Pela manhã, a notícia, assim, de chofre: Luís Sepúlveda morreu aos 70 anos, no Hospital Universitário Central das Astúrias, vítima de Covid-19. Lutava há mais de mês e meio contra a doença, após a sua passagem por Portugal, onde participou no festival literário Correntes de Escritas na Póvoa de Varzim. O autor chileno de O Velho que Lia Romances de Amor sentiu-se mal a partir do dia 25 de fevereiro e foi-lhe depois diagnosticada uma pneumonia aguda.
Apesar de algumas melhorias, o seu estado deteriorou-se nas últimas semanas. Luís Sepúlveda já não respondia aos tratamentos sucessivos nem aos antibióticos e à pneumonia sucederam-se outras patologias e problemas que afetaram os seus órgãos vitais.
Quando a família confirmou o óbito, pela manhã de quinta-feira, 16, muitos admiradores talvez até já o imaginassem em casa, a recuperar do susto. Mas o susto era, afinal, a notícia que ainda estava para vir.
É de mim ou sentimos que o cerco da pandemia também se aperta quando nos morre alguém que se tornou familiar por tudo aquilo que escreveu? Em 2003, rumei a Gijón, nas Astúrias, na companhia da fotojornalista Lucília Monteiro para entrevistar Luís Sepúlveda. Era já um escritor consagrado, premiado e amado por diferentes gerações, uma espécie de Tintim chileno. Sepúlveda preparava-se para lançar O General e o Juiz, onde revisitava a ditadura de Pinochet e as suas próprias memórias. Durante uma tarde em sua casa, a conversa a pretexto desse livro tornou-se quase autobiográfica. Um versão curta dessa entrevista foi publicada na VISÃO. Mas o longo diálogo dessa tarde, com cigarros e vinho tinto por combustível, só seria editado um pouco mais tarde, num folheto destacável incluído no seu livro Uma História Suja (edições ASA).
Se recuperámos parte dessa conversa, tantos anos volvidos, é apenas porque nela Sepúlveda revelou facetas desconhecidas do seu percurso pessoal, político e literário, algumas delas associadas, de forma arrepiante, aos tempos atuais. Através das suas palavras percebemos, pois, que muitos temas e interrogações continuam vivos. Como ele continuará também em milhões de leitores sem fronteiras nem idades.
Quando Lennon venceu Lenine com empadas e vinho tinto
Revista Visão / Edições Asa (2003/2004)
Foi à mesa de uma sidreria que Luís Sepúlveda soube de que lado estava no mundo. Nas Astúrias, no Norte de Espanha, entrou para beber um copo e acabou por fazer amigos à roda de umas garrafas. Entre uma sidra e duas de conversa, os indígenas fatiaram logo ali as suas verdades absolutas: “Aqui dividimos a humanidade assim: ou se é um filho da puta ou se é dos nossos”.
O escritor chileno, de 55 anos, é dos deles. Vagueava pela região com uma casa de quatro rodas às costas quando se perdeu no caminho.
Na verdade, reencontrou-se. “Foi uma coisa mágica. Quando nasceu o dia e desapareceu a neve senti-me na Patagónia”. Em casa, portanto. Vieram à memória aromas de infância, as romarias de segunda-feira pela mão dos avós ao Centro Asturiano de Santiago do Chile, onde se fazia uma deliciosa fabada e se cozinhavam as conspirações dessa época. “Não percas o teu tempo, anda viver para cá”, disseram-lhe os asturianos. E alguns anos depois chamaram-lhe seu.
Depois do exílio, dos tempos vividos na Amazónia equatoriana com os índios shuar, da militância no movimento Greenpeace, e de vários anos estacionado em Paris e Hamburgo, Sepúlveda escolheu Gijón para folgar de uma vida de trota mundos. Descobriu uma região sofrida e pessoas espontâneas. Ficou. O escritor latino-americano mais vendido na Europa depois de Gabriel Garcia Márquez vive num aprazível chalet, a dez minutos da praia, onde a piscina é a única concessão ao luxo. Nesta casa aconchega as suas memórias e não há sequer um objeto sem simbolismo, sem uma história para contar. No pátio, o visitante dá de caras com uma velha carrinha Ford, de 1949, ano de nascimento de Sepúlveda. “Ela funciona e eu também”. No alpendre, um busto de Garibaldi, revolucionário italiano, um dos primeiros guerrilheiros da América Latina, perdedor de todas as batalhas onde entrou. Ao escritor, seduzem-no as histórias de gente derrotada, marginal, dos que sempre saem a perder no caminho para as vitórias que a alma e o coração pedem.
Entra-se na casa e percebe-se que nas estantes, nas paredes…tudo fala. Há um canto para os livros dos amigos. Fotos deles, do peludo Zorbas, protagonista da História da Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar, e um retrato emoldurado de Fernando Assis Pacheco. Uma velha máquina de escrever no chão, um armário com todas as suas obras traduzidas em mais de 40 idiomas, onde repousa um pedaço do muro de Berlim, e uma guitarra, “porque é tradição. Há sempre um amigo que aparece e toca”. Desvenda-se aos nossos olhos um pouco do mundo de Sepúlveda, mas nem tudo os olhos veem. “Esta é a fotografia do meu casamento. Parece inocente, não é? A verdade é que nesse dia a minha mulher já ia grávida e eu tinha uma colt 45 debaixo do casaco”.
A seu lado, sempre, Cármen Yanez, poetisa, de quem se separou em 1973 e reencontrou vinte anos depois, bela história de amor à qual falta um livro. Nas férias, recebe as visitas dos seis filhos, os dele, os dela, os deles, e dos netos. Vindos do Equador, da Alemanha e da Suécia. Uma autêntica “torre de babel” em família, ao jantar. E de comum, um profundo desprezo pela palavra Pátria. “Essa palavra devia desaparecer. Um patriota exclui os demais, ignora o valor do outro. O meu lugar no mundo é onde eu quiser”.
Mas não é ainda tempo para o descanso do guerreiro. Nem podia ser. O homem barbudo, de óculos redondos, calções e sandálias, que nos abre placidamente a portinhola da cerca de sua casa, é um resistente. As desventuras de homens e mulheres sem biografia perseguem-no, dão-lhe razões para continuar a contar as histórias de quem não vem no mapa ou foi embalsamado na amnésia histórica. Agora, com o lançamento do seu último livro em vários países – O General e o Juiz, edições ASA – Sepúlveda mantém o registo, mas afia os dentes. A obra é uma homenagem a homens como Salvador Allende, presidente socialista do governo popular que liderou o Chile entre 1970 e 1973. Mas é, sobretudo, um ajuste de contas com a memória e também “com alguns canalhas que tiraram a máscara e mostraram a sua verdadeira face”. É um tributo a uma geração, a sua, que pagou um alto preço por sonhar um Chile sem amos. E sem pieguices. “Não somos vítimas, nem coitadinhos. Não precisamos de caridade cristã. Tentamos mudar a sociedade e o mundo. E somos orgulhosamente culpados disso”.
Onde estava no 11 de Setembro de 1973?
Estava incumbido pelo meu partido, o Partido Socialista do Chile, de defender uma infraestrutura que fornecia água potável a toda a cidade de Santiago e que, entretanto, tinham tentado dinamitar, envenenar. Éramos um grupo de oito companheiros e durante vários meses, dia e noite, estivemos a vigiar o terreno. Foi o meu posto de combate nesse dia.
E o resto do dia, como o viveu?
