Era uma questão de tempo. A vida breve de Elis Regina parece talhada para se transformar em tema central de uma longa-metragem. Tem tudo: superação, excitação, entusiasmo, sensualidade, conflito, mudanças bruscas, choro e riso, tragédia. Mas isso não significava, antes pelo contrário, que fosse um empreendimento fácil. O realizador Hugo Prata acertou no mais difícil ou, pelo menos, no mais arriscado: a escolha da atriz que dá corpo e rosto a uma das mais carismáticas figuras da música popular brasileira. Elis, o filme que o TVC2 exibe esta segunda-feira, 9, assenta totalmente na interpretação de Andreia Horta. Durante quase duas horas, ela é Elis. O problema, inevitável, é que esse tempo não chega para percorrer a vida intensa da cantora nem para responder cabalmente à pergunta “quem era Elis Regina?”.
O riso e a fúria
Parece haver um grande paradoxo de fundo nesta figura. Ainda hoje é lembrada, quase sempre, como a melhor cantora de sempre do Brasil; depois da sua morte, em janeiro de 1982, tornou-se uma artista consensual que partiu demasiado cedo. O mito, mais ou menos adormecido, foi fazendo o seu caminho ao longo dos anos. A sinopse oficial do filme nem quer deixar margens para qualquer discussão sobre o assunto: “Indiscutivelmente a maior cantora brasileira de todos os tempos”, lê-se.
Mas, em vida, Elis não era assim tão consensual. E isso aconteceu logo quando se começou a impor, chegada ao Rio de Janeiro vinda de Porto Alegre, onde nasceu em março de 1945. A sua voz poderosa e interpretação explosiva estavam em contramão em relação à grande invenção brasileira da época, a bossa nova, tão cheia de contenção e coolness. “O modo como Elis apresentou Arrastão na TV − pontilhada de convenções rítmicas que ela frisava com movimentos de quase-dança excessivamente destros, e a que não faltava um triunfal desdobramento de andamento no final − talhou um estilo tremendamente eficaz de apresentação de música sofisticada na TV que fez dela uma grande estrela de massas com alta respeitabilidade técnica”, escreveu Caetano Veloso no seu livro de memórias, Verdade Tropical. “Sem deixar de entusiasmar-me com seu evidente talento, eu, um joãogilbertiano radical, me agastava com a vulgaridade dos efeitos jazzísticos pré-cool e com a expressão corporal treinada pelo dançarino americano radicado no Brasil Lennie Dale”.
A televisão, com os seus shows musicais vistos por milhares no grande país, era um meio poderoso no Brasil de então, e um excelente negócio. Rapidamente Elis Regina triunfou, tornou-se popular e deixou de ter problemas financeiros. Talvez demasiado rápido, mesmo.
Começou a ganhar dinheiro com a música ainda em Porto Alegre. Aos onze anos já cantava no programa Clube do Guri, na Rádio Farroupilha, e aos 14 assina o seu primeiro contrato profissional, desta vez com a Rádio Gaúcha. Em 1964, no mês em que cumpre 19 anos, chega a hora de tentar a sua sorte na grande cidade e ruma ao Rio de Janeiro, com o pai a tomar conta. Não se pode dizer que tenha encontrado uma cidade maravilhosa e calma à sua espera: por esses mesmos dias o presidente eleito João Goulart era deposto e começava a ditadura militar que governaria o Brasil até 1985, durante toda a vida de Elis.
O filme escolhe esse momento simbólico da viagem de Porto Alegre para o Rio como início de narrativa. Há muitas maneiras de construir um filme biográfico sobre uma figura célebre. O realizador Hugo Prata, 52 anos, escolheu a mais convencional: escolher um ponto A e ir por aí fora, cronologicamente, até ao fim. Podia ter-se centrado num momento específico, e particularmente revelador, da carreira de Elis Regina mas preferiu percorrê-la, iluminando alguns momentos. Mais do que as suas parcerias e aventuras musicais, o fio condutor de Elis, o filme, é o seu relacionamento com os homens mais marcantes da sua vida. Sobretudo os seus dois maridos: Ronaldo Boscôli, com quem casou em 1967, aos 22 anos, pai de João Marcelo, e o músico César Camargo Mariano, pai de Pedro e da cantora Maria Rita.
A conquista do grande público brasileiro foi, aparentemente, fácil. Mais difícil era navegar na vida pessoal, como se quisesse tudo e o seu contrário, e sempre muito depressa, naquele estilo intenso de quem quer viver ao máximo o presente sem pensar demasiado no passado e no futuro. Mas eles estavam sempre lá.
