão para nós como os livros para a Amazon. Tal como a Amazon conseguiu criar esta infraestrutura extraordinária com base nos livros, passando depois para mais categorias, vamos ver o mesmo acontecer na Uber”. E se a empresa fundada por Bezos é a inspiração da Uber, a própria plataforma eletrónica de transportes, apesar dos seus avultados prejuízos, é um modelo que muitos querem seguir. A empresa deu até origem ao termo “uberização”, que caracteriza uma nova forma de usar plataformas digitais para revolucionar vários setores da economia, apesar da relação difícil deste novo modelo com o lucro e com a remuneração dos acionistas. Isto porque, refere
Nuno Caetano, “muitos dos fundadores destas empresas acreditam que o negócio tem de manter um nível elevado de investimentos, inicialmente, para construir uma base sólida de clientes, para desenvolver novas tecnologias e para se manter inovador”. O especialista considera que “estas perdas são consideradas muitas vezes como investimentos, e não sinais de um modelo de negócio sem potencial”.
Ainda assim, se lhe sugerirem ser sócio de uma empresa que não dá lucro mas que promete ser a próxima Uber ou a nova Amazon, o melhor é continuar a pensar duas vezes. É que serão muito poucas as que conseguirão escalar até ao patamar dos lucros.
Artigo publicado originalmente na edição de 10 de outubro da revista Visão