Todos sabíamos que havia um golpe militar em marcha, só não sabíamos quando ia acontecer. O que nunca imaginamos é que fosse tão cruel, tão terrível. Nós, os da esquerda chilena, acreditávamos que havia uma certa decência nos militares chilenos, que iam respeitar os prisioneiros. Mas isso não aconteceu. Declararam guerra a um povo desarmado. O poder de fogo que tinham as organizações armadas chilenas era ridículo. Para dar um exemplo, as oito pessoas que defendiam a planta que dava água à cidade de Santiago tinham duas pistolas, uma espingarda de caça e mais nada. E das pistolas, só uma é que funcionava.
A nossa defesa era uma defesa moral. Esgrimíamos argumentos, ideias e até gostávamos do facto do povo chileno não ter grande simpatia pelo resto do mundo socialista. O que queríamos construir era uma revolução à chilena, mais próxima de John Lennon do que Lenine. Não queríamos fazer uma segunda Cuba, queríamos um socialismo à chilena, de empadas e vinho tinto…
Ou seja, muito próximo das tradições populares…
Sim, sim. O Chile tinha um movimento popular muito rico e foi especialmente favorecido pela intelectualidade trabalhadora emigrante que chegou ao País, vinda especialmente do centro da Europa. Foram para a América para construir o canal do Panamá e depois, como não puderam regressar, foram mais para o Sul para trabalhar nas minas de salitre do deserto de Atacama. Quando se inventou o fertilizante sintético, as minas foram parar ao inferno. E Santiago, que tinha então um milhão de habitantes, recebeu dois milhões de operários sem trabalho. Toda a gente dizia que ia ser o caos, que ia ser terrível, mas aconteceu exatamente o contrário. A classe trabalhadora chilena organizou-se facilmente e fundou a primeira universidade anarquista do mundo, um dos meus avós foi um dos fundadores. Nessa universidade, especializaram-se trabalhadores de todo o continente americano. Sobretudo formavam-se técnicos em todas as áreas que tinham a ver com a Imprensa. A palavra escrita sempre foi um grande amor dos anarquistas, só é livre o que é dono da palavra impressa, não apenas o que tem opinião. As características da revolução chilena, soube Joan Baez defini-las muito bem: dizia ela que o professor revolucionário chileno era um professor hippie, mas com uma consciência social muito forte.
Que mescla de sentimentos tem em relação ao Chile, trinta anos depois do golpe de Estado de Pinochet?
São sentimentos bastante contraditórios. Ainda um destes dias estava a falar com a minha companheira, que esteve em Vila Grimaldi, um dos piores centros de tortura chileno, e dizíamos que aprendemos a viver com a certeza de ter perdido um país. O Chile que nós conhecíamos não existe mais. Dezasseis anos de ditadura geraram uma transformação, não só política e ideológica, como física. E na mentalidade das pessoas. Desapareceu o velho país solidário e em seu lugar nasceu um País de merda, personalista, individualista. Esse país, que teve um dos índices mais altos de leitura da América-Latina, é agora o último. Esse País, que não tinha analfabetos, tem hoje um analfabetismo atroz. Foi o primeiro país da América-Latina e o segundo no mundo a consagrar às mulheres o direito de voto, mas agora a participação das mulheres na política está terrivelmente segregada. Há todo um retrocesso que torna o país irreconhecível.
Há evidentemente um sentimento de uma grande derrota, mas é difícil sentires-te derrotado quando sabes que tu tinhas razão. Estamos plenamente convencidos que o nosso objetivo de transformar a sociedade, de transformar o mundo, era justo. Queríamos lançar as bases para uma transição pacífica para o socialismo, não decretávamos o socialismo. O modelo não estava em Cuba nem na União Soviética, estava mais na Suécia. Os mil dias do governo popular foram mil dias de festa.
Foram os melhores da sua vida?
Sim, sem dúvida. Mesmo com toda a dureza, com todos os inconvenientes que havia. A nós competiu-nos dirigir politicamente um processo, mas éramos os que passavam mais dificuldades. No lugar onde vivíamos, nos arredores de Santiago, a minha mulher encarregou-se muitas vezes de repartir o pouco que tínhamos: o sal, o açúcar, o azeite. Nós ficávamos sempre para último. E quase sempre sem nada. Mas tínhamos a satisfação de dizer que estávamos a fazer algo importante, que estávamos a cumprir com algo, e medíamos todos os dias os passos das coisas que íamos conquistando. E foram de facto os melhores dias das nossas vidas, os mais alegres. Era jovem, estava a viver na plenitude dos meus ideais, assumia tarefas de responsabilidade, que mais queria? Um dos meus grandes orgulhos foi ter feito parte da guarda pessoal do presidente Salvador Allende. Mas há coisas que o tempo e a distância nos fazem medir melhor. Há pouco tempo estive com um velho dirigente camponês chileno, já não o via há 20 anos e encontrei-o por casualidade em Paris. Falávamos de tudo isto e ele disse-me: “Sabes, a grande satisfação que tenho é que, pela primeira vez na história do Chile, eu e o meu pai, camponeses, nos atrevemos a olhar o patrão nos olhos e dissemos-lhe: você é um filho da puta! Esta satisfação perdura para sempre”, disse-me ele.
Que memórias guarda de Allende?
Era um homem muito especial. Era um tipo baixito, dava-me pelo peito, e tinha um grande e ácido sentido de humor. Tinha uma capacidade de rir-se de si próprio assombrosa. Recordo-me de um dia em que lhe abri a porta do carro, olhou-me de cima a baixo e disse-me: “Como se atreve a ser mais alto que o presidente?”. Rimo-nos e eu disse-lhe: “Ok, presidente, prometo que amanhã venho mais pequenino”. Era um trabalhador incansável, o seu dia começava às sete da manhã e só terminava à meia-noite, uma da manhã. Era uma pessoa muito humana. Às vezes, virava-se para a sua guarda pessoal e dizia: “Vamos comer gelados”. E era ver uma caravana de três automóveis dirigir-se à melhor geladaria de Santiago onde comíamos gelados e falávamos das coisas que tinham ocorrido durante o dia. Estava sempre atento a tudo. Quando, por exemplo, chegava aos seus ouvidos que algum companheiro, por muito insignificante que fosse o seu cargo, tinha um qualquer problema de saúde, Allende, que era médico, pegava na sua maleta e dizia: “Vamos lá ver o que se passa…”. Tinha uma cultura espantosa, amante do cinema…
Das mulheres, do vinho tinto…
Das mulheres, todas. Todas! Ele costumava dizer que a mulher mais bela era a do próximo. Era um grande sedutor, de muito engenho. Era um valente, também. Talvez um dos políticos de valor incalculável que o Chile teve. Tinha uma paixão enorme pela aventura, com um olhar muito certeiro e ácido sobre o que se estava a passar no mundo. Tinha um só amigo no mundo que era Alexsander Dubcek, o dirigente checo. Dubcek tinha caído em desgraça, trabalhava num jardim público de Praga e esse era o seu castigo por ter permitido o levantamento popular da Primavera de Praga. Sem se preocupar com as críticas internacionais que recebia, Allende telefonava-lhe todas as semanas e convidou-o a visitar o Chile em muitas ocasiões. Também tinha laços de amizade com Fidel Castro, mas a verdadeira amizade era com Dubcek.
A sua geração foi uma geração derrotada. Mas depreendo que, para si, não foi uma geração perdida…
De maneira nenhuma. Perdemos uma grande batalha, isso está claro. Mas fizemo-lo com a intenção muito honesta de transformar o Chile e o mundo. Algo ficou, algo transformámos. Mas o preço que se pagou por isso foi muito alto: os mortos, os desaparecidos, os que foram destruídos pelo exílio ou pela miséria. As consequências da ditadura ainda se fazem sentir. Há gente que perdeu todas as referências vitais e alguns suicidam-se. O Chile que eles ajudaram a construir é outro país, onde é quase impossível encontrares o teu espaço, o teu lugar. Mas aquela foi também uma época em que nos foi dado presenciar mudanças velozes mesmo no meio da ditadura. Estava na prisão quando foi a Revolução dos Cravos em Portugal. Um dia chegou lá um militar, muito assustado, e disse-me: “Vocês já ganharam” e eu perguntei: “Onde?”. “Em Portugal”, disse-me ele. “Coño, caiu Salazar?”, perguntei. Não queria acreditar. E o mesmo se passou quando Franco morreu. Estávamos numa das piores prisões do Chile, em Temuco.
