Em qualquer rua de Alfama ouve-se o som de um berbequim. O bairro está inundado de casas para acolherem turistas. Temo que Alfama se transforme num dormitório de visitantes “, desabafa Rita Cardoso, 36 anos e proprietária de quatro apartamentos e uma lavandaria neste bairro histórico da capital.
O crescimento do turismo em grandes cidades, como Lisboa, tem criado novas oportunidades de negócio e, por isso mesmo, nos últimos meses, o País assiste a uma corrida desenfreada à reconversão de casas para arrendar a turistas. Nos sites de reservas de alojamentos particulares, como o Airbnb (o maior do mundo, com um milhão de anúncios), existem já perto de 19 mil ofertas para Portugal. É uma forma diferente de gozar as férias mais descontraída, próxima da vida local. Arrendam casas como quem vai passar uns dias a casa de um amigo. E, quem tem casas disponíveis, está a remodelá-las, dando um ar moderno e atraente para competir neste mercado cada vez mais feroz.
Nos centros históricos da capital, repetem-se histórias de quem começou por alugar uma casa e já tem quatro ou cinco. Outros investidores criaram empresas especializadas e estão a comprar prédios e quarteirões inteiros, que recuperam e colocam no mercado do alojamento local para turistas. Os viajantes querem experimentar a vida de bairro. E até os portugueses se começam a render a este novo estilo de viajar.
Rita consegue ganhar, em média, dois mil euros por mês, já descontados os impostos e custos. Entrou no negócio há três anos, quando comprou um pequeno T0 na Calçadinha do Tijolo, no coração de Alfama. Antes, trabalhava numa multinacional, a gerir grandes projetos. No final de um deles, pediu um aumento, que foi recusado. Demitiu-se e começou a procurar casas no Chiado e no Bairro Alto. Os preços elevados fizeram-na desistir até encontrar o Rosa de Alfama, o seu primeiro apartamento, adquirido por 70 mil euros.
Criou uma imagem e um nome para a casa e estreou-se no mundo dos anúncios online do arrendamento para férias. “Comecei por anunciar em vários sites: Airbnb, Homelidays, Windu, Housetrip. Depressa se tornou dramático gerir as reservas. Os calendários têm de estar sempre atualizados e tenho de dar uma resposta rápida. No Airbnb, por exemplo, deixamos de estar em destaque se somos lentos a responder.
Fiquei apenas nesse, que me está a gerar mais reservas, e com o Booking, pela sua notoriedade. Poucos meses depois, Rita entusiasmou-se e avançou para mais um apartamento, uns quarteirões abaixo. Em 2014, já ia nos quatro. Nessa altura, decidiu parar com as compras e entrar num negócio complementar, o de uma lavandaria, que lhe vai permitir reduzir custos e captar clientes de outros apartamentos. A lavandaria e a limpeza representam a maior fatia dos custos com cada casa, entre 15% e 20%, a que se somam os impostos. Apesar do trabalho dez horas diárias mais fins de semana e férias, o investimento deverá estar recuperado em oito anos, em vez dos dez inicialmente previstos. “Quem acha que vai ganhar rios de dinheiro, desengane-se.
É um trabalho muito exigente, temos de estar sempre atentos aos pedidos das pessoas.
Mas, no final, ganho mais dinheiro e sou muito mais feliz!”, conclui.
Corrida às legalizações
A simplificação do licenciamento e o aumento da fiscalização sobre os arrendamentos ilegais geraram uma procura sem precedentes à legalização destas casas.
E o resultado deixa o secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, satisfeito: desde que foi publicada a nova lei do alojamento local, em novembro do ano passado, que o número de camas registadas subiu dos 3 000 para os 11 419, a uma média de 78 novos registos por dia. Só em Lisboa, a oferta no Airbnb cresceu 129% num ano, para 8300 casas e quartos. “Portugal, juntamente com o Reino Unido, Holanda e França, é um dos países líderes da Europa a regular a partilha de casas. Os impostos aplicados são agora claros e fáceis de pagar “, assegura Andreu Castellano, porta-voz do Airbnb para Portugal e Espanha.
“Mal terminámos as obras, começámos a tratar da legalização dos apartamentos como unidades de alojamento local. Sabemos de vários casos de pessoas que estão a ser apanhadas”, conta Luís Fernandes, 26 anos. Juntamente com a irmã Ana, de 28, e a namorada, Mariana, de 26, gere os sete quartos de um apartamento na Calçada de Santana. Os três jovens têm sorte.
O pai tem vindo a comprar prédios na cidade para reabilitar. Eles só têm de os gerir e recuperar o investimento.
