Nesta nova gravação, o músico reflectia a «radicalidade» com que olhava o mundo, misturada com uma boa dose de poesia e «distanciamento». Dois lados, compatíveis, de um mesmo olhar que acumulou derrotas, mas não desilusões.
VISÃO: O título Resistir É Vencer, como explica no disco, uma homenagem ao povo timorense.
Mas é mais do que isso, não?
JOSÉ MÁRIO BRANCO: É um lema que foi usado politicamente pela resistência do povo de Timor. Na viagem que fiz a Timor em 2001, à festa da independência, a Manuela de Freitas (minha companheira) e eu descobrimos que esse lema tinha um significado muito mais profundo do que aquela leitura politica mais superficial. Estar lá, falar com aquela gente, foi uma experiência que mudou o nosso olhar para a vida.E compreendemos quanto esse lema se aplica ao nosso quotidiano. Não no tal sentido que muitas vezes se lhe aplica: «Se tu resistires, um dia hás-de vencer…» Não é isso, é antes a noção de que a resistência é já uma vitória. E é não só uma vitória contra o adversário, o inimigo, mas contra os limites, as limitações, os obstáculos que o mundo põe à nossa frente.
No caso dos criadores, mais ainda do que isso, é uma vitória sobre si próprio. Na luta que é a criação contra uma matéria-prima que é a página em branco, ou o silêncio, para os músicos.
V: Ao sair tão em cima das comemorações dos 30 anos do 25 de Abril, este título também faz pensar nas palavras de ordem da época…
JMB: Possivelmente, mas é uma pura coincidência.
V: Recorda bem os sonhos que tinha para este país, quando regressou de Paris, em 1974?
JMB: Eu não tinha muito tempo, penso que ninguém tinha, para imaginar coisas. Havia, isso sim, uma noção de grande urgência social.
Quando as grandes massas populares vieram para a rua apoiar o golpe militar em 1974, percebeu-se que havia neste povo, fruto dessa descompressão que foi o 25 de Abril, uma ânsia muito grande de melhorar a vida. E houve avanços significativos.
Não foi só a liberdade, foram também conquistas sociais muito concretas, que têm a ver com direitos do trabalho…Foram conquistas dessa altura, ligadas ao conceito de democracia que estava em discussão.’Democracia’ é uma palavra muito bonita, está bem, desde os atenienses que se tem uma bela ideia sobre a democracia… Mas o que é de facto? Ao mesmo tempo que o movimento social estava na rua a exigir a mudança da vida para melhor,a tomar conta da sua vida, havia uma produção de ideias em torno dos próprios factos. Sobre esse dado fundamental é que se inseriram diferentes orientações ideológicas que só num muito curto período tiveram uma influência real nas coisas. Cada um ia puxando e interpretando os acontecimentos muito à medida das suas pré-concepções. Esse movimento que para mim não foi novidade, na medida em que tinha vivido o Maio de 68 em França, esse lado festivo, de grande comunicação entre as pessoas, rapidamente foi abafado. A própria direcção política, se é que havia, desse movimento não teve condições para dar seguimento a essa coisa muito espontânea que foi o PREC [Processo Revolucionário em Curso].
V: Sentiu como uma grande derrota o fim oficial desse PREC, em Novembro de 1975?
JMB: É inevitável sentir isso como uma derrota. Mas, com a distância, mais do que uma derrota vejo que foi uma aprendizagem.Tentei fazer a assimilação desse percurso da maneira que pude. Foi um caminho difícil, dorido,que, aliás, está patente em algumas coisas publicadas por mim. Foi preciso sublimar essa derrota para conseguir dar a volta por cima e perceber que não era uma derrota definitiva. Foi uma tentativa, como a daqueles cientistas que só ao fim da experiência seiscentos e tal é que acabam por acertar e encontrar o que procuram… As nossas sociedades também são assim, vai-se por tentativas.
V: Mas os seus sonhos não mudaram muito.