Essas notícias davam esperança?
Sim, devemos alegrar-nos sempre que morre um hijo de puta. Então no caso de filhos da puta tão importantes, dá-te mais otimismo (risos). Mas nunca pensámos que a ditadura durasse tanto. As ditaduras duram sempre mais do que deviam em todas as partes…
A dita dura…
Exatamente (risos). Então, o tempo dessa ditadura foi passando e é duro saber que houve gente que não pôde suportá-lo, que esse tempo não foi deles, antes lhes foi imposto à força. Por tudo isto, a minha relação com o país foi sempre de amor e ódio. Vou o menos que posso ao Chile porque, de cada vez que lá ponho os pés, tenho problemas. Digo sempre o que penso e, apesar de ser uma referência cultural para o país, para a cultura oficial não existo.
Costuma dizer que a inveja poderia ser o principal produto de exportação do Chile…
Sim, se a exportassem seriam ricos. Além disso, é um país onde existe uma discussão quase surrealista. Quando falas, por exemplo, da necessidade de defender os direitos humanos, respondem-te “pois sim, isso está muito bem, mas desde que não se ponha em causa o modelo económico”. Há três meses houve um despedimento coletivo no diário La Nación, que é o jornal oficial do governo, como represália contra uma greve dos jornalistas em solidariedade com uma colega a quem censuraram um artigo onde se falava da corrupção dos juízes chilenos. E quando tu assinas um documento de solidariedade para com os trabalhadores porque defendes a liberdade de expressão, respondem-te que “liberdade de expressão, sim, mas só até certo ponto”. Até certo ponto? Isso não existe! A liberdade existe ou não.
Então o Chile também é uma democracia, mas só até certo ponto…
O Chile é um país de gente simples. A burguesia chilena, inclusive, não fazia ostentação, as mulheres não andavam com peles nem diamantes. A riqueza manifestava-se noutras coisas. Era, por exemplo, uma burguesia de um certo bom gosto. Pagava a arquitetos europeus para que fossem ao Chile fazer as suas mansões, não copiavam os norte-americanos. Quanto mais europeu, mais refinado era. E manifestavam assim a sua riqueza. Com a ditadura impôs-se algo que é o ponto de partida do politicamente correto. Nasceu a expressão “tipo isto, tipo aquilo”. Começaram a comer um peixe de merda para substituir o salmão, porque o salmão era para exportação. O peixe chamava-se culengue e era etiquetado dizendo “tipo salmão”, ou seja, como se fosse salmão. Começaram a construir umas casas de merda que, no inverno, tinham de cobrir com plásticos, pois a água entrava por todos os lados…Mas chamavam-lhes casas “tipo chalet inglês” ou “tipo chalet suiço”. Hombre, não eram casas, nem chalets, nem nada…Por isso, digo que temos uma democracia tipo ditadura (risos). E a liberdade é uma liberdade tipo…censura.
Porque diz que a amnésia é um assunto de Estado no Chile?
A amnésia foi imposta como uma razão de Estado. O grande triunfo da ditadura foi ter conseguido implantar um modelo económico. O golpe de Estado dá-se para fazer fracassar o intento revolucionário e decapitar intelectualmente o movimento trabalhador. O objetivo era matar o melhor do pensamento progressista no país. O Chile serviu aos EUA para testar, pela primeira vez, a sua teoria social de mercado.
Os chilenos foram as cobaias desta globalização do mercado?
Creio que sim. O senhor Milton Friedman, director da Escola de Chicago, viajou de propósito para o Chile para dirigir a experiência que, em primeiro lugar, consistiu em matar a indústria nacional. O país tinha indústria própria e exportava. “Ser chileno é bom”, era um slogan conhecido em todo o continente. A indústria têxtil era altamente competitiva e não era exagero dizer que mais de metade do continente americano se vestia com roupas feitas no Chile. O país abastecia-se de toda a qualidade de marcas de linha branca. É evidente que os nossos frigoríficos e máquinas de lavar não eram tão bonitas como as Westinghouse, mas funcionavam e duravam muito tempo. Começavam-se a produzir os primeiros automóveis feitos no Chile. Havia uma licença da Citroen e tinha nascido o primeiro Citroen chileno. Não era tão espetacular como o original, mas funcionava. Tínhamos uma empresa de transportes coletivos do Estado, que era exemplar. Já tínhamos uma consciência de proteção ambiental muito acelerada, herdada de velhas tradições anarquistas. Creio que o Chile foi o primeiro país da América Latina a ter transportes públicos que funcionavam a eletricidade, os velhos tróleis. Os estudantes viajavam gratuitamente, tal como as mulheres grávidas e os velhos maiores de 70. Tudo isso foi destroçado. Acabaram com todas as indústrias nacionais, todas as empresas estatais e o país tornou-se o grande recetor de coisas que vinham de fora.
Até essa altura, o Chile não era uma democracia espetacular, mas funcionava…
E funcionava muito bem. Era o único país do mundo cujo congresso tinha funcionado ininterruptamente durante 140 anos. Os chilenos eram quase adictos ao jogo democrático. Desde a escola, onde elegias democraticamente os alunos que te representavam. E por aí adiante… Era uma cadeia ininterrupta de experiências democráticas, fazia parte da nossa cultura. A população era muito crítica em relação ao poder e dava-se ao luxo de controlá-lo. Não havia bipartidarismo, mas sim uma pluralidade política muito grande. Não era raro haver uma cidade onde o presidente era comunista e vinte quilómetros mais adiante era de direita. Mas quando se sentavam a conversar para tomar decisões, decidiam, de facto.
A direita chilena aprendeu alguma coisa com isso?
Havia, como em todos os países, uma pequena direita ilustrada, mas também uma direita muito fechada que estava à espera da oportunidade de subir ao poder e acabou sendo traída pela ditadura. A ditadura obrigou a direita que tinha algumas componentes democráticas a assumir uma postura fascista. Quando se afundou a indústria nacional, quem se prejudicou foi essa direita. Os donos das indústrias desaparecem como força económica, a classe media é destruída e os militares tomam conta de tudo. Todas as decisões são tomadas com um critério militar, todos os economistas que chegam ao Chile obedecem às forças armadas. E o país transforma-se num exportador de matérias-primas, há um retrocesso enorme. O capitalismo divide-se entre os que mandam na tecnologia e na indústria e os que obedecem e têm o encargo de dar de comer aos que mandam. O Chile de hoje é administrado como uma empresa. E uma empresa, evidentemente, não pode funcionar com leis democráticas.
A envergadura dos seus sonhos e dos seus camaradas também terá contribuído para essa derrota?
Sim e não. Essa é uma das grandes discussões entre nós… Sabíamos que as experiências revolucionárias não são exportáveis, obedecem a características muito próprias. Mas também sabíamos que, se triunfássemos, abriríamos um caminho enorme no resto da América Latina e, sobretudo nos países irmãos, Argentina e Uruguai. São aqueles de quem estamos culturalmente mais próximos, porque são muito diferentes os países que têm população predominantemente indígena dos que foram formados maioritariamente por emigrantes. Não são realidades opostas, mas diferentes. Os argentinos não podiam desenvolver uma luta armada para chegar ao poder, sobretudo porque é um país enorme. O Uruguai, bom…era um dos países mais cultos da América Latina e evitaria por todos os meios uma confrontação armada. A única vanguarda armada que houve no Uruguai, os Tupamaros, sempre desenvolveu uma luta guerrilheira nas cidades, mas nunca com a perspetiva da tomada do poder. Só queriam obrigar o governo a sentar-se e negociar todas as coisas que se tinham de fazer.
