Vai trabalhar na quinta-feira? Não. E na sexta? Também não. E no fim-de-semana nem vale a pena perguntar… O início dos Jogos Olímpicos transformou-se numas mini-férias para a população do Rio de Janeiro, com a introdução de dois feriados municipais extraordinários como forma de tentar aliviar o trânsito sempre caótico da cidade e, assim, permitir que o Rio 2016 possa começar em (relativa) paz.
Depois de três dias consecutivos de engarrafamentos monumentais (120 km de filas na segunda-feira, mais de 200 km na terça e um número ainda superior na quarta), o prefeito Eduardo Paes decretou que esta quinta-feira, 4, será feriado para facilitar a passagem da tocha olímpica, ao longo de um percurso pelo centro da “cidade maravilhosa”. Como a sexta-feira, 5, dia da cerimónia de abertura – que obrigará ao quebra-cabeças logístico de transportar milhares de atletas entre a Aldeia Olímpica, na zona Sul, até ao Maracanã, na zona norte – já tinha sido, há muito tempo, considerada feriado, os cariocas ganharam, de repente, quatro dias seguidos de descanso.
Contas feitas, se incluirmos os três fins-de-semana do período entre 4 e 22 de Agosto, os cariocas só serão “obrigados” a ir trabalhar em nove dos próximos 19 dias. Graças aos feriados decretados para os dias 18 (por causa da prova de triatlo que decorre ao longo da marginal entre Guanabara e Copacabana) e dia 22 (em que se prevê que mais de 100 mil visitantes, atletas e jornalistas abandonem a cidade, após o encerramento dos Jogos), os habitantes do Rio de Janeiro ficam com 10 dias de descanso em 19 possíveis. Isto, claro, numa época em que foram também decretadas férias escolares obrigatórias, como forma de descongestionar a cidade.
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Debate nas Jornadas de Luta contra os Jogos da Exclusão
Contra a exclusão
Mas será que, com o dia livre, mais pessoas sairão para as ruas a celebrar a passagem da tocha olímpica. “Nem pensar”, responde, pronta, Luana Dias, uma das participantes nas Jornadas de Lutas contra os Jogos da Exclusão que, por estes dias, decorrem no Largo de S. Francisco de Paula, junto do edifício do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Rio de Janeiro. “Não estou contra os Jogos nem contra o espírito desportivo, mas sim contra as desocupações das comunidades, contra o caos na saúde e na educação. Não podemos celebrar quando, nas favelas há milhares de pessoas oprimidas sem que ninguém faça nada”, justifica.
Não são mais de três dezenas as mulheres que, naquele momento, se reúnem na antiga praça edificada pelos colonos portugueses, junto de cartazes em que o rosto de Muhammad Ali é utilizado para afirmar, sobre fundos de várias cores, que “A luta não vai parar”.
A luta, entenda-se, é contra a exclusão que, na opinião daquelas mulheres, foi criada pela organização dos Jogos. Apenas um ou outro transeunte se detém para escutar o que vai sendo dito naquela estranha assembleia, onde o microfone vai passando de mão em mão, com cada mulher a contar a sua experiência. Quem abranda o passo para as ouvir, fica testemunha de algumas histórias dramáticas, ocorridas, todas elas, no “lado escondido” do Rio de Janeiro: dentro das favelas, em especial da Zona Norte e da Zona Oeste, onde ninguém se atreve a entrar e em que muitos estão condenados a não sair delas.
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Muhammad Ali inspira cartaz de protesto no Rio
Racismo e segregação
Marina, uma mulher negra de 40 anos, dá o seu testemunho. Mais empolgado do que emocionado. “Tenho um menino de 12 anos. Todos os dias, esforço-me para que ele saia de casa para a escola, bem vestido e bem calçado, e que cumprimente as pessoas com respeito e educação. Mas isso não muda a cor da sua pele. Ele continua a ser, aos olhos de todos, um menino preto. É assim que o veem na escola. É assim que o veem quando vai à Zona Sul. Como é que vou fazer do meu filho uma pessoa saudável se ele vive numa sociedade institucionalmente racista?”, pergunta, sob uma chuva de aplausos.
Outra das participantes pega no microfone e lembra que nas favelas vivem milhares de mulheres que são obrigadas a percorrer, todos os dias, mais de 50 quilómetros para irem trabalhar do outro lado da cidade. “São mulheres que saem das suas casas para irem cuidar dos filhos dos outros, mas não podem cuidar dos seus”, grita.
O microfone salta para o lado oposto da assembleia e várias pessoas param na praça para escutar outra mulher e o seu testemunho de viver numa das zonas mais perigosas e segregadas do Rio de Janeiro. “A Zona Oeste é o território do medo”, declara. “Ali nenhuma comunidade é segura, os vizinhos desconfiam todos uns dos outros, e nós próprias acabamos por contribuir para que este estado de coisas se mantenha, porque pactuamos com o medo, com a violência e com o crime. A exclusão só terminará quando conseguirmos passear pela cidade e, ao mesmo tempo, convidarmos pessoas para nos visitarem, para virem às nossas casas”.
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Enorme aparato de segurança a proteger a tocha olímpica no Rio
Chama… da polícia
É verdade que não são mais de 30 mulheres naquela assembleia, com apenas um microfone que vai passando de mão em mão. Mas em nenhum momento se vê alguém interromper a reunião ou, simplesmente, atirar uns impropérios, enquanto caminha apressado. Estão centenas de pessoas sempre a cruzar aquela praça por minuto, mas embora sejam poucos os que abrandam ou param para escutar, também ninguém se manifesta contra o que vai sendo ali dito.
O contraste, nesse campo, é total com o que sucede com a passagem da tocha olímpica pelas ruas do Rio de Janeiro. A caravana em que é transportada parece um filme… de mau gosto. Protegida atrás de um enorme camião publicitário, a pessoa que transporta a tocha quase não se vê, rodeada que está por dois cordões de polícias, completamente armados, como se fossem tomar uma posição inimiga em território hostil. Embora caricatural, a imagem não é exagerada. E percebe-se, em especial depois de ouvir os testemunhos das mulheres reunidas na praça de S. Francisco de Paula, que há uma raiva latente e cada vez mais viva entre os brasileiros contra os dinheiros mal gastos, a prepotência, a corrupção e o negócio sem preocupação social.
“Há pessoas a dormir debaixo da ponte e a tocha vai sempre dormir a hotel de 5 estrelas”, brinca Joaquim, com ar desiludido, quando vê aquela estranha coluna militar a passar na Praça Mauã, supostamente a celebrar uma chama que deveria simbolizar a paz e a harmonia entre os povos. Ao seu lado, um colega concorda, ainda mais sarcástico: “Tanto roubo por aí e juntam estes polícias todos para guardar uma tocha”.
O que se sabe, também, é que o itinerário da tocha não inclui os bairros da Zona Norte ou da Zona Oeste de que falam as mulheres reunidas contra os Jogos da Exclusão. Mas dificilmente, sejamos justos, algum carioca se vai lembrar disso nos próximos dias. Há feriados para gozar e a festa está quase a chegar.
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