De pilhas de BD em lojas sombrias para as carpetes vermelhas de Los Angeles. De escritórios apertados e desarrumados para amplas e luminosas salas de conselhos de administração. Os heróis de banda desenhada abandonaram o cantinho onde estiveram arrumados durante décadas e assumiram um lugar central na cultura pop, acumulando receitas recorde. Os amigos que gozavam consigo por passar as tardes a ler livros de banda desenhada são os mesmos que provavelmente vão ajudar a encher os cinemas em Vingadores: Guerra do Infinito, o novo filme da Marvel. Uma empresa que, depois de moribunda, goza de um sucesso sem precedentes no mundo do cinema e está a revolucionar Hollywood. Nada mau para uns tipos vestidos de licra.
“Achas que és o único super-herói do mundo?”, questiona Samuel L. Jackson, na pele de Nick Fury, a meio dos créditos de Homem de Ferro, filme lançado em 2008 e que serviu como o primeiro pilar daquilo que ficaria conhecido como Marvel Cinematic Universe (MCU). A pergunta era feita a Robert Downey Jr. (Tony Stark), mas na realidade era uma provocação a todos os espectadores: preparem-se, porque de onde este veio há muitos mais.
Guerra do Infinito, que estreou esta semana, é o 19º filme do MCU. Uma caldeirada de duas horas e meia de super-heróis, que junta todas as personagens dos filmes anteriores, de Black Panther e Homem-Aranha a Capitão América e Star-Lord. Deverá voltar a bater recordes de bilheteira, marcando o pico de um ciclo de dez anos que mudou a forma como os grandes estúdios olham para os franchises cinematográficos.
Com receitas de bilheteira acumuladas de 12 mil milhões de euros (6,2% do PIB português), os super-heróis da Marvel tornaram-se a propriedade intelectual mais invejada de Hollywood. Se usarmos os valores do mercado norte-americano ajustados à inflação – o que permite uma comparação justa com filmes mais antigos – verificamos que, em apenas dez anos, os filmes da Marvel já faturaram mais do que James Bond em cinco décadas e meia. Hoje, o MCU só tem um franchise à sua frente: Star Wars, que leva um avanço de 30 anos. Como é que se transforma uma empresa falida de livros dedicados a miúdos geek na principal galinha dos ovos de ouro do cinema mundial?
A BD americana tem um histórico de marginalização como arte. Muitos de nós tivemos em criança cadernos do Super-Homem, t-shirts do Batman e até usámos máscaras do Homem-Aranha no Carnaval. Mas no mundo dos adultos raramente estas histórias eram levadas a sério. “Ainda não consigo acreditar naquilo em que os comics e os super-heróis se tornaram. Quando estava a crescer, eles só estavam disponíveis em lojas sujas e escuras, geridas por homens mal-humorados. Agora, dominam o mundo”, conta à VISÃO Reed Tucker, autor de Slugfest: Dentro da Épica Batalha de 50 anos entre a Marvel e a DC.
Foi uma longa viagem para chegar até aqui e com as mãos no volante esteve quase sempre um homem: Stan Lee, antigo autor, editor e presidente da Marvel, responsável pela cocriação de algumas das personagens mais memoráveis de sempre, como Homem-Aranha, Daredevil, Doutor Estranho, Thor, Hulk, os X-Men e o Homem de Ferro (os últimos quatro com Jack Kirby). O início esteve longe de ser glamoroso. Trabalhar na indústria dos comics nos anos 40 não era motivo de orgulho. Stan Lee nem sequer assinava com o seu verdadeiro nome – Stanley Martin Lieber – porque queria guardá-lo para uma carreira mais séria como romancista. Cada vez mais frustrado, Lee decidiu demitir-se, mas pouco antes de anunciar a decisão, o seu chefe desafiou-o a criar uma equipa de super-heróis para rivalizar com a Liga da Justiça, da DC. A mulher convenceu-o a arriscar e, em 1961, nasceu o Quarteto Fantástico. Com ele e com os super-heróis que foram saindo da pena de Lee e Kirby aparecia uma nova forma de escrever estas histórias. Em vez de perfeitas, boazinhas e quadradas, as personagens eram mais complexas. Como nós, tinham problemas, contas para pagar, relações amorosas turbulentas, ficavam maldispostas e não lhes faltavam defeitos.
