“Para Ali, meu amigo eterno.” A dedicatória está gravada na camisola da seleção argentina que Diego Maradona ofereceu a Ali Bennaceur, em 2015. Foi escrita com a mão que, 29 anos antes, enganou o árbitro tunisino ao forjar o golo ilegal mais famoso da história do futebol, imortalizado pelo pecador argentino como “a mão de Deus”. No ano passado, por ocasião do 30º aniversário, a televisão britânica ITV produziu um documentário dedicado ao acontecimento, com a participação de seis dos jogadores ingleses que estiveram em campo naquele dia 22 de junho de 1986. “Maradona enoja-me, nunca lhe perdoarei”, disparou Peter Shilton, o guarda-redes atraiçoado. “Um cretino nojento”, chamou-lhe o defesa Kenny Sansom. Nem todos guardam o ressentimento, porém. Quando encontra o argentino, o ex-avançado Gary Lineker prefere brincar: “Então, como vai essa mão?” Há 31 anos que segue de boa saúde: deu música, deu livro, deu filme.
E nem há um mês, lá estava ela de novo nos jornais britânicos, com Maradona a erguê-la, durante um jogo de exibição na Coreia do Sul, para recriar o lance que abriu o triunfo da Argentina sobre a Inglaterra no Mundial do México.
Todo este folclore associado às decisões erradas dos árbitros, que tem na “mão de Deus” a sua referência máxima, serviu de argumento principal, ao longo das últimas décadas, para travar a entrada da tecnologia no futebol, como ferramenta auxiliar das equipas de arbitragem.
A aprovação de tal medida iria implicar o fim das polémicas que alimentam as conversas de café e a paixão dos adeptos, e só poderia redundar, na visão conservadora do International Board, numa quebra da popularidade do jogo.
“VAI SER O CAOS” COM OS CARTÕES
Mas o que os homens que mandam nas leis do futebol demoraram anos e anos a aceitar parecem agora dispostos a abraçar em tempo recorde. Os sinais são inequívocos: só na última semana, autorizaram o sistema de videoárbitro no campeonato australiano (estreou-se no sábado passado), na Taça Libertadores da América (correspondente, na América do Sul, à Liga dos Campeões europeia) e na final da Taça de Portugal, que vai opor, a 28 de maio, no Jamor, o Benfica ao Vitória de Guimarães. A FIFA também já não esconde a intenção de ter as imagens televisivas a dar suporte aos árbitros já no Mundial de 2018, na Rússia.
Com os testes a sucederem-se, não vai ser preciso esperar até lá para se perceber que as decisões polémicas não vão desaparecer nem dos relvados nem das conversas de café. Como esclarece o ex-árbitro Duarte Gomes, “o que deixará de acontecer são golos como o do Maradona ou do Henry” (ver imagens), ou seja, “infrações que todo o estádio vê, menos o árbitro”. Já em lances duvidosos, “o videoárbitro não vai intervir”, indica Duarte Gomes, dando o exemplo dos casos do último Benfica-Sporting, em que Pizzi e Nelson Semedo jogaram a bola com a mão e nenhum dos gestos foi considerado falta.
O árbitro que assiste à partida pela televisão e tem acesso às repetições só poderá interferir em situações de golo, penálti, cartão vermelho direto ou punição disciplinar ao jogador errado e apenas até o jogo recomeçar, na sequência de uma falta ou se a bola sair de campo.
A última palavra cabe ao árbitro principal, que pode optar por recorrer, ele próprio, às imagens televisivas. No caso de uma expulsão por acumulação de cartões amarelos, mesmo que o segundo seja injustificado, o videoárbitro nem sequer pode alertar o chefe de equipa. “É preciso baixar as expectativas das pessoas.
Se não estiverem preparadas, vão achar um escândalo e aí vai ser o caos”, avisa Duarte Gomes.
Para descansar o International Board, o ex-jogador António Simões acrescenta outro dado que, no seu entender, passará a ser amplamente debatido em cafés (e programas televisivos, conferências de imprensa.), pelo menos em Portugal: “A nomeação do videoárbitro e a sua honestidade.” Emigrante nos Estados Unidos da América durante 20 anos, Simões assistiu de perto às primeiras experiências do género, no futebol americano, em meados da década de 80. Custa-lhe perceber, a não ser à luz de “interesses obscuros”, como é que o ‘seu’ futebol, o de onze, “resistiu a estes avanços que só vão trazer mais credibilidade à indústria”, contra os “aldrabões e os chicos-espertos fora da lei” que enganam árbitros.
O futebol americano aderiu ao combate em 1986, o râguebi em 1996, o basquetebol da NBA em 2002 e o ténis em 2005.
Em relação ao maior número de interrupções que o futebol poderá vir a ter, outra preocupação antiga do International Board, a ex-glória do Benfica ri-se “da pequenez dessa gente”. “É tudo conversa.
Se isso fosse problema, já tinham posto o tempo de jogo cronometrado, como na NBA. Resolvia-se, por exemplo, o antijogo dos guarda-redes que estão a ganhar e andam sempre lesionados nos últimos minutos”. Talvez mais tarde.
Por agora, a prioridade é agilizar o videoárbitro de modo a que a decisão sobre um penálti numa grande área seja tomada antes de haver um golo na baliza do lado contrário. Imagine-se que seria necessário voltar atrás na história. E que de um lado até estava Ronaldo e do outro Messi. Final do Mundial da Rússia, porque não? No mínimo, mais 30 anos de folclore garantidos.
Artigo publicado na VISÃO 1258 de 12 de abril