Aos peritos e críticos de arte, custava a acreditar que Trumpeting Putto, uma grande pintura circular com a representação de um querubim a tocar uma pequena trompa, encontrado em 2012 numa garagem austríaca, fosse da autoria de Gustav Klimt (1862-1918). É que o grande pintor simbolista, co-fundador do movimento da Secessão de Viena, é reconhecido pelas obras de exuberância dourada, reminiscentes da art nouveau, patentes em obras como Retrato de Adéle Bloch-Bauer I (1907) ou O Beijo (1908). Agora, esses especialistas de arte tiveram que engolir em seco e aceitar as conclusões apresentadas por investigadores da Universidade de Coimbra e de outras instituições académicas da Alemanha, Espanha e Japão.
Uma equipa que inclui a física portuguesa Benilde Costa, 56 anos cumpridos em abril, nascida em Moçambique, desaguada em Portugal em 1975, a viver em Coimbra desde sempre, mãe de uma psicóloga e de uma farmacêutica, que se revê nos estereótipos dos físicos distraídos na linha da série A Teoria do Big Bang: “Sou tímida, e as minhas filhas acham que sou nerd, enquadro-me um pouco nesses estereótipos…”
A cientista está integrada no grupo multidisciplinar internacional que autenticou Trumpeting Putto como um dos primeiros quadros do artista austríaco, que se julgava perdido e que foi alvo de polêmica entre críticos e historiadores de arte que duvidavam da sua autoria. E uma das provas mais significativas obtidas nesta investigação de cinco anos é a da descoberta das duas assinaturas do autor escondidas na obra. Estas foram detetadas através de tecnologia cedida pela agência espacial NASA, antes utilizada nas sondas de exploração do planeta Marte: um espetrómetro portátil que identificou “os pigmentos usados na pintura sem ser necessária a extração de amostras da obra”.
Como é que conseguiram que a NASA cedesse a máquina? A portuguesa esclarece: “Um membro da Universidade de Mainz fez parte da NASA, tendo participado no estudo sobre o planeta Marte. Como o equipamento foi construído por ele, foi fácil a agência espacial ceder o equipamento.”
Docente e investigadora do Departamento de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, Benilde Costa conta à VISÃO que passou a última terça-feira a atender telefonemas. Afinal, não é todos os dias que um grupo de cientistas desvenda um enigma no mundo da arte. A curiosidade intensificou-se ao saber-se da participação de uma portuguesa, especialista em Espetroscopia de Mössbauer, técnica que utiliza radiação gama para estudar as propriedades de um material, ‘lidas’ por um espetroscópio. “É uma técnica nuclear que se aplica a vários elementos, mas sobretudo ao ferro, o mineral mais comum da Terra. Os elementos estudados no quadro de Klimt foram o ferro, as tintas quase todas têm, aliás, óxido de ferro”, explica.
Atração pela arte
E como é que uma física lusa acaba a trabalhar numa obra de Klimt? “Na altura em que começaram as investigações, eu encontrava-me na Universidade de Mainz, na Alemanha. Não era a única profissional a dominar a técnica de espetroscopia de Mossbauer, mas era a que estava disponível para efetuar as medições necessárias. Foi um acaso”, conta, modesta. Mas ficou “muito entusiasmada” por estudar um quadro que poderia ser um Klimt dos primeiros anos. Até porque, confessa, tem uma ligação especial com a arte e com a arqueologia: “Eu também pinto, como amadora.”
Benilde Costa sublinha que a união de esforços entre física e arte nada tem de descabido: “As disciplinas da física e da química funcionam bastante nestas questões de investigação e autenticação da pintura, da cerâmica… Além da pesquisa dedicada ao Trumpeting Putto, estou ainda a estudar ânforas romanas com mais de dois mil anos em colaboração com uma equipa de arqueólogos.” A investigação sobre Trumpetting Putto, descreve-a como “empolgante”. Até pelas peripécias vividas com uma obra de grande valor: “Por exemplo, quando transportávamos o quadro, tínhamos que escondê-lo, ver se ninguém iria roubá-lo, tapar as janelas todas do laboratório…”,conta a cientista.
O caminho para a autenticação de Trumpetting Putto como um dos primeiros quadros do pintor austríaco foi longo: implicou cinco anos de estudos intensivos, efetuados por investigadores das universidades de Coimbra, de Hannover e de Mainz (Alemanha) e de Valladolid (Espanha), a que se juntaram posteriormente as universidades japonesas de Shizuoka, Tsukuba, Yokohama e Tokushima: o Japão tem técnicas “mais avançadas do que a Europa e está interessado em aplicar as suas capacidades para estudar cientificamente uma obra de arte”, refere Benilde Costa.
Este caso, assume a cientista, ecoou um velho diálogo, às vezes difícil, entre a arte e a ciência: “Esta descoberta abre um novo campo na autenticação de obras de arte. Durante estes anos de investigação, os críticos e historiadores de arte estiveram sempre algo avessos ao estudo do quadro, porque achavam que a sua própria observação e os livros já escritos sobre Gustav Klimt eram suficientes para avaliarem a autenticidade da obra. Eles sempre mostraram desagrado quanto à nossa participação. Por isso, também insistimos em estudar o quadro, porque nos deram essa possibilidade. A partir deste momento, historiadores, críticos e peritos de arte estão mais abertos à intervenção da ciência neste campo.”
História acidentada
Era uma vez um colecionador chamado Josef Renz que, em 2012, comprou um quadro, que “tinha sido encontrado numa garagem do norte da Áustria”. Perante a descoberta de um presumível trabalho perdido do pintor simbolista, “peritos e historiadores de arte vieram a público questionar a autenticidade da obra, promovendo acesas discussões”, recorda a Universidade de Coimbra. Trumpeting Putto estivera no teto do estúdio Klimt, em Viena, espaço partilhado por Gustav e o irmão Ernst entre 1883 e 1892 – o que também suscitava dúvidas sobre qual dos irmãos o poderia ter pintado. A pintura desaparecera sem deixar rasto quando um elevador foi instalado no edifício, tendo-se julgado que fora destruída. Até ao dia em que Renz foi contactado por um homem que dizia ter encontrado o quadro em casa…
A obra, agora completamente restaurada e autenticada, foi apresentada esta quarta-feira numa conferência de imprensa no Museu Sprengel Hannover. Mas a equipa de investigadores internacionais continuará a estudar Trumpeting Putto. “Trata-se de curiosidade científica. Há que ver como foi trabalhado o quadro, que tintas foram utilizadas, de onde é que estas vieram…”, diz Benilde Costa.