O estilo menos infantil foi um êxito e permitiu à Marvel ultrapassar a sua némesis DC. O negócio da BD foi-se expandindo até ao pico dos anos 80. Entre 1979 e 1993, o número de lojas em todo o mundo disparou de 800 para dez mil, o preço dos comics da Marvel duplicou e o ritmo de publicação triplicou. Uma BD de 60 cêntimos podia valer mil vezes mais em alguns meses.
Colecionadores compravam BD como investimentos e a Christie’s e a Sotheby’s começaram a leiloar exemplares por milhares de dólares. Tal como a bolha de crédito arrasou o sistema financeiro mundial, a bolha dos comics quase fazia colapsar a indústria de banda desenhada americana. As vendas afundaram 70% e nove em cada dez lojas de comics fecharam. A Marvel acabaria por declarar falência em 1996, num longo processo que apenas seria resolvido pela fusão com a empresa de brinquedos Toy Biz.
Após evitar o abismo, a Marvel fixou o cinema como alvo. Enquanto a DC já tinha sucessos de grande ecrã, como Super-Homem e Batman, a Marvel tinha de se contentar com desenhos animados de fim de semana. O grupo acabaria por chegar a acordo com a 20th Century Fox para lançar os filmes X-Men, a Sony ficaria com o Homem-Aranha e a New Line produziria a triologia Blade. As três fitas surpreenderam nas bilheteiras e o Homem-Aranha até bateu recordes.
Em teoria, o esquema era perfeito: a Marvel não tinha de arcar com os custos e o risco de fazer filmes de orçamentos elevados, beneficiando com o aumento da venda de BD e outros negócios de licenciamento. No entanto, os estúdios davam à Marvel migalhas daquilo que faturavam. Sean Howe, autor de Marvel Comics: The Untold Story, escreve na Slate que dos 70 milhões que Blade faturou, a Marvel recebeu apenas 25 mil dólares – não é uma gralha – e que os três mil milhões gerados pelos dois primeiros Homem-Aranha em bilheteira, DVD e outras vendas renderam apenas 62 milhões à empresa que criou a personagem.
A Marvel queria uma fatia maior e recuperar o controlo criativo destas personagens. Mas primeiro teve de ir a Wall Street. Em 2005, fez um acordo com a Merrill Lynch, que lhe emprestou 525 milhões de dólares para realizar dez filmes em oito anos: Homem-Formiga, Vingadores, Black Panther, Capitão América, Doutor Estranho, Gavião Arqueiro, Nick Fury, Quarteto Futuro, Shang-Chi, o Mestre do Kung Fu e Manto e Adaga. O negócio era arriscado. Se as fitas fossem desastres financeiros, a Marvel teria de ceder aos credores direitos de algumas dessas personagens.
Sem acesso a heróis à “prova de bala” como Wolverine e Homem-Aranha, a Marvel decidiu avançar com uma personagem bem menos conhecida do grande público: Homem de Ferro. Para o interpretar? Robert Downey Jr. A decisão foi polémica. Era visto como um ator talentoso, mas controverso. Problemas graves com drogas e várias detenções levaram a que nem sequer tivesse conseguido arranjar um seguro para entrar no filme Melinda e Melinda, de Woody Allen. Portanto, o desafio era lançar um franchise com uma personagem de segunda linha e um ator caído em desgraça. Relutantemente, a Marvel aceitou o nome e, sem saber, acertou no jackpot, ao encontrar uma química perfeita entre ator/personagem. O bilionário Tony Stark aparece como irreverente e charmoso, com uma leveza que fica a quilómetros da voz grossa de Batman.
Filipe Homem Fonseca, argumentista e escritor, acha que “não foi inocente” que o primeiro filme tenha sido o Homem de Ferro. “É um risco, porque é uma personagem menos explorada, mas tem o potencial dos brinquedos.” De facto, sabemos hoje que, para decidir que filme fazer em primeiro lugar, a Marvel organizou focus groups com crianças, perguntando-lhes não que filme queriam ver, mas com que brinquedo gostariam de brincar. O Homem de Ferro era o preferido.
O filme – na prática, um indie – foi um êxito comercial e, em 2009, a empresa que uma década e meia antes abriu falência estava a receber uma oferta de quatro mil milhões de dólares da Disney, que pretendia expandir-se para lá dos filmes de princesas e chegar a uma audiência mais adulta e com mais dinheiro. Com donos com bolsos mais fundos, a Marvel passou a nadar com os tubarões.