Sabíamos que o processo chileno podia contagiar o continente e isso percebeu-o muito depressa Nixon, mas sobretudo, Kissinger, que assumiu pessoalmente a tarefa de terminar com a experiência chilena de qualquer maneira. A intromissão norte-americana foi escandalosa. Logo no mês de junho de 1973 assassinaram vários militares incómodos e financiaram uma greve geral das transportadoras durante o tempo que fosse necessário para gerar o caos, paralisar o país e forçar a queda do governo. Com os transportes parados, a resposta popular foi magnífica. Chegaram a formar-se cadeias humanas de vários quilómetros das fábricas aos hospitais para transportar bens de mão em mão. E chegavam. Quando os EUA se aperceberam que a greve geral estava a sair-lhes cara, quase 20 milhões de dólares por dia, e o esforço do governo ganhava mais alento. É como quando um tipo forte e um fraco se enfrentam. Se o débil faz frente, ganha a simpatia das pessoas. Era o que estava a acontecer e, por isso, os EUA se decidiram pelo golpe de Estado.
Vê alguma diferença entre esses métodos e os que são aplicados hoje pelos EUA noutras partes do mundo?
A ementa imperial não varia. Os EUA sempre sustentaram a sua política exterior na mentira e no engano, desde os tempos em que roubaram metade do território mexicano. Um tipo que foi presidente dos EUA disse: “Todos os homens são iguais perante a lei, exceto nós, os que temos uma pistola”. Esta atrocidade está escrita na constituição texana, donde saiu Bush. As mesmas formas que utilizaram para desestabilizar o Chile, usaram em Granada, no Brasil, Peru e Bolívia. Onde havia governos com uma clara orientação progressista.
Crê que os sonhos da sua geração continuam atuais?
Continuam atuais em todo o mundo. É o velho sonho de uma sociedade que nunca será perfeita, mas pode ser justa. Uma sociedade saudável, que se contradiga a si mesma, onde não haja uniformidade nem reverências. Não foi casual o facto de Allende ter pronunciado o seu primeiro discurso após a vitória nas eleições de 1970 na sede da Federação dos Estudantes. Era aí que estava o coração do movimento popular. Os meus sonhos desse tempo são os sonhos caros da humanidade. Especialmente na América Latina, onde vivemos demasiado próximos do inimigo que impediu o nosso desenvolvimento e um estado mínimo de independência.
Juntamente com um companheiro, fundei uma editora no Chile que se chama Aun Creemos en los Sueños (Ainda Acreditamos nos Sonhos). É uma das que mais livros vende no país. Estamos a recuperar o nosso património cultural e a tentar partilhar com as novas gerações aquilo que nós líamos. É possível que algumas coisas estejam datadas, que se discorde do que lá vem, mas o que não podemos deixar é que desconheçam essas obras.
Os jovens….como reagem eles ante as feridas que continuam abertas no Chile?
Começam a reagir de uma maneira muito especial. Alguns vão agora cumprir 30 anos, nasceram quando foi o golpe. A esses, de uma forma geral, sepultaram-lhes a realidade. Há um filme belíssimo de um chileno chamado Patrício Guzmán chamado A Memoria Obstinada e a sua história responde à tua pergunta. Ele tinha feito um grande filme chamado A batalha do Chile, que nunca passou no país. Quando terminou as filmagens, deu-se o golpe. Levaram-no para a prisão e assassinaram vários elementos da sua equipa. O seu avô conseguiu salvar a fita e meteu-a num baú na embaixada sueca. Através de mala diplomática, o filme chegou à Europa, e Patrício, já no exílio, recuperou-a, montou-a e mostrou-a em todo o mundo, menos no Chile. Vinte anos depois, levou-a ao Chile. E enquanto a exibia, fez o tal filme chamado A Memória Obstinada simplesmente gravando as reações da gente jovem enquanto lhes mostrava a fita. Foi uma reação traumática. Jovens que antes tinham a opinião de que o governo militar salvou o país do caos, da anarquia e dos comunistas que tentavam escravizar o país, sentiram uma espécie de catarse depois de verem o filme. E indignaram-se: “Como é possível que nos tenham mentido tanto?”. Afinal, era verdade que tinham matado gente, que havia desaparecidos. Alguns diziam: “Como pude ser tão cretino?”. E havia uma rapariga, inconsolável, que dizia: “Mas eu jurei por Deus a amigos estrangeiros que no Chile nunca se tinha matado ninguém. Que era tudo propaganda do comunismo. E que as pessoas que apareciam com fotos, perguntando pelos familiares desaparecidos, eram gente paga pela União Soviética. Enganaram-me!”.
Houve um despertar da memória, da curiosidade pelo passado, mas não é massivo, claro. A ditadura gerou mentalidades alienadas, impôs a estupidez. Isto não é um fenómeno tipicamente chileno, mas a televisão pública, por exemplo, é lixo. São 24 horas de lixo, lixo, lixo. Mas uma parte muito significativa da juventude chilena está a recuperar a memória e a participar politicamente. Não votam, tal como metade dos 13 milhões de chilenos, mas participam em associações. No ano passado convidaram-me pela primeira vez a ir à biblioteca nacional dar uma conferência, cujo título era o nome da minha editora. A sala dava para 700 pessoas e a diretora da biblioteca apostava que ia estar metade. Mas alguém garantiu que vinha mais gente e até recomendou que se providenciasse uns écrans gigantes para as pessoas que iam ficar de fora. Foram 15 mil pessoas, um comício! Desses, 14 mil tinham menos de 25 anos.
Como explica isso?
Sei que sou uma figura respeitada, mas as pessoas apareceram sobretudo porque alguém ia responder a perguntas sobre algo que essa gente reconhece à minha geração: o facto de termos tido cojones para nos opormos a um poder terrível como o norte-americano e dizer que os nossos sonhos eram legítimos. Para esses jovens, não somos um exemplo, nada disso. Mas somos referências. É como se tivesses contado a uma criança de 12 anos as aventuras do Sandokan. Esses jovens chilenos estão a recuperar a memória.
Mas como dar o exemplo de Allende aos jovens quando as referências, para muitos, se chamam Schwarzenegger e afins?
Esse é o grande desafio. As transformações da sociedade nunca são feitas pela maioria, mas é a maioria que beneficia delas. A parte das sociedades pensantes, seja a portuguesa ou a chilena, nunca supera os dez por cento da população. Mas nesses dez por cento estão consagrados todos os esforços para mudar as sociedades. Evidentemente, alguns continuarão a preferir Stallone e Schwarzenegger a Allende ou aos Capitães de Abril. Mas aos outros, aos que combatem diariamente, mesmo sem o saber, a estupidez, devemos dar-lhes apoio e alento para que continuem resistindo. Sobretudo, partilhando com eles a convicção de que resistir não é uma coisa má. Resistir mantém-te vivo.
Essa resistência requer, talvez modelos novos, criatividade. As velhas fórmulas de esquerda estão gastas, não?
No nosso tempo, entendíamos que a única forma de resistir era dar alternativas. E isso continua válido. Resistir não é aguentar os golpes, mas sim dar golpes mais fortes. A resistência é um ato de criação enorme.
O perdão é uma palavra que cabe no seu dicionário chileno?
Não, não cabe. Nisso, sou como o Conde de Monte Cristo: não esqueço, nem perdoo. Com o perdão não se devolvem as vidas que a ditadura levou.
Mas então como se resgata a memória dos que pagaram com a vida a resistência à ditadura de Pinochet?