JMB: Não, até porque já tinha havido derrotas graves. A degenerescência da revolução soviética num regime autocrático, burocrático, fascista, extremamente cruel, foi também sentida duma forma muito dolorosa. Posso dar outro exemplo: a derrota que foi para mim acabar por perceber eu que tinha uma formação cristã básica quando era adolescente, acreditava mesmo naquilo, e continuo a ter nos meus valores muitos dados que vêm da história de Jesus, que é uma história belíssima, cheia de ensinamentos que a Igreja Católica era exactamente o contrário do que apregoava. Foi um choque traumático. Talvez mais, até, do que o fim do PREC. Mas recordo, ainda, a maneira como rapidamente o PCP trocou a revolução popular pela passagem de Angola e Moçambique para o campo de influência soviética, e ficou muito quietinho no dia 25 de Novembro [de 1975]… Mas não foi uma derrota, no sentido de parar e ficar desiludido. Desilusão é quando percebemos que tínhamos ilusões. E aquilo não eram ilusões, era a vontade de fazer qualquer coisa e, depois, encontrar pela frente obstáculos que não se conseguem ultrapassar.
V: Sente-se incomodado quando vê esses anúncios a dizer «Abril é evolução»?
JMB: Não vi, confesso que não vi. Estou demasiado enfronhado na música. E eu defendo-me um bocadinho do lixo informativo que nos submerge todos os dias. Faz parte da opressão submergir-nos em montes de estímulos absolutamente desnecessários que só têm como função distrair-nos do essencial, ocupar-nos o tempo, a atenção, tirar-nos autonomia crítica. Defendo-me bastante, cada vez mais, disso. Acompanho os acontecimentos principais, mas com os dois pés atrás em relação à informação que recebo. Tento através da Internet, de meios de comunicação alternatvos, relativizar a informação dos Telejornais, com visões mais críticas, com factos que não me são contados. Procuro a denúncia das mentiras que nos contam.
V: Também passou ao lado da polémica provocada pelo romance de Saramago?
JMB: É uma idiotice. Já não lhe acho graça nenhuma como escritor, mas isso pareceu–me idiota.As pessoas ou não vão votar, porque acham que esse acto não merece sequer o esforço da deslocação ou, se vão, têm duas hipóteses: votar num projecto em que se reconhecem ou fazerem como faz muita gente, a escolha do mal menor, aguentando as duas alternativas que se acredita existirem… O voto em branco é uma coisa que me cheira a instituição da abstenção como partido. E isso foi sempre sinal de fascização. Quando a abstenção cresce muito é um sinal perigoso, porque normalmente são os líderes populistas que, depois, conseguem apanhar esses votos. Oficializar o partido do voto em branco é a porta aberta à fascização. A gente vota por ideias. O voto em branco não é nada.
V: Não leu o livro…
JMB: Não. Nem sei o que é que ele quis dizer com isso do voto em branco… Li um livro do Saramago (O Memorial do Convento) e chegou para não gostar. Há tanta coisa boa para ler e tão pouco tempo.
V: Tem dito que está numa fase radical na maneira de ver o mundo, e que este disco reflecte isso. Faz sentido, hoje, falar em «extrema-esquerda»?
JMB: O «extrema» atrás de «esquerda» tem uma função semântica. Na linguagem também há luta de classes. Colar o adjectivo «extremo » à palavra «esquerda» é uma forma de lhe dar um carácter pesado, pejorativo, descontrolado, marginal ao sistema. Se quer a minha opinião, eu acho que ou se é de esquerda ou não se é. E ser de esquerda não é propriamente estar filiado num determinado partido embora, frequentemente, tenha essa consequência. Ser de esquerda é sobretudo… [pausa] Ser solidário. É não conseguir viver bem com o sofrimento dos outros, dos meus irmãos humanos, sejam eles quais forem. Isso é que é ser de esquerda.
V: E a direita vive bem com esse sofrimento?
JMB: Então não vive…A direita, mais ou menos conscientemente (e em esferas elevadas de poder, tem que ser de forma consciente), sabe que para se enriquecer da forma como se enriquece, há um preço. Que pagam os pobres, pela doença, pela fome, pela miséria, pelas guerras.Esse preço é pago. Quem é muito rico, sabe que essa riqueza só pode existir à custa de muita infelicidade alheia, muita dor. Isto é política? Não. É ética, é moral.
São princípios, maneiras de estar na vida.
V:A direita acusa muitas vezes a esquerda, em Portugal, precisamente por esta julgar que tem o monopólio da ética e da moral…
JMB: Pois, e atiram-nos com o engano, o truque, da caridade, da solidariedade doseada e pontual. Fazem tudo menos porem-se em causa em função do sofrimento dos outros. Como eu faço, todos os dias, minuto a minuto. Sei que vivo numa boa casa, tenho um bom carro, tenho o frigorífico cheio de comida mas não vivo bem. Não sou feliz porque a humanidade está a sofrer muito. Eu gostava de saber o que é que o Bagão Felix que é tão cristão, tão católico, crente e cheio de princípios, o que ele vê quando olha para o espelho de manhã: quantos é que foram despedidos hoje, quantos estão na miséria hoje por causa dos interesses que eu ando a servir.
