Quando a realidade é melhor que a ficção então o melhor é filmar a realidade. Foi o que decidiu fazer Louis Myles, realizador e produtor britânico, responsável por diversos documentários sobre futebol. Mas esta última película a que se dedicou tem muito pouco de futebol porque, na verdade, a estrela maior do filme quase nunca deu um pontapé de jeito na bola. Ainda assim, Carlos Henrique Raposo, mais conhecido como Carlos Kaiser, fez uma carreira longa com passagem pelos maiores clubes do Rio de Janeiro, mas também andou a enganar pelo México, Estados Unidos e até em França.
A história é tão deliciosa que Carlos Kaiser fez render o peixe e esperou chegar aos 48 anos para a contar. Ao longo de mais de 20 anos de carreira, vamos chamar-lhe assim, nunca fez um jogo completo e nunca marcou um golo na vida, apesar de, alegadamente, ser avançado.
Nascido a 2 de abril de 1963 – certamente por engano, porque o mundo merecia que ele tivesse chegado na véspera –, no Rio Grande do Sul, Carlos Henrique Raposo diz que começou a jogar futebol porque a mãe adotiva, cozinheira de profissão, o obrigou. O sonho dele, garante, “era dar aulas de Educação Física”. Mas já que tinha de enganar a mãe então Carlos decidiu começar também a enganar os filhos das outras mães. Encontrou os primeiros no Botafogo, um dos maiores clubes cariocas, onde começou a dar uns pontapés ainda nas camadas jovens. Diz ele – e é bom ter muito cuidado com o que ele diz porque a cada entrevista a conversa vai mudando de figura – que foi por essa altura que lhe puseram a alcunha de Kaiser, por ser muito parecido com Franz Beckenbauer. De cara, porque com a bola nos pés Carlos nem lhe chegava aos calcanhares.
Ao Yahoo Esportes, numa entrevista de 2011, Kaiser diz que foi um olheiro do Fogão, o nome carinhoso pelo qual os adeptos tratam o clube onde se notabilizou o mítico Mané Garrincha, que o viu jogar na rua e o quis levar para o lá. “A minha família começou a obrigar-me a jogar. Isso causou problemas. A verdade é que a minha mãe me viu como tábua de salvação”, revelou.
Mas Carlos estava decidido a provar que o verdadeiro olheiro era ele. Aos 16 anos, e já após a morte dos pais, uns empresários tentaram levá-lo para o Puebla, um clube do México, como médio-ofensivo. Mas o Kaiser ficou ofendido porque a vontade dele não era jogar futebol e além do mais não gostou da comida. Consta, diz ele, que fez apenas alguns jogos amigáveis e, tem dúvidas, se não terá chegado mesmo a marcar um golo de penálti. Mas estava ali a grande oportunidade da carreira: pedir a um colega que lhe passasse a bola, cair ao chão agarrado à coxa a queixar-se de dores. Hoje iria direto ao departamento médico e saía de lá direitinho que nem um fuso de volta ao relvado para continuar a treinar mas, na altura, ainda na década de 1970, as coisas não eram bem assim e era mais difícil provar que o enganador apenas estava a simular uma lesão.
A partir daí foi um ver se te avias. De regresso ao Brasil, já com a farsa montada, foi continuando a enganar tudo e todos. Sem internet, nem redes sociais, o esquema era arranjar bons amigos, principalmente figuras conhecidas mundialmente ao lado das quais se fazia fotografar. Depois, com a foto na carteira, era só puxar pela lábia, coisa que não lhe falta, e convencer uns quantos tansos que nunca tinham ouvido falar dele. Mas como vinha geralmente bem recomendado aquilo funcionava. O esquema até era dois-em-um porque também dava jeito com as miúdas, assume o garanhão.
Mas depois era preciso levar as lesões até ao limite do ridículo. Quando passava de clube para clube lá vinha o Kaiser com a história da lesão. Sem vídeos ou estatísticas a que recorrer para descobrir a fraude, muitos treinadores e dirigentes convenciam-se de que ele era mesmo jogador, craque até, e aquilo da lesão era recuperável. E ele até prometia levar os exames médicos a comprová-lo.
Mas Carlos mantinha a dele que jogar mesmo era coisa que não lhe apetecia. A situação mais caricata passou-a no Bangu, outro clube brasileiro, onde passou o tempo a queixar-se até ao dia em que o presidente lhe disse: ‘ou jogas ou vais embora’. Nessa jornada começou a partida no banco mas como o jogo não estava a correr de feição o treinador mandou-o aquecer. “Nessa altura”, conta o Kaiser, “como estávamos a perder, os nossos adeptos estavam já a insultar os jogadores e então eu resolvi saltar a rede e ir brigar com eles”. A ideia era ser expulso, claro, o que viria a acontecer. E de bónus ainda caiu nas boas graças dos restantes companheiros, que o elegeram como herói. O presidente, Castor de Andrade, é que não achou piada à brincadeira e entrou no balneário furioso. Mas Kaiser explicou-lhe que reagiu assim porque os adeptos estavam a chamar ladrão ao próprio dirigente. “Ele me abraçou e me deu um beijo e depois organizou um novo contrato para mim”, conta Carlos.
Não me faças mais Córsegas
Para além de Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama, os grandes clubes do Rio, e também do Bangu e do América, da mesma cidade, Kaiser afirma que também jogou nos Estados Unidos e até teve uma passagem pela Europa, no Ajaccio, clube francês da ilha de Córsega. Aqui, como em quase toda a história de vida de Carlos Kaiser, há versões contraditórias. Ele diz que esteve lá oito anos mas ninguém o consegue provar, nem os registos do clube. Michael Mancini, diretor desportivo do Ajaccio entre 1976 e 1993 não desmente que por lá tenha passado mas não tem lembranças dele.
No regresso ao Brasil, o carimbo da passagem por um clube europeu, ainda que fosse da II Divisão francesa e que ninguém conhecia, nem tivesse como provar, era mais um engodo para muitos dirigentes e técnicos. Foi o caso do Fluminense, onde foi parar a seguir. Até que um dia o preparador físico Ronaldo Torres descobriu a patranha. Carlos passava a vida agarrado a um enorme e pesado telemóvel a falar qualquer coisa que tinha uns leves vestígios de inglês mas que ninguém nunca entenderia, simulando discutir propostas de outros clubes. “Dei conta que ele não falava com ninguém e que o celular era de brincadeira”, contou Ronaldo Torres uns anos mais tarde.
A verdade é que, desde que a história de vida de Kaiser se tornou conhecida, ele ganhou uma fama que nunca antes teve. Hoje é treinador de mulheres culturistas num ginásio e diz que se sente culpado por não ter atingido as expectativas que muitas pessoas boas criaram em relação a ele. Mas não será bem assim. É certo que, por estes dias, no Brasil, a concorrência no departamento ‘cara de pau’ é forte mas como centro-avante que nunca faturou, o Kaiser é o maior.