Foi como se as bilheteiras tivessem sido mordidas por uma aranha radioativa. Nos primeiros três dias após a estreia em abril deste ano, o filme de super-heróis Avengers: Infinity War faturou 570 milhões de euros nas salas de cinema de todo o mundo. O valor mais alto de sempre. O recorde terá feito abrir garrafas de champanhe na sede da Marvel, mas foi facilmente batido há poucos dias e não por um filme. O videojogo Red Dead Redemption 2 (RDR2), da Rockstar, faturou €640 milhões nos três primeiros dias em que esteve à venda. Não é um unicórnio nesta indústria. O Grand Theft Auto V (GTA V), lançado pelo mesmo estúdio em 2013, arrecadou perto de €900 milhões no mesmo espaço de tempo, acabando por se tornar no produto de entretenimento mais bem-sucedido de sempre.
A indústria dos jogos de vídeo transformou-se num colosso económico e tudo aponta para que continue a crescer nos próximos anos. A VISÃO quis perceber o que está a puxar pelo mercado de videojogos e quais as consequências de ter tanta gente agarrada aos comandos e aos teclados. “Os jogos democratizaram-se”, explica Ricardo Correia, diretor do Rubber Chicken, site dedicado ao acompanhamento da indústria. “Nunca foi tão barato e tão fácil comprá-los.” Por detrás deste sucesso está, logo à partida, a mera evolução demográfica. A primeira geração a crescer com videojogos em casa chegou à idade adulta, o que significa que tem poder de compra e filhos com quem partilhar a paixão por enfiar rotativos na cara de adversários virtuais, ou por marcar golos de pontapé de bicicleta com o Messi. Entre todos os jogadores do mundo, só um em cada cinco tem menos de 20 anos. “Os videojogos agora são transversais. Nos anos 80, eram uma coisa de nicho, mas, com o passar do tempo, as crianças tornaram-se adultos e, agora, o jogo é para o pai e para o filho”, refere Tiago Sousa, da Associação das Empresas Produtoras e Distribuidoras de Videojogos (AEPDV). “É hoje um meio influenciador na cultura popular como poucos alguma vez foram.”
Os números mostram, pelo menos, que poucos fizeram tanto dinheiro. O GTA V vendeu 100 milhões de unidades em cinco anos, com receitas acumuladas de 5,3 mil milhões de euros, o que faz dele o produto de entretenimento mais rentável de sempre. Por comparação, E Tudo o Vento Levou é o filme que mais dinheiro fez na história do cinema e não chegou a 1,7 mil milhões (já ajustados à inflação) nas bilheteiras norte-americanas.
Ao mesmo tempo que o público foi crescendo, jogos como o GTA e o RDR2 tornaram-se mais acessíveis. Ricardo lembra que nos anos 90, “um grande lançamento custava 12/13 contos [60/65 euros]”, o que não é muito diferente dos valores que se praticam hoje. “Se pensarmos no crescimento dos salários, percebemos que em vez de um jogo de seis em seis meses, podemos comprar vários.” De facto, enquanto o preço dos jogos pouco mudou, o salário médio bruto em Portugal saltou de €405 para mais de 1100 euros, entre 1991 e 2016. Se tivesse acompanhado a inflação, hoje um videojogo de referência custaria perto de 150 euros.
O RDR2 surge neste mercado em expansão, assumindo-se como um dos jogos mais ambiciosos alguma vez lançados. Uma prequela do seu antecessor, lançado em 2010, conta a história do fora-da-lei Arthur Morgan no final do século XIX. O jogo vem preparado para o faroeste, armado com um guião de 2 mil páginas (100/120 é a referência para um filme de Hollywood), inclui 300 mil animações e 500 mil falas de personagens, para as quais foi necessário contratar 1 200 atores durante 2 200 dias de filmagem. “Somos, de longe, o maior empregador de atores na zona de Nova Iorque”, assumia Dan Houser, fundador da Rockstar, à New York Magazine.
O jogo tem sido louvado pelo seu realismo, interatividade e atenção ao detalhe (quando os programadores se dão ao trabalho de encolher os testículos dos cavalos quando está mais frio, sabemos que nenhum detalhe foi deixado ao acaso). É hoje o jogo de PlayStation 4 e Xbox com avaliação mais alta no Metacritic (97 de 0 a 100), site que compila críticas de videojogos.
Representa também uma fase mais madura da indústria. Enquanto o cinema existe há mais de 120 anos, o jogo Space Invaders só agora fez 40. Talvez os videojogos estejam a sair da adolescência dos média. “Estão a tornar-se mais cinemáticos e mais adultos”, considera Ricardo Correia. Para muitos, o RDR2 será apenas um cenário bonito para disparar uma espingarda enquanto anda a cavalo, mas há mais para “descascar”. “O RDR2 é menos Sergio Leone e mais Deadwood. Não é um ‘spaghetti western’. Descreve uma sociedade em transformação que está a ser industrializada.”