Todos os seres humanos necessitam de abrir e fechar círculos de dor. Faz parte da vida. O que é inaceitável é que aqueles que abriram esses círculos de dor se neguem a contribuir para que possamos fechá-los. Precisamos de chorar a morte do filho, do irmão ou do pai, mas impedem-nos esse pranto, essa catarse libertadora. Não nos dizem se os mataram e onde os deixaram, mas sabem onde estão os corpos. Este dano prolongou-se durante trinta anos. E é parte de uma farsa atroz. Quando o “socialista” Ricardo Lagos, presidente do Chile, se nega demitir o chefe da polícia criminal chilena, um ex-militar, acusado, por mais de cem mulheres, de violações, torturas e assassinatos, e lhe renova a confiança, está tudo dito. Este é o preço que alguns socialistas reciclados aceitaram pagar para subir ao carro dos vencedores. Transformaram-se nuns canalhas. É muito saudável para uma sociedade ter memória e não perdoar aos criminosos.
A reconciliação com a história significa saber toda a verdade sobre o que se passou no Chile de Pinochet. Chegará esse momento?
Creio que sim, até porque ocorrem coisas insólitas. O sistema económico não funciona e na Argentina, por exemplo, rebentou por completo. O povo argentino chegou a níveis de degradação moral nunca vistos, mas todos sabemos como a pobreza degrada a moral. A miséria transforma o ser humano quase num animal. A mim, tocou-me assistir a um episódio em Buenos Aires que não esquecerei. Por casualidade, estava a passar pelo bairro Palermo quando mais de cem pessoas saquearam o supermercado. De repente, irrompeu um homem de fato e gravata, mais velho do que eu, que levava um pacote de açúcar. À minha frente, atirou-se para o chão e começou a chorar. De vergonha. “Juro-te por Deus, irmão, nunca tinha roubado”, dizia. E chorava, perguntando: “Que fiz de mim, que fiz de mim?”. Levantei-o e disse-lhe: “Não, irmão, a pergunta correta é: o que fizeram de ti?”.
Para salvar a moral de um país como a Argentina – porque um país não vive sem moral – o presidente Kirchner revogou as leis de obediência devida e, agora assim, os hijos de puta vão pagá-las todas. Todas! Era a única maneira de começar de novo, não se pode construir uma sociedade na base da mentira, da amnésia, do esquecimento como razão de Estado.
No caso do Chile, bem…oxalá me engane porque não desejo mal nenhum ao meu povo, mas a economia chilena vai colapsar dentro de uns anos. É um país que tem um endividamento atroz e está totalmente aberto a intromissão de qualquer capital suspeito. Não há um país no mundo onde se tenha lavado tanto dinheiro do narcotráfico como no Chile. É um facto que nem o mais idiota membro do governo se atreveria a negar. Como se lava dinheiro no Chile? Com a construção civil. A média de apartamentos no país por cada habitante é de quatro para um. Há bairros inteiros desabitados porque apenas foram construídos para lavar dinheiro. Criaram nas pessoas a necessidade de ter casas “tipo chalet suíço” ou “tipo chalet inglês” e deram-te a possibilidade de te endividares. Há 20 anos, compravas um chalet tipo castelo de Windsor ou algo assim e pagavas, por exemplo, cem mil unidades de fomento, que eram equivalentes ao dólar. Ou seja, cem mil dólares. Hoje, uma unidade de fomento vale 700 dólares, ou seja, a dívida que contraíste há 20 anos cresceu 180 vezes. É um país que tem o seu futuro hipotecado. Segundo um dos últimos relatórios do Banco Mundial, cada chileno nasce devendo o equivalente a onze anos de trabalho. Este país vai ter um colapso total. E pior do que a Argentina. Não defendo o “quanto pior, melhor”, mas creio que só nessa altura se dará o ponto de partida para que o Chile se reconstrua moralmente.
E que opinião tem sobre o que se passa no Brasil e na Venezuela?
Não creio que da Venezuela possa surgir algo de interessante, porque tenho sérias dúvidas sobre a saúde mental de Chávez. Acho que está mais louco do que uma cabra. Gosto muito da Venezuela, a independência americana nasceu lá. As universidades chilenas foram feitas por um venezuelano, Andrés Bello. A Constituição venezuelana serviu, inclusive, de inspiração para o ato fundacional dos EUA. Chávez comporta-se como um Messias, mas já acabou o tempo dos messias. Não é um tipo instruído, nem tem vontade de ser. É um caudilho.
O Brasil é um caso diferente. Lula chega ao governo como fruto de uma evolução política largamente meditada. O problema brasileiro é a falta de consenso nacional e ele está a consegui-lo. O país funcionou sempre em redor do Rio de Janeiro e São Paulo. O resto era praticamente terra de caudilhos. Há alguns estados, como o de Acre, em que os governadores mandam com a ponta da pistola até hoje. Os passos de Lula têm de ser muito bem medidos, mas dão muita esperança. O seu problema vai ser a própria esquerda, que não entende que, às vezes, é melhor dar um passo bem medido, do que dois vacilantes.
E o que espera da Argentina?
Conto-te uma história. Quando filmei Nowhere fui gravar a Salta, na Argentina. Apareceu o governador dessa província, gordo, com uma cara de índio impressionante, um Rolex enorme, pulseiras e colares de ouro, e casado com uma ex-miss Aústria, mais alta do que ele meio metro. É aquilo que os argentinos chamam um minón, ou seja, uma mulher espetacular. Evidentemente, foi um matrimónio por amor…(risos). Pois o tipo chegou ao local das filmagens e disponibilizou-se para tudo o que eu quisesse. “O governo quer dar um contributo”, disse. Então, eu disse-lhe que a melhor maneira de o fazer era organizar um grande assado para quando chegassem todos os atores e tudo estivesse pronto para o início das gravações. E ele: “Claro. Mas haverá mais: todos os dias terás uma vaca”. E todos os dias nos mandava uma vaca e quatro gaúchos assavam-na para nós…
Quantos dias duraram as filmagens?
Oito semanas (risos). Então, um dia convidou-nos a comer na sua casa. A mansão do governador era uma cópia da casa da série Dinastia. Foi ele que o disse: tinha comprado os projetos e fez uma casa igual. Mostrou-me a sua coleção de automóveis antigos, sessenta carros: Rolls Royce, Mercedes, tudo antigo. Tinha construído uma autoestrada – a única que existe em Salta – que vai desde a sua moradia até ao centro da cidade. Somente para ele. E só vai direta à sua casa. Mas como não gostava de engarrafamentos no acesso ao centro da cidade, tinha um helicóptero, autorizado pelo governo central, onde viajava todos os dias, quatro vezes. O seu filho, entretanto, tinha decidido que queria pilotar uma avioneta. E ele, com dinheiro do Estado, construiu o aeroporto internacional de Cafayate, onde só aterra e levanta um avião: o do seu filho. E tem vinte pessoas para mantê-lo. Pois este governador, este hijo de puta,era candidato à vice-presidência da Argentina. Não se podia confiar num tipo destes.
Voltando ao Chile…Pinochet continua a condicionar o futuro?