Do prédio entregue ao abandono, o apartamento do trio destaca-se: uma casa moderna, de soalhos encerados e uma cozinha a negro, contrastando com a famosa cor de bétula dos móveis do Ikea. Existe wi-fi gratuito em todo o apartamento e nas paredes da cozinha escrevem-se apelos para os hóspedes se lembrarem de deixar a cozinha arrumada. À entrada das duas únicas casa de banho, um vinil apela ao uso moderado do duche. “Não mais de 15 minutos.” Luís e Mariana vivem no andar de baixo, o que facilita a logística. São eles que recebem os turistas, tratam da limpeza da casa, resolvem qualquer problema que surja e, muitas vezes, ainda acabam por levar os hóspedes a conhecer a cidade. “Quando são mais novos e nos pedem, levamo-los até ao Bairro Alto ou organizamos jantares multiculturais”, conta Ana Fernandes.
É a irmã mais velha que gere as reservas e as contas. “Decidimos apostar no segmento dos quartos com preços entre os €20 e os 30 euros, onde existia pouca concorrência, e estamos quase sempre cheios”, diz Ana.
Se o negócio continuar a crescer a este ritmo, contam ter o investimento de 60 mil euros nesta casa paga em dois anos e meio.
“À nossa frente está um prédio inteiro a ser recuperado para alojamento local de luxo”, revela Luís. Da velhinha e degradada Calçada de Santana restam poucos sinais.
Apenas o comércio tradicional procura resistir, enquanto os prédios se enchem de cores e placas a brilhar para os turistas.
Com tanta procura, todos tentam a sua sorte. Nos grupos do Facebook de proprietários de casas, surgem cada vez mais anúncios de pessoas e empresas que se dedicam à gestão dos apartamentos. As ofertas são variadas: de um serviço pontual de limpeza ou acolhimento dos hóspedes até aos pacotes completos, como oferece o dono da Alex das Limpezas. Com uma equipa de 12 pessoas, Alex Floriano depressa se desloca às 53 casas que já tem a seu cargo, a qualquer dia e hora da noite.
No Airbnb, os proprietários só recebem o dinheiro do arrendamento ao fim de 48 horas, depois de os hóspedes confirmarem que a casa corresponde ao que procuram.
No site de reservas, cada casa tem um espaço para os comentários dos clientes (quantas mais recomendações, maior o prestígio na comunidade). As fotografias são tão importantes que alguns destes sites começaram a oferecer gratuitamente o serviço de um fotógrafo para ir a cada casa antes da inserção do anúncio. Em contrapartida, recebem entre 12% e 15% de comissão sobre o valor do arrendamento.
Os hóspedes são muitas vezes recebidos com pequenos mimos como uma garrafa de vinho e um doce ou compota. “Uma forma de os receber”, conta Ana Rafael, dona de uma moradia no Bairro de Alvalade, em Lisboa. Com um dos filhos a estudar na capital e ela a viver em Castelo Branco, esta designer acabou por encontrar no alojamento local uma forma de rentabilizar a casa de família e amenizar os custos com a escola dos filhos. É o mais velho, Sebastião (que vive na cave da moradia), quem trata de os receber. A distância do centro turístico permite-lhe ganhar outro tipo de turistas, alguns até artistas, que procuram a casa remodelada pelo ex-marido arquiteto, para criar ou gozar umas semanas em família. Com o metro e o comboio à porta, mas longe da confusão. “Muitos também acabam por nos procurar por estarmos perto do aeroporto”, conta. Apesar de a experiência ainda só ter seis meses e muito tempo de época baixa, a casa tem reservas confirmadas até agosto. Um bom indicador para quem se estreia.
Vá pelos seus dedos
Além de proporcionar um potencial rendimento, a massificação do arrendamento de casas particulares pela net, no paradigma da economia de partilha, está a mudar a forma de viajar. Não só ao baixar os preços do alojamento mas também ao diversificar a oferta e facilitar a busca, permitindo pesquisas mais pormenorizadas, à medida do pretendido. Foi o que fez Paulo Braz, habituado a esquiar na Serra Nevada, em Espanha, na Páscoa. Este ano, em vez de usar o Booking e o Sporski (especializado na Serra Nevada), estreou-se no Airbnb.
“É prático e intuitivo”, esclarece o consultor informático, 42 anos. Sem dificuldade, reservou um estúdio com cinco camas, kitchenette, casa de banho e estacionamento.
Tiveram de levar lençóis e toalhas de ba- nho, e deixar a louça lavada e o chão varrido.
Contas feitas, perfez 87 euros por cada uma das cinco noites. Além de pouparem no alojamento, também economizaram nas refeições. O pior foi quando quiseram pôr um tabuleiro de bacalhau a dourar e não havia forno. “Nas fotografias, confundi o frigorífico com o forno, mas remediámo-nos com o micro-ondas”. Fora esse percalço, a família passou seis belos dias a esquiar e cinco agradáveis noites a jogar Party & Company.