Um mercado ansioso
Há algumas semanas, a Marvel decidiu juntar os responsáveis por este ciclo de sucesso no mesmo sítio. Era uma espécie de Passeio da Fama em carne e osso. Na foto de família, podíamos ver Scarlett Johansson, Anthony Hopkins, Benedict Cumberbatch, Samuel L. Jackson, Jeremy Renner, Robert Redford, Mark Ruffalo, Gwyneth Paltrow, Tilda Swinton, Laurence Fishburne e, claro, os três Chris: Hemsworth, Evans e Pratt. A Vanity Fair conta que havia tantas estrelas que Michael Douglas andava a pedir autógrafos.
Em 18 películas MCU, nenhuma foi um flop. Não há precedente cinematográfico para um ciclo desta duração. Em Portugal, nove milhões de pessoas viram estes filmes, tendo rendido 45 milhões de euros. Mesmo com personagens cada vez mais obscuras para a maior parte do público – alguma vez tinha ouvido falar dos Guardiões da Galáxia? – e um maior número de filmes deste género nas salas de cinema, a popularidade tem sido crescente: Black Panther estreou em fevereiro e já é o filme de super-heróis que mais receita arrecadou nos EUA (se ajustarmos à inflação, é o terceiro). No resto do mundo, a história é semelhante. Foi o primeiro filme em 35 anos a ser projetado na Arábia Saudita. O próximo a passar? Guerra do Infinito.
Tudo indica que o mais recente filme da Marvel representará o pináculo deste sucesso. Mais de mil sessões nos EUA já estão esgotadas, com cinemas a terem de criar sessões às três da manhã. As pré-vendas já ultrapassam a soma dos últimos sete filmes da Marvel.
“Há uma apetência de mercado para estes filmes. Quem gosta tem agora poder de compra”, nota Filipe Homem Fonseca. Os jovens que cresceram a ler BD são agora adultos com dinheiro, desesperados por passar o bichinho aos filhos. “Se há um mercado cada vez mais doido por escapismo, estes filmes oferecem a ideia de ‘venham passar duas horas com este franchise e levem os bonecos’.”
Arnold Blumberg quis ajudar a explicar este fenómeno, criando em 2015 uma cadeira universitária sobre “as bases literárias e mediáticas da narrativa heroica” da banda desenhada e dos filmes da Marvel. Qual é o segredo? “Começaram no mundo real, introduzindo uma série de personagens extraordinárias, uma de cada vez, à medida que eram fortalecidos laços emocionais”, explica. “Pela altura em que visitamos Asgard ou viajamos para o espaço com os Guardiões da Galáxia, havia um público de milhões que se tornou confortável com o mundo Marvel. Se começassem com os Guardiões, teriam perdido essas pessoas num piscar de olhos. Mas começámos com um milionário emocionalmente frágil e cheio de defeitos, que construiu uma armadura. O resto do universo nasceu desse coração e toda a gente quis participar na viagem.”
Nem tudo é subtil. A Marvel inclui os ingredientes mais procurados pelas audiências: lutas épicas do bem contra o mal, porrada de meia-noite, o Hulk a esmagar coisas e muitos milhões de euros em efeitos especiais. Mas esses elementos também estão presentes nos mais recentes filmes da DC, sem que tenham o mesmo sucesso (crítico e de bilheteira). Os filmes MCU são mais leves e divertidos. Há cidades verdadeiras, heróis com fragilidades e que não se levam muito a sério. Enquanto a Fox vestia os X-Men de preto (longe da diversidade cromática da BD), o Capitão América continua a usar um capacete criado nos anos 40. “A cidade está a voar, estamos a lutar contra um exército de robôs e eu tenho um arco e uma flecha. Nada disto faz sentido”, diz Gavião Arqueiro num dos filmes, reconhecendo aquilo que todos conseguimos ver.
“Os filmes da Marvel fazem um trabalho excelente na mistura de humor e emoção com heroísmo e drama”, refere Blumberg. “Os filmes recentes da DC parecem ter-se esquecido de como apresentar alguém como humano e a sua visão monótona, sisuda e depressiva das suas próprias personagens não tem a alegria, a aspiração e a esperança que melhor define os super-heróis e a sua função na nossa cultura.”