Não creio. Quando o governo do Chile se empenhou a fundo para evitar que ele fosse julgado em Inglaterra, pensavam que, ao chegar ao País, tudo ia acabar rapidamente. Enganaram-se. Não contavam com o juiz Guzmán que acompanhou muito de perto o trabalho de Baltazar Garzón e se fez amigo dele. Um dia, convidaram-no a participar numa conferência em Itália sobre a operação Mãos Limpas e ele percebeu que, como juiz, poderia ser uma pessoa importante para a sociedade e regressou decidido a julgar Pinochet. Manteve-o em prisão domiciliária durante muito tempo e, pela primeira vez, Pinochet teve de responder ante um juiz. Quando lhe perguntaram se tinha sido ele a dar a ordem de partida para a Caravana da Morte para executar as pessoas, se a letra era dele, Pinochet não resistiu e disse: “Sim, a letra é minha”. Lixou tudo, não resistiu à vaidade e à cretinice de militar. Ainda por cima, depois do seu advogado ter tentado por todos os meios evitar que ele respondesse à pergunta. Com isso, conseguiu-se uma condenação, mas logo houve uma grande negociação para deixar tudo como está. Mas o perigo de um golpe militar nem sequer existe. A última vez que isso aconteceu foi quando se descobriu que o filho de Pinochet tinha recebido umas comissões muito suculentas pela compra de armas para o exército chileno. Apareceram uns cheques endossados ao filho e preparavam-se para prendê-lo. Mas quando o caso ia ser julgado, Santiago apareceu com todas as ruas cheias de milicos, com a cara pintada. A desculpa foi que era um exercício normal para medir a capacidade de resposta dos militares ante uma invasão estrangeira. Borraram-se todos, não houve julgamento nem nada.
Entretanto, tinha havido uma mudança forçada pela natureza. Os altos comandos militares já estavam demasiado velhos e havia até alguma insegurança neles pois, como dependiam do humor de Pinochet, houve muitos generais que não chegaram a fazer parte do alto comando porque simplesmente tinham tido alguma vez uma discussão com Pinochet ou tinham olhado de lado para ele. Havia um mal-estar porque Pinochet denunciou alguns, deu nome de oficiais implicados nos crimes da ditadura. E isso contraria a lealdade dentro do exército, pois há sempre a ideia de que o comandante-em-chefe morre, mas não fala.
Então, Pinochet foi declarado louco, diagnosticaram-lhe uma doença que fez rir todos os médicos do mundo: demência vascular leve. Está louco? Sim. Mas é como as casas “tipo chalet suíço”, ou seja, uma loucura tipo qualquer coisa…(risos), entendes? Meteram-se numa alhada porque Pinochet tem de manter a sua doença porque qualquer melhoria na demência vascular leve permite levá-lo a julgamento.
É aí que entra a história de não haver vacas loucas no Chile…
Ah! Essa história…Quando diagnosticaram a doença a Pinochet, eu estava no Chile e decidi ir comer um assado a um restaurante para festejar o aniversário do meu filho mais velho, que vive na Suécia. Ele, como bom sueco que é, estava muito preocupado com as vacas loucas e perguntou ao empregado: “Aqui não há vacas loucas, não?”. “Não senhor”, respondeu-lhe o moço. “Aqui as vacas têm demência vascular leve” (risos).
Mas voltando à pergunta…Não, Pinochet não vai condicionar mais o futuro do Chile. Até o novo comandante-em-chefe do exército anda muito incomodado por ainda ter de suportar a figura de Pinochet. Os seus amigos têm feito tudo para que se arquivem todos os processos levantados contra Pinochet, mas a petição tem de ser assinada pelo próprio. E um tipo que está declarado louco não pode fazê-lo. Para mim, é uma vingança belíssima.
É um fim que o satisfaz?
Não, não. Eu era o tipo mais feliz do mundo se tivesse esse filho da puta diante de mim e pudesse esvaziar os sete tiros de uma “45”. Isso, sim, seria um prazer enorme. Não desejo a morte a muita gente, mas a alguns sim. E a esse especialmente.
Há quem prefira vê-lo sofrer, padecer de uma morte lenta…
Sim, sim…um bom cancro de próstata ou algo assim, porque não?
Recordo-me que quando os franceses afundaram o Rainbow Warrior em 1985 e mataram um fotógrafo português que estava no barco, escutei o discurso de Mitterrand, justificando plenamente o que tinham feito os serviços secretos franceses. E então, pela primeira vez, pensei: “Se pudesse desejar algo a este tipo era que tivesse um bom cancro da próstata que lhe dure uns vinte anos”.
Hoje seria capaz de viver no Chile?
Prefiro não viver lá…
O livro O General e o Juiz é um ajuste de contas?
Nasceu sobretudo da necessidade de erguer a minha barricada quando Pinochet estava retido em Londres. Tentei contribuir para que mantivessem preso a maior quantidade de tempo possível. E no livro, de facto, há alguns ajustes de contas com canalhas que tiraram a máscara e mostraram quem eram na verdade. Por outro lado, é uma reivindicação de uma forma de estar na vida. Coincido com a minha mulher numa coisa que para mim é muito importante: não nos consideramos vítimas e não suporto quando no Chile se fala das “pobres vítimas”. Podes ser vítima da fatalidade, da má sorte, até da mão de Deus se fores crente. Mas nós pagámos um preço por tentar mudar a sociedade e o mundo. Sabíamos que íamos pagar por isso e, mesmo assim, fizemo-lo. Somos orgulhosamente culpados disso. Por isso, quando o governo se refere aos companheiros pobrezinhos que desapareceram, apetece-me dizer: pobrezinhos nada! Eram arrogantes e valentes. Pagaram um preço terrível, mas sabiam que a morte era sempre uma possibilidade.
Neste livro, tento colocar-me desse ponto de vista, dizendo: não somos vítimas, não confundam as coisas. Não precisamos de caridade cristã para entender o que fizemos. E fizemo-lo com orgulho.
Sente algo parecido com um exílio interior?
Não, não, não, nada disso. Jamais coqueteei com os famosos exílios interiores, são uma grande estupidez. É claro que tive de viver no exílio porque não pude viver no meu país. Mas tenho o direito de viver onde me apetece e de ser um cidadão do mundo. O meu lugar no mundo é onde eu quiser. Tento ir ao Chile quase todos os anos, mas o meu país já desapareceu. Entretanto, apareceram na minha vida outros países, tremendamente sugestivos. E tenho uma grande relação de amor por esses países. Mas a região que mais amo no mundo é a Patagónia e era muito feliz quando ia lá. Allende era senador eleito pela Patagónia. É outra classe de gente, que tem outro projeto de vida.
Há uns anos fez uma viagem pelos EUA de costa a costa. Com que impressão ficou do povo americano?
São ainda mais ignorantes do que parecem. É evidente que conheci gente muito boa, fantástica, em Los Angeles e Nova Iorque. Mas o sonho americano é um mito. Os EUA são uma nação qual continuam a chegar emigrantes que nunca terão o seu espaço no mundo wasp. Chegam e sabem que vão crescer e morrer sem nunca passar de um estado de sobrevivência e em condições terrivelmente hostis, salvo se pertencerem a uma elite minoritária de cubanos, aos quais, por causa dos votos, permitem o acesso a alguns lugares. O outro povo americano é o que está jodido. Eu vi pobreza em todas as partes do mundo, mas pobreza que estava sempre agarrada a uma esperança mínima, por mais leve que fosse. Sítio onde as pessoas achavam que a pobreza não podia durar eternamente e acreditavam que algum dia passasse. Mas nos EUA, olhas para os homeless e percebes que é gente que aceitou resignadamente que nada vai mudar para eles, durem o tempo que durarem. Estão moralmente derrotados. Os EUA são responsáveis por alguns dos mais perigosos retrocessos da humanidade.
Há poucas semanas, houve uma grande cerimónia para homenagear alguns dos primeiros que regressaram do Iraque. Mercenários e, na maioria, latinos. A única chance que tiveram de ser cidadãos norte-americanos de pleno direito foi vestir um uniforme yankee e ir matar para o Iraque.
