O anúncio do seu declínio foi manifestamente exagerado. Durante quatro anos, Nelson Évora quase trocou as pistas de atletismo pelas salas de cirurgia dos hospitais e os treinos por longas sessões de fisioterapia. E, nos intervalos das lesões, sempre que surgia em prova, nunca conseguia atingir um nível minimamente semelhante ao evidenciado em 2007 e 2008, quando se sagrou campeão mundial e olímpico. Sem somar títulos nem medalhas, foi visto como acabado, perdeu patrocínios relevantes e, confessa, chegou mesmo a questionar-se sobre se valeria a pena continuar a tentar regressar à alta competição internacional. As dúvidas desfizeram-se, completamente, no sábado, 8, quando se sagrou, em Praga, campeão europeu de pista coberta. Mas a história do que ele penou para ali voar ainda não tinha sido contada.
> Vamos lá recapitular esse calvário, Nelson. Depois da glória do título olímpico, em 2008, como foi a descida ao inferno?
Foi inesperada. Depois de anos de muita competição, decidi, em 2009, não competir na época de inverno para me poupar e dedicar-me aos estudos. Depois, em fevereiro do ano seguinte, sou pela primeira vez operado, para debelar uma fratura de esforço na tíbia da perna direita e, assim, tentar evitar males maiores. Regresso à competição em 2011 e fico em 5.º lugar no Mundial, numa época de preparação para os Jogos Olímpicos de Londres, que era o meu grande objetivo.
> Sentia-se em boa forma?
Estava numa forma excelente. Mas logo na primeira prova de 2012, em janeiro, fraturo a tíbia em plena competição. Sou operado e, algum tempo depois, regresso à mesa de cirurgia para retirar dois parafusos que me tinham posto na perna. Quando estava já a recuperar, apanho uma infeção que me obriga a ir novamente à faca.
> Já vamos, portanto, na quarta intervenção cirúrgica…
Sim, foi uma cirurgia de limpeza, para impedir que a infeção apanhasse o osso. Quando estou a tentar recuperar dessa intervenção, apanho outra infeção, que me obriga a ir pela quinta vez para a sala de operações, desta vez de emergência, para retirar a placa de metal e a cavilha que os médicos me tinham posto, mas que o meu corpo estava a rejeitar.
> Todas essas operações foram sempre à perna direita, a mais exposta no triplo, aquela que faz a chamada para o primeiro e o segundo salto?
Sim, todas. Mas quando tudo estava a correr bem, apareceu-me uma infeção no joelho da perna esquerda, que me obrigou a ser novamente operado, em janeiro de 2014, quando já tinha bons meses de treino e estava numa forma muito boa.
> Recapitulando, foram seis operações em quatro anos e intermináveis horas de fisioterapia, tratamentos, recuperações…
O pior foi exatamente isso. Sempre que fazia uma operação, tinha que passar pelo calvário todo: andar de muletas, tirar pontos, drenar líquidos e inflamações, fazer massagens para descolar os tecidos moles e, a partir daí, fazer a fisioterapia.
> Quantas horas por dia?
Eram muitas, muitas. Todos os dias, das oito da manhã até à uma da tarde. E isto só nas pernas. Depois, durante a tarde, eram mais não sei quantas horas a tratar do resto do corpo. Acho que passava mais horas nessas tarefas de recuperação do que quando estava a treinar.
> Só que, neste caso, era treinar mas sem ver resultados. Como é que isso se suporta mentalmente?
Esse é que é o verdadeiro desgaste. O problema nem é tanto as seis operações em quatro anos, mas os passos intermédios, o sentir que se está a recuperar bem e, quando se começa já a ver resultados… aparece um novo problema e uma nova desilusão. No fundo, eu tive que recomeçar de novo seis vezes.
> Chegou a pensar desistir?
[Pausa.] Desistir, desistir mesmo, não… mas houve momentos em que me senti muito em baixo, desgastado com isto tudo, sem a força de lutar que sempre tinha tido. Comecei a ter dúvidas, a questionar se valia a pena sofrer tanto se só ia acumulando desilusões umas a seguir às outras.
> E a que é que uma pessoa se agarra nesses momentos para continuar a tentar?
O que me fez continuar foi a minha paixão pelo atletismo. Só não desisti porque amo o que faço. E eu só queria ter a oportunidade de voltar a fazer aquilo que mais gostava, sem dores, sem qualquer tipo de problema. Voltar a treinar foi a minha maior alegria. Treinar, correr, sentir o vento a bater-me na cara, fazer saltos, bons ou maus. Não pensava sequer na competição…
> Era como voltar a ter 15 anos?
Sim, isso mesmo. E ouvir outra vez o meu treinador a dizer: diverte-te, porque é isso que interessa, vamos devagar, não penses em marcas, não sintas pressão.
> Como nos velhos tempos… Mais uma vez ?foi fundamental o papel de João Ganço, ?o treinador de sempre?
Tanto ele como eu precisamos de sentir o prazer puro do atletismo. A pressão dos resultados ou o dinheiro, só por si, não me teriam dado a força suficiente para vencer as adversidades e voltar.
> Mas a verdade é que o Nelson é, digamos, uma espécie de trabalhador precário: ?o que ganha depende dos resultados que alcança. E, nesse aspeto, também houve prejuízos?
Sim, sem dúvida. Houve muitas marcas que me apoiavam e cujos responsáveis deixaram de acreditar em mim. Tudo bem, não guardo rancores, cada um seguiu o seu caminho… Felizmente, a Adidas e o Benfica nunca deixaram de me apoiar, o que acabou por me dar uma certa estabilidade e permitiu-me continuar a lutar por aquilo que todos os outros duvidavam.
> Havia muitos que o achavam acabado?
Alguns afastaram-se de mim porque me julgavam acabado. Muitos pensaram que eu nunca mais iria conseguir lutar pelas medalhas. Para muita gente, eu tinha-me tornado apenas num atleta mediano.
> Como foi ganhar agora esta medalha, no Europeu de Praga, sentindo tanta desconfiança à volta?
As coisas acabaram por acontecer de uma forma engraçada. Eu cheguei ao Europeu como favorito, mas como não fiz a melhor marca na qualificação, começaram logo a dizer que eu não tinha impressionado. Na final, dei a resposta. Mas queria mais. Terminei com 17,21m, mas sinto que, neste momento, valho entre os 17,60m e os 17,70m.
> Isso quer dizer que ainda continua a sonhar com o salto dos 18 metros?
Sem dúvida. Esse é o meu grande objetivo. Eu sei que há muita gente que duvida que eu consiga alcançar essa marca, mas vamos falar mais tarde. Até lá, preciso de mais provas, de mais ritmo competitivo ao alto nível. Foi para isso que eu voltei.