A relação com a família nuclear (o passado), por exemplo, nunca foi fácil. A mãe, o pai e o irmão ficaram rapidamente dependentes do sucesso e das ajudas de Elis Regina e ela tão depressa queria tê-los por perto e apoiá-los como parecia cobrar-lhes essa dependência ou qualquer tipo de interferência (acabaria mesmo por cortar relações com o pai). A bipolaridade fazia parte do quotidiano de Elis Regina, como os seus mais próximos atestam. Ronaldo Boscôli, por exemplo, esse galã do Rio, bem nascido, teórico e depois também músico da bossa nova, que não foi convencido pelo talento fulgurante da jovem cantora gaúcha logo à primeira… Esse casamento surpreenderia muita gente. “Elis, na verdade, era uma grande ciclotímica, tinha uma arritmia de comportamento sem explicações maiores; num momento estava rindo, no outro chorando”, contou à jornalista Regina Echeverria para a biografia Furacão Elis, publicada em 1985. Uma das cenas que Ronaldo revela nesse livro era demasiado cinematográfica para ficar fora do filme. Num acesso de raiva, depois de mais uma discussão, Elis foi para a varanda da magnífica vivenda do casal na Avenida Niemeyer, no Rio do Janeiro, e lançou ao mar, um a um, os preciosos discos de Frank Sinatra que o seu marido idolatrava. “Briga” é uma palavra muito repetida nessa biografia.
‘A voz da Elis é única’
Não foi à toa que Vinicius de Moraes inventou para Elis Regina a alcunha “Pimentinha”. O seu mau feitio era lendário. A sua generosidade e ingenuidade também. Outra relação naturalmente difícil era com o Brasil da sua época. Ela que era livre, explosiva, desbocada e mesmo um pouco anarca não podia rimar com o ritmo marcial da ditadura. Certa vez, numa viagem à Europa, onde o seu talento era cada vez mais apreciado, não hesitou em classificar, numa conferência de imprensa na Holanda, os militares no poder no Brasil como “gorilas”. Talvez se sentisse protegida pela distância, mas a audácia teve consequências. O filme revela, no regresso ao Brasil, uma verdadeira chantagem ameaçadora por parte do regime, episódio que terminaria com Elis Regina a interpretar o hino nacional nas Olimpíadas do Exército, em 1972.
Numa altura em que muitos artistas estavam exilados ou tentavam, com dificuldade, fintar a censura e combater a ditadura militar, Elis viu-se numa posição que se recusava a assumir, transformada em alvo. O cartoonista Henfil não perdoou e representou-a enterrada num cemitério que ele reservava a todos os apoiantes da ditadura… A cantora teria oportunidade de o confrontar diretamente e, melhor ainda, de se redimir, de alguma maneira, quando em 1979 interpretou O Bêbado e o Equilibrista (música de João Bosco e letra de Aldir Blanc), rapidamente tornada um sucesso e transformada em hino a favor da amnistia aos exilados (e o irmão de Henfil era um deles) e presos políticos. “Meu Brasil/ Que sonha com a volta do irmão do Henfil/ Com tanta gente que partiu num rabo de foguete/ Chora a nossa pátria, mãe gentil,/ Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil”, cantava Elis.
Não é de estranhar que os momentos mais intensos e emotivos do filme sejam aqueles em que se ouve Elis cantar. Esse era o seu grande poder. A atriz Andreia Horta teve três meses de formação intensiva treinando o canto, o modo de falar e os gestos de Elis Regina. Mas todas as cenas musicais são servidas com o registo original da voz de Elis e um playback hiper-realista que resultou desse trabalho de preparação. “A voz da Elis é única. Seria uma traição à memória auditiva do espectador se eu cantasse”, disse a atriz à revista Veja.
A tragédia pressentia-se. Elis encaixa nessa categoria dos artistas que, como um fósforo, brilham intensamente mas não estão destinados a durar, não aguentam a intensidade duma chama que inevitavelmente se vai extinguir. Num ano, 1982, em que tinha muitos planos (terceiro casamento incluído, com o seu ex-advogado Samuel MacDowell) um cocktail mal medido de álcool e cocaína, droga que tinha descoberto há pouco tempo, supostamente numa viagem aos EUA para preparar um disco com Wayne Shorter que nunca se concretizou, acabou com a realidade. Começou a lenda.
(Artigo publicado na VISÃO 1282, de 28 de setembro de 2017)