Mas à margem do punhado de boa gente que encontras, o que mais te aterra é a ignorância do povo americano. Fiz a viagem de costa à costa em dois meses com um amigo jornalista. Num dos dias, chegámos a uma terreola miserável próxima de Wichita, onde há gente que viveu toda a vida em roullotes e nunca andou sequer 50 quilómetros para conhecer outras coisas. Nascem, crescem e morrem nas caravanas. E o único local que têm para passar o tempo é o Burguer King à saída da terreola. O outro é a Igreja Baptista. Parámos para beber o espantoso café que eles tomam – que é tudo menos café – e olharam-nos com ódio. Só porque éramos estranhos, não interessava a nacionalidade. Como viajávamos no carro descapotável, para eles só podia ser roubado. E não resistiram. Passado pouco tempo, apareceu o sheriff, de óculos escuros, com a mão na cintura segurando o revólver. Deu-nos dez minutos para sair dali. “Nunca ouviu falar dos direitos civis?”, perguntou-lhe o meu amigo. “Cinco minutos”, respondeu o sheriff. E saímos. É um país aterrador. A maioria da população é isto que descrevi.
Como se chegou a isso?
Em primeiro lugar, os EUA são os paladinos da democracia, mas são os que menos a praticam. Lá, a igualdade é uma coisa relativa e o sistema educacional é dos mais débeis que existe no planeta. Gerações inteiras foram educadas a ver televisão. E isso provocou um vazio mental nos norte-americanos. A vida passa e tu? Fazes zapping…
Também teve uma curta estadia na antiga União Soviética…
Tinha uma bolsa de estudo, mas perdi-a ao fim de cinco meses. Foi em 1969 e só conheci Moscovo.
Com que ideia ficou daquela realidade nessa altura?
Nunca acreditei que aquilo fosse a pátria dos trabalhadores. Era tudo muito mais triste do que imaginava. Se havia algo de comum nos países socialistas era uma espécie de império da tristeza. Recordo que a sociedade russa era tremendamente racista, antissemita. Para eles, os judeus eram os culpados de tudo. Se faltava luz era porque um judeu tinha feito uma sabotagem. O sistema castigava-te com a cultura que queria que tu visses. Se querias ir ao cinema, não podias, porque tinhas de ir ver o Bolshoi. E ficavas a odiar o Bolshoi. Todas as semanas, havia uma série de espetáculos oficiais, da ópera ao bailado. Mas a única coisa interessante era clandestina e protagonizada por artistas judeus. Havia teatro estupendo, clubes de jazz, mas tudo clandestino. Mas ali estava a verdadeira alegria de viver…
Apesar de tudo, continua a dizer que está do lado esquerdo do muro…O que é, para si, ser socialista hoje?
Hoje qualquer um se pode dizer de esquerda. O termo desvirtuou-se, desvalorizou-se…
As palavras estão prostituídas, como diz num dos seus livros…
Exatamente. E por isso pareceu-me muito bem o que Saramago disse uma vez: “Ser comunista é uma atitude”. Ser um homem de esquerda é isso: manter uma atitude perante a vida. E é uma atitude de constante renúncia a muitas coisas. Chega a doer quando alguém se diz de esquerda, mas não está disposto a renunciar a parte da sua comodidade. Não se trata de todos termos muitos sapatos, mas de que todos tenham, pelo menos, dois. Temos de pensar numa cultura racional do consumo, por exemplo. Manter uma relação muito responsável com a vida. Para mim, é muito criticável o discurso de algumas pessoas que se dizem de esquerda e protestam porque, perto da sua casa, instalaram um contentor para garrafas!
No fundo, temos de ter uma atitude de constante vigilância contra a estupidez que nos rodeia e tenta devorar-nos. Essa postura obriga-te, com alegria, a manter e a praticar os valores nos quais crês: a solidariedade, a generosidade social, etc. Definitivamente, sabes que ser de esquerda te permite dormir bem.
A que tipo de coisas renunciou?
Não sei se são coisas importantes, para mim não são. Por isso, não são bem renúncias. Mas renuncio a coisas normais da comodidade diária. Tento manter uma vida consequente com tudo em que acredito ou me inquieta. Tenho muitos amigos escritores, as coisas correram-lhes bem a nível literário e transformaram-se nuns burgueses de merda. Eu sinto-me orgulhoso de não me ter transformado num burguês de merda.
Os intelectuais têm responsabilidades perante a sociedade e o mundo…
Sim, sim, mas alguns abandonaram as suas responsabilidades. Quando tens uma palavra, uma voz que é respeitada e se repete muitas vezes, a tua responsabilidade aumenta. Podes causar muito dano com o teu silêncio. Mas quando te bates por algo és um apoio para muita gente.
Mas nunca se definiu com um intelectual…
Não gosto da definição. Sou um tipo mais intuitivo do que racional, mais visceral do que racional. Tenho a inteligência suficiente para controlar o meu temperamento. Inclusive, não me preocupa muito isso de ser ou não ser um escritor. Simplesmente, escrevo. Se através dos meus livros, alguém conclui que mereço ser chamado de escritor, muito bem. Mas não busquei esse estatuto. Há coisas mais importantes na vida, mas também há sempre uns cretinos que procuram a imortalidade.
No seu caso, isso não seria possível nem pela via religiosa…
Sou respeitosamente agnóstico. E vivo muito bem com dúvidas.
Define-se como um crente da força militante das palavras. Mas, neste momento da humanidade, que força têm as palavras, o que podem mudar?
Sozinhas, não mudam nada. Depende mais da força de quem as diz e menos da intensidade com que são ditas. As palavras têm um efeito emancipador. E precisam de ser dignificadas dando-lhes o seu real valor.
A sua literatura está sempre do lado dos vencidos da vida. É uma escrita contra a alienação?
A todos nos toca nascer numa determinada época e alguns de nós tentam ser consequentes com a época em que vivem. A única forma que conheço de dormir bem é estar em paz com o mundo e, sobretudo, comigo. Mantendo sempre uma atitude de resistência. A minha literatura é um ato de resistência. “Narrar é resistir”, disse Guimarães Rosa. Não sei se alguns de nós não estarão como que a refundar uma cultura da resistência. Desde que Peter Weiss morreu ninguém mais leu a estética da resistência. A resistência está impregnada de uma enorme beleza porque implica dar alternativas. Quando resistes como escritor, estás a propor uma alternativa literária e bela contra a alienação. E é uma literatura que funciona, muitas vezes, como último reduto dos sem voz.
Viveu em Hamburgo, Paris e agora vive em Gijon. Que memórias guarda das cidade por onde passou?
Gosto especialmente de Hamburgo. Fui muito feliz lá. As cidades não são casas, não são edifícios, mas sim os universos dos afetos. Quando se pensa numa cidade em que se gostou de estar recorda-se, por exemplo, o grupo de amigos que se conheceu num bar. E eu tive uma rica geografia sentimental em Hamburgo. Que ainda se mantém. Essa cidade, além de tudo, corresponde à grande diversidade de pessoas que há na Alemanha. Hamburgo tem gente muito liberal, solidária, com grande sentido de humor. E para um escritor não há maior satisfação do que um episódio como este que te vou contar: um dia, o alcalde da cidade enviou-me uma carta que dizia que o departamento de cultura do município estava bastante preocupado comigo porque eu nunca me tinha apresentado nos serviços a pedir uma bolsa para criação literária. Disse-lhes que nunca tinha feito nada porque era estrangeiro. Sabes qual foi a resposta? “A nós não nos interessa se você é chinês ou alemão. Para nós, o importante é que você seja um escritor, que viva nesta cidade e tenha direitos”. Durante um ano pude escrever graças a eles. E acho que lhes agradeci isso dedicando-lhes A História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar, que é a novela de Hamburgo para crianças.
E Paris?