Desde que foram conhecidos os €640 milhões alcançados pelo RDR2 no primeiro fim de semana de vendas, não foram divulgados mais dados, mas os responsáveis da Take-Two Interactive – empresa-mãe da Rockstar – anunciaram que já foram vendidas 17 milhões de unidades a lojas de retalho, como a FNAC ou a Worten. O que significa que numa semana, RDR2 já conseguiu vender mais do que a primeira versão do jogo ao longo de oito anos.
PlayStation Land
Os números não abundam neste setor, mas a Newzoo estima que o mercado mundial de videojogos valha 122 mil milhões de euros, equivalente a mais de metade de tudo aquilo que a economia portuguesa consegue produzir ao longo de um ano. Nos Estados Unidos da América, a indústria emprega 65 mil pessoas diretamente, mas haverá 220 mil indiretamente dependentes dos videojogos.
Em Portugal, os números escasseiam e não são muito fiáveis. Segundo a AEPDV, as vendas terão crescido a bom ritmo até 2007, mas afundaram na ressaca da crise financeira, com o impacto da recessão e das medidas de austeridade. “O mercado valia cerca de 100 milhões de euros, mas os anos da crise roubaram-lhe metade desse valor”, refere Tiago Sousa. “Nos últimos três anos tem crescido de forma muito forte e vale agora €230 milhões.”
Se um amigo seu tiver uma consola, o mais provável é que seja uma PlayStation, a rainha do mercado nacional. “Portugal é ‘PlayStation Land’. A Xbox é residual. Somos doentes por FIFA, por PES e pelo Call of Duty”, nota Ricardo Correia. As vendas de 2018 ilustram isso mesmo: os dados cedidos pela AEPDV mostram que o jogo mais comprado foi o FIFA 19, seguido pelo… FIFA 18. Em terceiro lugar surge o GTA V, apesar de já ter sido lançado há cinco anos.
Se Portugal é um país apelativo para quem quer vender jogos de vídeo, ainda tem um longo caminho a percorrer do lado da produção. Contam-se pelos dedos das mãos o número de empresas portuguesas com poder de fogo para jogar na “Liga dos Campeões” dos videojogos. Uma delas é a Bigmoon. Um estúdio sediado em Vila Nova de Gaia, que lançou há dois meses o Dakar 18, o jogo com maior orçamento de sempre para um estúdio nacional: 3 milhões de euros.
“Há nove anos, o primeiro orçamento que recebemos foi 20 ou 30 mil euros. Entretanto, já produzimos nove jogos”, conta Paulo Gomes, fundador e CEO da empresa, que trabalha há 30 anos na área de venda de software. A produção do Dakar 18, jogo oficial da dura prova de rally, exigiu que a empresa multiplicasse por seis o seu orçamento anual e reforçasse os seus recursos humanos. “Hoje, temos quase 50 trabalhadores.” Foi o preço a pagar para começar a nadar com os tubarões. E é um salto inédito para uma empresa portuguesa, que consegue entrar no mercado dos jogos AAA. “É como o Porto quando foi pela primeira vez à final da Liga dos Campeões”, compara Paulo Gomes.
A Bigmoon é uma das exceções, num mercado nacional caracterizado ainda por uma pulverização de microestúdios. “Há quem pergunte se temos sequer uma indústria. Temos pequenos estúdios com 2 ou 3 pessoas”, diz Ricardo Correia. Para Paulo Gomes, ainda “é uma indústria de paixões”. O que é bom – porque as pessoas se dedicam a fundo –, mas também pode significar mais dificuldades de monetização e menor profissionalismo na gestão financeira.
São raros os casos de sucesso-relâmpago como o independente Minecraft, que foi comprado por 2,2 mil milhões de euros pela Microsoft e, em sete anos, se tornou no segundo jogo mais vendido de sempre. “É menos provável conseguir fazer um Minecraft do que sair-lhe o Euromilhões”, avisa Paulo Gomes.
100 horas de trabalho por semana
O lançamento do RDR2 acabou por ser acompanhado de alguma polémica, que expôs alguns dos problemas mais escondidos da indústria. Na entrevista à New York Magazine, Dan Houser vangloriava-se da ambição do jogo, dizendo que ele exigiu semanas de 100 horas de trabalho. Mesmo que trabalhe ao sábado e ao domingo, isso significa mais de 14 horas por dia. A inconfidência mereceu críticas e contribuiu para dar um novo impulso ao debate sobre a sindicalização do setor.
Num estudo da International Game Developers Association, 62% dos inquiridos diziam que os seus empregos envolviam períodos de crunch, expressão utilizada para definir horas sem fim de trabalho extraordinário, na maioria das vezes não remunerado. Uma prática que a ciência tende a considerar contraproducente.
“É prática comum vários colegas fazerem diretas ao longo da semana. Mas é um problema abrangente entre as indústrias criativas”, diz Ricardo Correia. Paulo Gomes, que conhece bem como funcionam esses ritmos na sua própria empresa, assume que esse tipo de pico de trabalho é “inevitável”, devido à forma como tem de estar organizado o processo de produção de um videojogo de referência. “Acontece a todos, seja numa empresa pequena, média ou grande.”
