A ida para Londres, em 2010, foi como uma fuga, cansada da exposição mediática, dos “fotógrafos escondidos atrás de vasos”, num percurso como atriz que começou muito cedo e passou por séries televisivas populares entre os adolescentes, como Riscos e Morangos com Açúcar. Na prestigiada London Film School realizou, em 2011, o breve documentário Laundriness, que não passou despercebido ao realizador britânico Mike Leigh. “Esse filme foi muito importante no meu processo de aprendizagem”, diz Ana Rocha de Sousa, 41 anos.
Com a sua primeira longa-metragem, uma coprodução portuguesa e inglesa, Listen, trouxe seis prémios do Festival de Veneza (incluindo o auspicioso Leão do Futuro), um feito histórico para o cinema português. O filme, sobre os processos de retirada dos filhos em risco às famílias por parte da assistência social em Inglaterra, tinha estreia marcada apenas para 2021, mas a data foi antecipada e chega às salas portuguesas já no próximo dia 22. “Não tenham medo de ir ao cinema!”, apela a realizadora.
Na sua vida chegou primeiro o sonho de ser atriz ou realizadora?
Recuando à minha infância, quando era mesmo pequena, sempre quis ser atriz. Comecei no teatro, com o António Feio, mesmo muito nova… E quando tive uma participação no filme do João Botelho [O Dia dos Meus Anos, de 1992], a minha mãe percebeu que aquilo era uma coisa que eu queria mesmo a sério. Aos 17 anos, por ter estado na companhia do António Feio [Pano de Ferro], de onde saíram o Nuno Lopes, a Carla Chambel, imensos atores…, fui às audições da série Riscos e acabei por ser escolhida. Foi uma mudança da noite para o dia, aos 17 anos. Se soubesse o que sei hoje, voltaria a fazer tudo igual.
E quando pensou que gostaria de passar para o outro lado da câmara?
A realização surge quando, paralelamente ao meu trabalho de atriz, fui fazendo uma licenciatura em pintura, na Escola Superior de Belas-Artes [em Lisboa]. Aí, experimentei fazer não só pintura, mas fotografia, instalações, vídeo… E isso começou a preencher-me muito; começou a ser maior do que eu. Ao fim de não sei quantos anos, percebi que havia uma forma de juntar tudo: o cinema. Além de incluir várias artes, o cinema permitia também aquele lado conceptual e artístico de pensar um projeto com princípio, meio e fim, que foi a grande aprendizagem que tive nas Belas-Artes.
Quando está a fazer filmes, primeiro curtas e agora esta longa, Listen, sente-se uma atriz que está a experimentar ser realizadora?
Não. Embora eu realize, sempre, com uma perspetiva virada para o trabalho dos atores. Por ter sido atriz, certamente – mas não gosto de falar no passado, isso fica e morre connosco… Essa minha experiência faz com que, ao estruturar um projeto, eu pense como quem já esteve do outro lado, é verdade. Quando estou a idealizar e a escrever um filme, a interpretação, o trabalho dos atores, é o que guia o meu caminho, é mesmo o mais importante. São projetos guiados por personagens, por vidas, por pessoas, por vivências que ali estão… Mesmo que tudo falhe à minha volta, há uma coisa que tem de estar lá: a representação, a interpretação. Mas isso não faz de mim uma atriz atrás da câmara, não sinto nada isso. Poderia ter estas opções no meu cinema mesmo sem ter sido atriz.
Como surgiu a sua ida para a London Film School, em 2010?
Candidatei-me a várias escolas em Londres, e uma em Praga, e acabei por entrar em todas… Mas a minha preferida era a London Film School. Claro que essa opção obrigou-me a vender quase tudo e a investir o que, de forma tão certinha, eu tinha juntado a partir do meu trabalho em televisão. Tenho muito que agradecer à televisão e vou fazê-lo sempre. Sou muito grata a tudo o que aprendi na televisão, a quem me dirigiu e me ensinou imenso. Lutarei sempre por defender essas pessoas. É o mínimo que posso fazer. Há ideias muito generalizadas sobre o assunto, com algum sentido ou sem sentido nenhum, e há muitos mal-entendidos. Há muita gente, com muito valor, a fazer das tripas coração para conseguir fazer coisas melhores, gente com muito conhecimento e muito mérito na televisão. Quando as coisas se complicam e parece que tudo cai por terra, ajuda-me muito o lado prático que aprendi na televisão, a necessidade de resolver problemas rapidamente e de, muitas vezes, transformar o menos em mais.
Não pensou em inscrever-se na Escola de Cinema aqui em Lisboa?