Um universo partilhado
Hoje ninguém se levanta da cadeira num filme MCU antes de as luzem se acenderem. As cenas pós-créditos presentes desde o primeiro filme serviram para lançar os filmes seguintes e juntar as várias galáxias deste universo, culminando no lançamento de Os Vingadores que, pela primeira vez, juntou Capitão América, Hulk, Homem de Ferro e Thor no mesmo ecrã IMAX.
“Embora não tenham inventado o conceito, o legado da MCU na cultura pop será a popularização da estrutura de universo partilhado”, nota Blumberg. Tucker concorda, apontando que o conceito de franchise tomou esteroides. “Nos anos 80, três filmes eram um grande franchise. Agora, a Marvel provou que é possível construir um franchise que dure décadas. Cada filme é construído sobre o outro, tornando-os sequelas uns dos outros. Nunca ninguém tinha feito isto e deixa Hollywood a babar-se. A Warner Bros. está a tentar, com a DC e Harry Potter, a Universal tentou com os seus monstros e A Múmia.”
Filipe Homem Fonseca acha que estes filmes serão lembrados da mesma forma que os comics nos anos 60. “Como se fala daquilo que o Stan Lee e o Jack Kirby fizeram, vai falar-se daquilo que a Marvel fez nestes anos.”
Guerra do Infinito traz com ele um cheiro a epílogo. A sequela desse filme – Vingadores 4 – sai dentro de um ano e encerra a “fase três” dos filmes MCU. O universo Marvel continuará, mas com outras histórias e outras personagens. Os contratos de estrelas como Downey Jr. e Chris Evans estão a terminar, o que significa que darão lugar a uma nova vaga de atores, como Tom Holland (Homem-Aranha).
Uma nova bolha?
Claro que nem as histórias de super-heróis são contos de fadas. Se nenhum filme MCU foi uma desilusão financeira, a qualidade variou bastante e alguns são muito pouco memoráveis (vêm à cabeça Hulk e alguns do Thor). Além disso, no tempo do #MeToo e dos #OscarsSoWhite, as perguntas sucediam-se: onde estão as heroínas femininas que a BD criou? Por que razão só fazem filmes de super-heróis brancos? Ausências que nem faziam sentido do ponto de vista comercial, como provaram os êxitos Black Panther e Mulher-Maravilha.
Também não deixa de ser irónico que o negócio do cinema esteja a explodir, enquanto as vendas de BD caíram 10% em 2017. Nos anos 60, a Marvel podia vender nove milhões de BD por mês. Hoje, os 300 comics mais populares de todas as editoras vendem à volta de seis milhões. É possível que, para estes mega franchises, o papel deixe de ser o meio de eleição. No centro passarão a estar o cinema e a televisão ou o que restar dela (a Marvel tem cinco séries na Netflix). A BD pode passar a ser uma espécie de divisão de I&D destas empresas, onde são testadas personagens e narrativas.
De qualquer forma, o género não está estático. Deadpool é um filme de super-heróis que goza e desconstrói filmes de super-heróis, Logan é um drama triste e sangrento e Guardiões da Galáxia é uma ópera espacial. Os dois primeiros foram produzidos pela Fox, que será em breve comprada pela Disney, o que significará um regresso a casa para muitas destas personagens, mas também um domínio ainda maior do mercado pela empresa do Mickey. O que pode ser problemático. Hoje, as idas ao cinema já parecem exercícios monotemáticos. Os estúdios canalizam recursos para os lucros fáceis, o que normalmente significa financiar histórias sobre pessoas que disparam raios dos olhos ou têm velocidade supersónica. Há um risco de uma saturação? “Há muito tempo que digo que existe uma bolha nos filmes de super-heróis, mas tenho sido desmentido todos os anos”, confessa Tucker. “Acho que a bolha não rebentou porque a Marvel continua a produzir êxito atrás de êxito sem um único flop. Com Black Panther, vão em 18. Isso é um sucesso sem precedentes em Hollywood.”
Os filmes de super-heróis passarão a ser como westerns ou musicais? Blumberg acha que sim. “O mais provável é vermos este género tomar o seu lugar como mais uma narrativa cinematográfica que ficará sempre connosco, com períodos de popularidade mais intensa e a ocasional quebra de interesse. Os super-heróis chegaram para ficar.”