Piratas bonzinhos
O apetite dos investidores pelos videojogos é cada vez maior. Em dois anos, a Take-Two já valorizou 135% em Bolsa. Parte do apelo é a diversidade das fontes de receita, o que torna o setor menos imprevisível. A venda do jogo já não é o momento do “tudo ou nada” para fazer dinheiro. Agora há eventos, torneios, compras dentro do jogo, produtos associados e uma experiência multiplayer que pode prolongar decisivamente a esperança média de vida dos videojogos. “Isso signifca que a compra inicial do jogo é apenas o início da sua monetização”, explica à CNBC Samantha Greenberg, sócia da Margate Capital Management.
Até os jogos grátis e sem publicidade são capazes de faturar milhões. A não ser que tenha vivido numa caverna nos últimos meses, já terá ouvido falar de Fortnite, o jogo que apenas num ano já chegou aos 125 milhões de jogadores. O download é grátis, mas pode depois comprar roupas e acessórios para o seu personagem. Num só mês, em abril, o jogo chegou a faturar mais de 260 milhões de euros.
Outra fonte de rendimento paralela é o ramo eSports: os videojogos como uma competição profissional. A Newzoo espera que este mercado se aproxime dos 800 milhões de euros em 2019. O dinheiro vem de patrocínios, publicidade, prémios, merchandise e bilhetes para eventos. No verão, o Fortnite anunciou 100 milhões de dólares em prémios de competições para a temporada 2018/2019. Os melhores do mundo acumulam literalmente milhões em prémios e são seguidos por multidões. Um jogador português entrevistado pela VISÃO no início deste ano dizia que, desde que começou a jogar Counter Strike por equipas estrangeiras, ganhou sempre entre 7 mil e 12 mil euros por mês. Por comparação, excluindo Benfica, Sporting e Porto, o salário médio de um futebolista na I Liga ronda os 5 500 euros/mês.
Além disso, ao contrário de outras indústrias criativas como o cinema ou a música, os jogos não parecem ter na pirataria um problema sério. Existem vários motivos para que assim seja, do modelo de negócio às experiências que os jogadores procuram. “Os jogos de consola tornaram-se muito mais difíceis de piratear, com proteções mais fortes. E hoje valoriza-se a experiência multiplayer, o que obriga a estar sempre ligado à rede”, explica Ricardo Correia.
As consolas “chipadas”, que tantas pessoas tinham no início dos anos 2000, deixaram de compensar o esforço. Um estudo da Comissão Europeia referente a 2014 mostrava que apenas 18% dos jogadores faziam downloads ou utilizavam streams ilegais de jogos, comparando com 35% para streams ilegais de filmes e séries. Aliás, o estudo concluía que, no caso dos jogos, a pirataria até tinha um efeito positivo nas vendas de jogos, porque a indústria conseguia converter esses gamers piratas em consumidores.
À CNBC, Timothy O’Shea, do banco de investimento Jefferies, nota que “os jogos estão a roubar quota de mercado a todas as outras formas de média”, e que estão a crescer mais rápido do que a televisão e o cinema.
Empurrão tecnológico
Os videojogos têm a seu favor o pulsar da tecnologia. A cada par de anos, as inovações podem ser de tal ordem que um jogo com uma década parece estar desatualizado. É uma posição invejável para a saúde financeira de uma indústria. Um filme com 20 anos não é necessariamente datado. Alguns dos mais aclamados de sempre estrearam-se há mais tempo do que isso. Mas experimente voltar a jogar FIFA 99. No mundo dos jogos de vídeo, os avanços tecnológicos – melhores gráficos, melhor som, mais interatividade – são, por si só, motivos para consumir. A qualidade visual é o principal motivo citado pelos jogadores para comprarem um jogo. “Os estúdios estão sempre em busca de maior fotorrealismo. O ciclo de inovação tecnológica dos videojogos é constante”, diz Tiago Sousa. Claro que a jogabilidade e a nossa ligação emocional ao jogo podem ser tão ou mais decisivos, o que ajuda a explicar o desenvolvimento recente do mercado retro. Não é muito diferente do que acontece no cinema: Star Wars regressou e vem aí um novo Indiana Jones. Entre as consolas, a Nintendo lançou a bem-sucedida NES Mini e, dentro de poucas semanas, será a vez de a Sony colocar à venda a PlayStation Classic, uma versão miniatura da consola de 1997. Em breve, será também relançada a Mega Drive.
Por esta altura, estes pedaços de nostalgia parecem garantir um maior e mais previsível sucesso comercial do que inovações revolucionárias, como a realidade virtual, que ainda não se conseguiu impor às massas. No entanto, não é fácil adivinhar onde estará dentro de 20 anos uma indústria que evolui e se transforma tão rapidamente. “Vai acabar por haver uma maturação dos videojogos e surgirão novos média”, espera Paulo Gomes. Ou seja, é possível que dentro de 20 anos olhemos para este impressionante Red Dead Redemption 2 como uma forma tão básica de entretenimento como andar num labirinto a comer fruta e a fugir de fantasmas.