Não… Até porque ninguém me ia querer lá, essa é a verdade! [Risos.] Eu só tinha uma hipótese: ir. E a minha vida mudou radicalmente. Passou de uma grande estabilidade, com uma carreira sólida em curso, para dar um passo atrás em direção a uma adolescência que não tive, porque comecei a trabalhar muito cedo. Foi uma sensação fascinante e, ao mesmo tempo, assustadora. Mas quando fui, queria mesmo esquecer essa coisa de andar na rua e… Bom, eu não era propriamente o Ronaldo, mas houve uma série de coisas que começaram a incomodar-me. Vivi a televisão numa fase em que ainda não havia Instagrams nem Facebooks, mas havia fotógrafos escondidos atrás de vasos, passei por isso muitas vezes e não é nenhuma brincadeira… Senti que isso tudo começou a invadir a minha vida de uma maneira…
A ida para Londres foi, também, uma fuga, então…
Sim, foi uma fuga. Porque esse lado da vida pública de um ator – de que, muitas vezes, as pessoas se esquecem – tornou-se muito agressivo e nefasto para mim, de uma forma visceral mesmo. Estar todas as semanas em páginas de revistas que falavam de coisas que não existiam… E eu achava que não merecia isso. Em Londres, deixei esses dias para trás, numa espécie de anonimato paradisíaco. Foi um grande corte. E a London Film School significou ainda mais do que eu ia à procura. Fez-me avançar anos-luz. Percebi que não é por acaso que é considerada uma das melhores escolas do mundo.
Há muito de britânico neste seu filme. O Mike Leigh e o Ken Loach são influências claras?
Toda a gente tem feito essas referências… A verdade é que não são. Mas também é preciso dizer que é impossível passar por aquela escola e sair isento das referências do realismo social britânico. Primeiro pode-se estranhar, mas depois entranha-se. E eu ali encontrei uma casa, como já tinha acontecido nas Belas-Artes, em Lisboa. Há vozes que ficam desses lugares para toda a vida, e guiam-nos ao longo dos nossos processos criativos e projetos, sejam vozes amigáveis ou de conflito.
Mas não assume, então, essa influência do realismo social britânico?
Não. Porque o meu filme não partiu daí, de todo. Já estava em Lisboa e já tinha nascido a minha filha [Amália nasceu em 2014] quando vi aquela notícia sobre uma mãe portuguesa, em Inglaterra, a quem a Segurança Social retirou o filho. Isso fez-me querer saber mais sobre o tema. E sentia que tinha chegado o meu momento de fazer alguma coisa; recomeçar, depois duma paragem de que precisei quando voltei para Portugal. Mas depois de todo o investimento que tinha feito, não podia ficar parada. No início de 2016 já tinha a minha filha num braço e o computador no outro… Vi essa notícia na televisão. Uns tempos depois, a VISÃO fez um artigo desenvolvido sobre o assunto [foi o tema de capa do número 1209, de 5 de maio de 2016]. Chamou-me a atenção, até pela minha vivência em Inglaterra e, provavelmente, por ter sido mãe há pouco tempo… Procurei mais sobre o tema. O filme, aliás, não é sobre aquele caso em particular da primeira notícia. Tinha de ter a certeza de que havia ali um sentido, alguma coisa, não podia partir para fora de pé com uma temática destas… E, quando entendi melhor as dinâmicas todas, percebi que o assunto era mesmo muito grave. No meu filme tive muito cuidado em retratar bem e respeitar os dois lados. Mas quero dizer que a realidade é, profunda e violentamente, pior do que aquilo que retrato ali. A principal razão para não ter mostrado a realidade como ela é foi porque as pessoas dificilmente iam acreditar. Espero que o filme levante muitas questões a quem o vê – não apresenta soluções, não é essa a minha missão – e peço, então, que as pessoas procurem informação, que se informem. É um tema muito polémico, e até abafado, mas tem havido trabalhos jornalísticos sérios sobre o assunto. No meu filme nem chego a abordar a questão do tráfico de crianças. E isso não é ficção.
Acabou por fazer um grande trabalho prévio de investigação…
Sim. Mas é muito difícil obter provas, ainda para mais para uma pessoa que não é jornalista… Mas basta estudar a lei para chegarmos a algumas conclusões. As famílias nem sempre são inocentes, como é óbvio, e isso percebe-se muito rápido. E na sua missão como assistentes sociais, há muita gente a fazer o bem pelo bem. Mas estes processos envolvem dinheiro [subsídios às famílias que adotam crianças retiradas às famílias pela Segurança Social] e não tinham de envolver. E, sobretudo, há uma formulação na lei que me deixa muitas reservas: as crianças devem ser retiradas ao mínimo sinal de risco futuro de danos emocionais ou físicos… O que são exatamente esses riscos de danos futuros? E são as assistentes sociais que os avaliam? Eu sou filha de um juiz, sei que factos são factos, e quando entramos no campo da avaliação do futuro parece-me complicado…
No filme não há maniqueísmos, bons e maus, a preto e branco, mas há um sentido de denúncia?
Claro que há. Um filme sobre este assunto tem de fazer perguntas: o que se passa aqui? O que é isto? Somos pessoas ou não somos pessoas?
Nesse sentido, é um filme político?
[Pausa] Odeio responder a essa pergunta… Podia ser um filme muito mais ativista e político. Não gosto que seja catalogado dessa maneira porque traz logo muitos preconceitos associados. Mais do que um filme político, é um filme de pessoas, para pessoas e sobre pessoas.
