Sinto-me…” Uma pausa ressoa ao telefone. A voz serena e dotada daquele particular timbre de Eunice Muñoz, ainda debilitada pela doença que lhe atraiçoou a tiroide, procura vocábulos que permitam condensar uma vida extraordinária numa resposta curta sobre o que significa estar a cumprir oito décadas dedicadas à nobilíssima arte da representação. “Nem sei como dizer-lhe. É difícil. São muitos anos, muitas fases da minha vida, muito trabalho, muita luta; mas tenho mais felicidades do que tristezas”, declara a atriz, de 92 anos, à VISÃO. Deste lado, temos a deferência reservada a quem pode reclamar, sem falsas modéstias, um rol de epítetos superlativos: Eunice Muñoz é um monumento nacional, atriz excelentíssima, matriarca dos palcos que milhões de portugueses reconhecem. Mas poucos recordarão que ela fez a sua estreia em 1941, aos 12 anos de idade, nas tábuas do Teatro Nacional D. Maria II. E será por lá que também se cumprirão as comemorações desta vida dedicada ao teatro, cinema, televisão e poesia – um desejo da própria Eunice.
A dominar estas celebrações de oito décadas de carreira, há uma peça nova: A Margem do Tempo que será protagonizada pela própria Eunice Muñoz, que assim regressa aos palcos de onde estava ausente desde 2011, quando interpretou O Cerco a Leningrado, da autoria de José Sanchis Sinisterra, no Auditório Municipal Eunice Muñoz, em Oeiras (em 2012, devido a uma queda no Teatro Nacional D. Maria II, seria cancelada a peça que iria ser por si protagonizada, O Comboio da Madrugada, de Tennessee Williams). Ao lado de Eunice, vai estar a sua neta, a também atriz Lídia Muñoz. É esta quem explica o projeto partilhado: “Escolhemos esta peça incrível de Franz Xaver Kroetz, em que não existe texto, apenas didascálias, com encenação de Sérgio Moura Afonso. Concebida para duas atrizes, é, de certa forma, uma passagem de testemunho. Andámos meses à procura deste texto e, quando o localizámos, confirmámos que era muitíssimo bom. E é difícil aguentar uma hora de espetáculo sem falar…”
O dramaturgo alemão Franz Xaver Kroetz, que trabalhou com Fassbinder e foi galardoado com o Prémio Brecht 1995, autor de mais de quarenta peças e guiões para televisão, tem uma forte presença nos palcos na Alemanha e na França. “A peça originalmente intitulada Wunschkonzert, foi traduzida para português como Música para si, mas, na nossa versão, escolhemos usar o título A Margem do Tempo”, sublinha Lídia Muñoz. Escrito em 1971, é um monólogo marcante sobre a solidão e o sentido esvaziado da vida nas sociedades contemporâneas dominadas pelo capitalismo. A protagonista é a senhora Rasch: uma mulher de meia idade, trabalhadora fabril e solitária, que, regressada do emprego, arruma casa, faz pequenos afazeres, escuta o seu programa de rádio favorito (chamado Música para si), e decide suicidar-se. Em Portugal, Música para si foi levada à cena em várias ocasiões: Isabel de Castro subiu ao palco do extinto Teatro da Cornucópia, numa encenação de Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra, em 1978. Em 2008, foi a vez de Eugénia Bettencourt interpretar a senhora Rasch no Teatro Municipal Mirita Casimiro (no âmbito da exposição Isabel de Castro – A actriz, o rosto); em 2009, Ana Bustorff subiu à cena na Companhia de Teatro de Braga, com a peça a assumir o título Concerto à la carte.
Música para si foi ainda transformada em filme pela realizadora Solveig Nordlund, com Isabel de Castro a assumir novamente a personagem. A peça foi ainda publicada em livro, na compilação Alta Áustria e outras peças, de Franz Xaver Kroetz, editada em 2014 na coleção Livrinhos do Teatro da recém-desaparecida editora Livros Cotovia. Mas a relevância desta mulher que não diz uma palavra em palco, entregue a um desespero manso, permanece. E Eunice Muñoz vai agora fazê-la sua. A estreia de A Margem do Tempo está prevista para março, no Auditório Municipal Eunice Muñoz, em Oeiras (assim permita a pandemia), a que se seguirá uma “pequena digressão internacional”, agendada para maio.
No Teatro Nacional D. Maria II, os 80 anos de carreira serão comemorados em novembro, em dias próximos de 28 de novembro para “assinalar o valor simbólico da estreia de Eunice nessa data”, diz à VISÃO o diretor artístico agora reconduzido, Tiago Rodrigues. Além do espetáculo A Margem do Tempo, a programação contemplará outras atividades que “acompanham bem o trajeto generoso e corajoso de Eunice Muñoz”, cumprem a vocação de serviço público do teatro e honram a marcante relação entre a atriz e o TNDMII. A enfrentar os acertos de programação provocados por um 2020 pandémico, Tiago Rodrigues sublinha que o teatro apresentará, este ano, textos internacionais e originais portugueses. E aproveita para fazer uma homenagem: “Eunice é uma referência para as novas gerações; tem acompanhado e ajudado, terna e generosamente, os artistas mais novos.”
Nascida numa família de atores, a 30 de julho de 1928, na Amareleja, Eunice deu-se a conhecer na peça Vendaval (1941), de Virgínia Vitorino, com a companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, na casa grande do Rossio. Aluna da Escola de Teatro do Conservatório Nacional, terminou o curso com 18 valores. Trabalhou com todos os históricos do teatro nacional (Palmira Bastos, João Villaret, Vasco Santana, António Silva, Ruy de Carvalho, Glicínia Quartín..), interpretou os textos clássicos (Fedra, de Racine; A Voz Humana, de Jean Cocteau; As Criadas, de Genet; Mãe Coragem, de Brecht; A Criada Zerlina, de Hermann Broch…), abraçou papéis contemporâneos (A Maçon, de Lídia Jorge; Dúvida, de John Patrick Shanley; O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion…), fez comédia e televisão (estreou-se nas telenovelas em 1993, como D. Branca em A Banqueira do Povo), fez cinema (filmada por Leitão de Barros, Lauro António, João Botelho, Tiago Guedes…), ganhou prémios e aplausos ao longo de oitenta anos de carreira. Parabéns, Eunice Muñoz.