Para muita gente, pesquisar casas de férias é um prazer em si mesmo. Para Cláudia Carvalho, 42 anos, esmiuçar os sites e criar listas de favoritos é quase um hobby. Há seis anos que vai de férias com a família (dois adultos e duas crianças) para a serra algarvia.
Começou por uma vivenda na Luz de Tavira, com três quartos, piscina, churrasco e limpeza diária, tal como a máquina de lavar loiça, wi-fi e televisão. “Gosto muito de cozinhar. Faço sempre grandes patuscadas nas férias.
Quando se tem filhos, as casas são a melhor opção. Um hotel implica quase sempre jantar fora, e às dez horas a noite acabou”, conta Cláudia. “Vou sempre para casas maiores do que preciso. Como existem poucos T2 com churrasco e piscina no Algarve, só encontro T3, normalmente de alemães, holandeses e ingleses.”
De turista a senhorio
Até há três semanas, Inês Guerreiro nunca tinha ficado hospedada numa casa em vez de num hotel. Mas, ao planear um reencontro familiar, a recomendação de uma amiga fez com que a comercial de Marketing Relacional, 44 anos, consultasse o City Marque, um site especializado em apartamentos em Londres, divididos pelos segmentos luxo, médio e económico.
Acompanhada pelos filhos adolescentes (Clara, 12 anos e Afonso, 15), Inês viajou de Lisboa até à capital britânica para se encontrar com o marido, vindo do Quénia, onde está a trabalhar. Os quatro ficaram num sexto andar, em Tottenham Street, com dois quartos, uma sala, duas casas de banho e kitchenette. “No apartamento, paguei metade do valor dos dois quartos duplos”, concluiu Inês. “Como o nosso objetivo era reencontrarmo-nos, como se estivéssemos em casa, mantivemos as rotinas do pequeno-almoço e do jantar em família. A sala, ampla e luminosa, tinha um sofá onde cabíamos todos. A mesa grande e a televisão ajudaram a decalcar os serões em Lisboa”, descreve. A última noite foi novamente num hotel, “um mimo extravagante para a despedida”. Um romance que promete continar.
Pura diversão foi o que motivou Filipa, Maria João, Patrícia e Ana, entre os 34 e os 47 anos, numa viagem à capital francesa.
Uma semana antes, a proprietária da casa, escolhida no HomeAway, mudou as quatro irmãs Madeira para um apartamento melhor, pelo mesmo preço (370 euros no total).
Alojadas na Rue Saint-Charles, perto do metro, numa casa com um quarto, um sofá-cama na sala, cozinha, wi-fi e limpeza diária, tinham vista para a Torre Eiffel. da janela da casa de banho. Os serões animados em casa valeram-lhes, certo dia, às seis da manhã, um valente ralhete em francês do vizinho de baixo. Maria João ouviu, respondeu e voltou para a cama a rir.
Há quem se entusiasme tanto com a experiência dos alojamentos caseiros que decide arrendar a sua casa, mesmo sem motivações financeiras apenas para entrar no clube. Por exemplo: quem visitou Lisboa na primeira quinzena de janeiro, teve a oportunidade de alugar um apartamento na Graça, com três quartos, duas casas de banho (uma delas com jacuzzi) e um “jardim que remete para Bali”, pelo preço simbólico de dez euros por noite.
A iniciativa foi de João Manzarra, 29 anos, que “depois de ter sido tão bem recebido por anfitriões pelo mundo fora” decidiu colocar a sua casa à disposição dos “bem-aventurados utilizadores do Airbnb”, lia-se na página do Facebook do apresentador de televisão. Neste mundo do arrendamento de casas particulares, é difícil não chegar ao fim das férias sem uma mão-cheia de histórias por contar. Quebram-se barreiras, como se afinal estivéssemos em casa de um amigo. Mas à medida da nossa vontade.
Da ideia ao negócio
A nova legislação do alojamento local veio enquadrar e simplificar os processos. A legalização está hoje à distância de um clique
REGISTO
- Acabaram as licenças. O proprietário tem apenas de comunicar à Câmara Municipal que vai passar a gerir uma unidade de alojamento local e indicar a respetiva morada
- O município atribui um número de alojamento local
OBRIGAÇÕES LEGAIS
- É obrigatório o registo de atividade nas Finanças como prestação de serviços de alojamento, com regime simplificado ou contabilidade organizada
- É obrigatória a emissão de faturas. Até 10 mil euros por ano de rendimento, há lugar a isenção de IVA; acima desta valor é cobrado 6%
- Os dados dos hóspedes estrangeiros têm de ser enviados para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, através de um boletim de alojamento específico
- As seguradoras não assumem danos relacionados com os hóspedes, uma vez que a casa tem atividade comercial.
- Convém confirmar os riscos cobertos e procurar alternativas, como os seguros de responsabilidade civil para apartamentos turísticos