Parece-me uma bela definição de política…
Só falo na presença do meu advogado [risos]! Bom… Acho que é um filme que, de uma forma honesta e sincera, pretende ver todos os lados da questão. Não significa que eu não tome uma posição, e faço-o de uma maneira muito clara: pretendo defender a inocência. E a inocência também existe quando não parece, mesmo quando tudo aponta no sentido contrário. Talvez seja essa a minha missão enquanto pessoa, mulher, realizadora, artista: a denúncia e a preocupação com a justiça, tentando ver os lados todos. Provavelmente, isso vem do meu pai… Acho que a mesma realidade, os mesmos factos, pode conter várias verdades, todos podem ter a sua razão. E tentei mostrar isso com este filme. A Segurança Social tem razão, obviamente; no entanto, na sua razão, comete erros. Os pais também têm razão e, na sua razão, também erram. Na vida não existem bons e maus… Devo dizer que foi difícil concretizar este filme. Em Portugal, tive o apoio fundamental do Rodrigo Areias [da produtora Bando à Parte], mas o passo seguinte, conseguir uma produtora inglesa, fundamental para este projeto, foi particularmente duro: afinal, era uma realizadora portuguesa, a fazer um primeiro filme e a apontar o dedo a uma realidade britânica! Fizeram de tudo para que desistíssemos, e não era por não acreditarem no projeto. A verdade é que este era um filme inconveniente. Mas eu adoro ser inconveniente e vou ser muitas vezes inconveniente! Ainda bem que não desistimos.
Quando chegou ao Festival de Veneza tinha, sinceramente, a expectativa de sair de lá com algum prémio?
Cito Pessoa: tenho em mim todos os sonhos do mundo! [Risos.] Eu acredito muito no que faço, contra ventos e marés. De outra forma tinha ficado pelo caminho às primeiras adversidades… Mas uma coisa é querermos imenso, outra… A competição em Veneza é, sempre, de altíssimo nível, não é?
E foram seis prémios…
Sim. E senti que, ali, era só uma pessoa com um filme projetado numa tela. Aliás, já estava em Roma, onde tinha perdido o voo de ligação para Lisboa, quando recebi um email a anunciar que tinha ganho um Bisato d’Oro [à letra, “enguia de ouro”, prémio paralelo do Festival de Veneza com um júri constituído por críticos] para melhor filme. Voltei para Veneza, claro, e já achava muito ter recebido esse prémio! Deixou-me muito feliz, depois, o facto de um dos prémios oficiais [o Leão do Futuro], anunciado para grande surpresa minha na cerimónia, ser uma maneira de me dizerem que querem ver mais coisas feitas por mim. Cada um dos prémios foi muito importante. São seis avaliações totalmente distintas umas das outras, com objetivos e júris diferentes, a premiarem o filme a partir de perspetivas diversas. Listen foi premiado pelos críticos mais independentes e mais focados na relevância do cinema mas também foi distinguido pelo seu impacto social ou pela Hollywood Foreign Press Association… Para mim, essa diversidade no reconhecimento é, por si só, como um sétimo prémio. E ainda houve um oitavo, que foi chegar a Portugal e sentir um abraço imenso de tantos portugueses.
Desvalorizou aquela polémica, em 2015, provocada por o seu nome, de uma ex-atriz de séries de televisão para adolescentes, ter sido anunciado como parte de um júri do ICA, ou isso marcou-a?
Hoje, tenho vontade de responder “qual polémica?” e seguir em frente. Não o faço porque é importante, para mim já não mas para outras pessoas, no sentido de as ajudar a não desistirem, a tentarem sempre… E acho que não é uma coisa deste meio, do cinema e das artes, é uma coisa da vida. O preconceito faz parte da vida. Se os preconceitos que me atingem, e com os quais lido, existem por ter um palmo de cara e 12 anos de trabalho em televisão, vivo bem com isso… Há outros mais agressivos, tristes e até estúpidos. Houve deslealdades nesse momento, pessoas que tinham acesso a todas as informações e optaram por retirar algumas do contexto. Fui aprendendo na vida que quando o adversário é desleal, não vale a pena tentar torná-lo leal, porque isso não vai acontecer. Só há um caminho: desligar e seguir. Mas na altura quis, antes disso, mostrar a falta de lealdade do outro lado… Muita gente aconselhou-me a não o fazer, mas fiz. Não podia admitir que me catalogassem de uma certa forma, desleal, depois de tudo o que fiz e do percurso que já tinha percorrido. Expliquei, com todas as letras, numa carta aberta, a quem de direito, a realidade: sim, era o rosto de certos projetos da televisão, com todo o gosto, e era também a pessoa licenciada na Escola de Belas-Artes e com um mestrado numa das melhores escolas de cinema do mundo. Na altura, incomodou-me… Olhando, hoje, à distância, para esse episódio, até compreendo bem a facilidade que há em acontecerem equívocos simples que podem tomar proporções disparatadas. Genuinamente, não sou nada de guardar rancores, até porque eu também erro, claro, e, no fundo, todos temos preconceitos. Prefiro sempre que a minha história seja de esperança.