V: Voltando aos extremos, acha que é um exagero dizer que a extrema-direita está no poder?
JMB: É a direita. E o Mário Soares, que afirmou isso, não dizia o mesmo quando pôs o distrito de Setúbal à fome com os salários em atraso. E era ele que mandava.
V: Vê o PS de hoje como um partido de direita?
JMB: Tudo o que está do outro lado da esquerda é de direita. E o PS está do outro lado da esquerda. Em práticas de governação, linhas políticas, discurso… Eu acho que é de direita tudo o que não ponha radicalmente em causa o sistema em que vivemos.
V: Optou por incluir neste disco vários temas compostos para a peça Guliver, encenada pel’A Barraca, em 1997. Sentiu que eram, ainda, de grande atualidade?
JMB: Claro, senão, certamente, não as gravaria agora. Essas oito canções, são, de facto, o eixo do disco, que tem, ao todo, 16 canções.
V: E têm um forte lado político…
JMB: Sim, mas não são as mais políticas. Há três canções no disco de que se pode dizer que são políticas, e nenhuma delas é do Guliver: Se do Império, Canção dos Despedidos e Onofre. Uma fala do império americano, outra da miséria do desemprego e a outra do império mediático e do seu poder.
V: Alguém que vive da música, como o José Mário Branco, não vê com algum espanto que não editava um disco de originais há 13 anos?
JMB: Já fiz intervalos de sete, de oito anos. Em 1997 houve, apesar de tudo, um álbum ao vivo que tinha três inéditos. Não foi assim um grande vazio… Também é possível que eu seja algo preguiçoso nessa coisa de falar de mim próprio, porque os meus discos são sempre bastante autobiográficos. Ponho-me muito em causa nas canções que escrevo. E há a noção, como diz a última canção do disco, de «só falar para dizer». Se é para papaguear o costume, mais vale estar quieto.
V: É doloroso cada disco, uma vez que põe tanto de si próprio no que faz?
JMB: Há uma certa exposição. É o que também sinto quando vou para o palco. No estúdio uma pessoa está mais resguardada. Ou seja, tenho mais prazer imediato no trabalho de estúdio, orquestração, direcção musical.
Se bem que quando vou para cima de um palco, só sofro o que tenho a sofrer até começar a cantar. Às vezes um mês antes já estou a carregar as baterias, ando para trás e para a frente no corredor, a pensar «será que a voz vai estar boa? será que.?».
V: Então, está assim, neste momento.
JMB: Estou. Estou assim e é complicado. Tenho 72 músicos a tocar no disco, como é que vou conseguir restituir às pessoas o mais aproximadamente possível o som do disco? Vou ter 25 músicos em cima do palco. E como tenho os arranjos do disco muito presentes, não estou com grande elasticidade para imaginar aquilo a soar de outra maneira. Mas claro que vamos conseguir porque estou muito bem acompanhado, por grandes músicos. Tenho o privilégio de trabalhar com alguns dos melhores que há em Portugal.
V:Vai buscar o Sérgio Godinho e o Fausto para colaborare no seu disco, como velhos amigos?
JMB: Companheiros de estrada, ou eu companheiro deles. Com personalidades diferentes.
Quando fiz a canção Canto dos Torna-Viagem que aliás foi uma encomenda para a série da SIC Século XX Português mas não foi a tempo de ser usada pensei logo no Fausto. É, aliás, uma canção muito faustiana. E o ano passado, tive uma colaboração com o Sérgio, que me pediu para orquestrar e cantar com ele o Que Força é Essa no Irmão do Meio. Pareceu-me óbvio que o Sérgio tinha que estar no meu disco. E também me pareceu óbvio que era para aquela canção, Pão Pão. E há neste semiencontro uma vontade, que já está falada entre nós, de um dia destes fazermos um espectáculo os três juntos. É uma coisa com que eu sonho há vários anos. Gostava mesmo muito que acontecesse. Acho que temos todas as condições de fazermos um espectáculo virado para a frente, com música nova, parcerias, novas criações feitas por nós; e que naturalmente daria origem a um CD ao vivo. Esse é o grande projecto que eu gostaria de abraçar já a seguir.
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