Estive lá quase quatro anos e não me ficou nada. Primeiro, cheguei tarde, já Paris não era uma festa, era mais um velório (risos). É uma cidade neurótica. As únicas pessoas gentis que encontrei no meu bairro, em Saint-Germain, foram os emigrantes portugueses, com quem se podia falar, tomar um café. O resto é gente com uma neurose atroz, sempre com pressa, sem tempo para um café, um copo de vinho. Inclusive, os amigos do grémio de literatura, das editoras, jamais me convidaram para ir a casa deles tomar um copo. A intelectualidade é aborrecida e pedante. E isso ainda acentuou mais os problemas que sempre tive com os franceses. Se há algo que alguns intelectuais franceses não suportam é que tu sejas um escritor não-francês e tenhas muitos leitores franceses.
Porquê a opção pelas Astúrias?
A primeira que aqui vim, em 1982, apaixonei-me por este verde. É uma região muito parecida com uma zona do sul do Chile que é só montes e mar. Além disso, é uma região sofrida e as pessoas são espontâneas. A descoberta das Astúrias foi, para mim, uma coisa mágica. Tinha uma velha Volkswagen com cama, cozinha, etc, e andava a vagabundear por Espanha. Uma noite perdi-me, não tinha ideia onde estava. Pela manhã, quando desapareceu a neve, julguei que estava na Patagónia. Desde pequenino que tenho uma relação muito afetiva com os asturianos. Os meus avós paternos eram espanhóis e todas as segundas-feiras íamos ao Centro Asturiano de Santiago do Chile comer a fabada, um prato típico. Grande parte da vida conspirativa daquele tempo fez-se naquele centro. Havia, inclusive, aromas que me eram familiares.
Quando cheguei a Gijon, fui a uma sidreria para tomar um copo. Perguntaram-me o que queria tomar. “O que bebem os daqui», disse eu. “O que se bebe aqui é sidra”, respondeu o empregado. “Pois, seja: dê-me uma sidra”. E ele serviu-me…uma garrafa. Um grupo de homens assistiu à conversa e convidou-me para a sua mesa. Perguntaram-me de onde era, de onde vinha. “Sou um chileno a viver em Hamburgo”, respondi. “Não percas o teu tempo, anda viver para cá”, disseram-me. De facto, confessei, “esta região encanta-me”. Agradeci o convite e quis saber mais sobre os asturianos. “Aqui dividimos a humanidade assim: ou se é um hijo de puta ou é-se um dos nossos”. “E eu qual sou?”, perguntei. “És dos nossos”. Vivo aqui desde 1996. De alguma maneira, começa a ser a minha última morada, a última casa. É a casa aonde vêm os meus filhos e começam também a vir os dois netos…Aqui descobri a minha vocação de jardineiro, passo muito tempo a cuidar das árvores.
Já se sente um filho da terra?
Sim, fazem-me sentir um deles. Evidentemente, sabem que sou um escritor famoso e querem fazer de mim protagonista. Sou convidado todos os dias para inaugurações disto e daquilo, mas trato de manter-me à margem. Contudo, organizo todos os anos o Salão do Livro Ibero-americano e sinto-me muito feliz com isso.
Costuma dizer que uma pessoa é donde melhor se sente. A palavra pátria não lhe diz nada, portanto?
Sempre me provocou uma repulsa enorme. A palavra pátria está ligada aos patriotas. Se és um patriota excluis os demais, ou seja, achas que és o melhor e ignoras o valor dos outros. É uma palavra que deveria desaparecer.
Acha que o facto de ter nascido num hotel pode ter influenciado a sua opinião?
Suponho que sim. Sabes…tive a sorte de crescer numa família que era muito sensata, o meu avô dizia que não havia só o Chile, mas muito mais para ver. E quando começas a admirar o bom que têm os outros, admiras o bom que tens dentro de ti. Só quando és capaz de admirar a beleza de um lugar que fica longe, és capaz de dar valor ao que tens ao pé da porta.
Em que coisas sente que os seus filhos são também parte da sua biografia?
Cada nascimento de um filho meu foi uma forma de me reconciliar com a vida, uma vitória mais. Costumava dizer a mim próprio: “O responsável pelo facto de eu não poder viver naquele país que deixei para trás terá todo o poder que queira, mas não tem este pedacito de carne que levo nas mãos”. Este vai fazer história, o outro não. Os meus filhos são a prova de que não me enganei, de que vale a pena viver. Nunca tive muito aquela sensação de que me estava multiplicando, nada disso. Cada um tem uma individualidade muito própria, são eles próprios.
Ainda pensa escrever uma novela sobre Lisboa?
Sim, sim, gostava de passar uma temporada em Lisboa…Senti-me um pouco jodido quando li Afirma Pereira, do Antonio Tabucchi, porque é exactamente a puta de novela que gostaria de ter feito (risos). Para já, tenho apenas um personagem, um chileno que está em Lisboa na época de Salazar. E alguns apontamentos desordenados que preciso de cozinhar. Uma vez fui a Lisboa com a intenção de começar a escrever, mas não o pude fazer porque a hospitalidade dos lisboetas é doentia. E entendi que não era possível escrever todos os dias. Gosto muito de vaguear por Trás-os-Montes e ir ao sul, no inverno, que é quando não há turistas. Mais Alentejo do que Algarve. Curiosamente, estou há quase dez anos a escrever uma novela de piratas (risos). Bom…já tenho 600 páginas. Uma das personagens é um alentejano, porque existiu realmente um pirata alentejano. Ou melhor, não sei se era alentejano, mas chamavam-no Sebastião do Alentejo. E ficou na história. As pessoas confundem os piratas com os corsários, mas não são a mesma coisa. Os piratas eram homens livres do mar, os corsários eram mercenários. E piratas de verdade só existiram no mediterrâneo e no Estreito de Magalhães. Aqui, entre o ano 1600 e finais, existiram duas grandes confrarias de piratas. Uma chamava-se Confraria do Leão Ferido e tinham um código de conduta que, 300 anos depois, vês reproduzido no Manifesto Comunista. A sua bandeira não era a típica dos piratas, negra, com dois ossos e a caveira. Era, sim, metade vermelha, metade negra. Um grande historiador francês, chamado Gilles Lapouge, escreveu um livro onde menciona esta confraria e defende uma teoria em que eu acredito: a de que a bandeira vermelha e preta da anarquia vem da pirataria. Porque os postulados que defendiam estão reproduzidos nos documentos anarquistas. Ou seja, a justiça praticada dia-a-dia, mas não como instrumento de castigo. Bem, continuo a investigar, demora tempo. Primeiro, porque não havia nenhum dicionário de calão marítimo dessa época em espanhol e consultei outros em alemão, português, inglês e já tenho duas mil palavras. Pelo menos, já estou seguro: se a novela for má, o dicionário é bom (risos).
Continua ligado ao movimento Greenpeace?
Continuo a colaborar com eles em tudo o que posso, mas tenho certas discrepâncias com o movimento. Não gosto de ser nostálgico, mas acho que as coisas mudaram para pior. Recentemente, estive num lugar da costa catalã para participar numa campanha do Rainbow Warrior, que intercetou um barco que trazia um carregamento de espécies florestais protegidas da Libéria declaradas como eucaliptos. Tive a sorte de reencontrar o velho Petel, capitão do Rainbow Warrior, um norte-americano muito boa pessoa, e disse-lhe: “Vamos comprar umas garrafas de whisky e emborrachar-nos na popa por conta dos bons velhos tempos”. Ao que ele me respondeu: “Não pode ser, agora não se bebe a bordo. E também não se fuma. Agora vê-se por aí cada imbecil. São vegetarianos, não fumam, não bebem, dá asco”. É tudo boa gente, é evidente, arriscam a vida por estas causas. Mas são saudáveis como um iogurte, têm uma versão «light» da vida…No meu tempo, depois de estar às vezes 24 horas molhado até aos ossos, o que tu querias era beber um copo!